On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.30 no.3 São Paulo May/Jun. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201700042
A doença renal crônica (DRC) tem assumido importância crescente no Brasil considerando tratar-se de doença cada vez mais comum, associada à elevada mortalidade, morbidade e custos, além de impactar negativamente na qualidade de vida relacionada à saúde. O aumento anual no número de novos pacientes com doença renal em estágio final que necessitam de transplante renal, assim como o crescente gap entre a procura e a oferta de rins, levou à expansão progressiva da espera de transplante renal na lista mundial. Isto se tornou um grande problema, pois muitos pacientes morrem enquanto esperam para receber a oferta de um rim.1-3No Brasil, o número de transplantes renais realizados por ano atende apenas uma média de 30% do total das pessoas que aguardam em fila por este órgão. Os transplantes fazem parte do orçamento dos recursos financeiros destinados ao setor saúde, além de possuir o maior sistema público de transplantes do mundo, financiando mais de 90% das cirurgias realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No estado de São Paulo, o controle de convocação dos candidatos inscritos é realizado pelo Cadastro Técnico Único (CTU), um banco de dados informatizado do Sistema Estadual de Transplantes de São Paulo (SIGSET), que guarda as informações de receptores (potenciais ativos, semiativos, removidos, transplantados e falecidos), notificações de doadores em morte encefálica e coração parado, doadores efetivos de órgãos e tecidos, equipes médicas de transplante, hospitais notificantes e de transplante do Estado, Organizações de Procura de Órgãos (OPOs) e Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHT).4-7
A lista de espera é a única opção para aqueles pacientes renais que não possuem contra-indicações e que não encontram um doador entre seus familiares até o quarto grau de parentesco, doação de cônjuges ou de qualquer outra pessoa. Em todos os estados da federação a fila é única, a alocação dos órgãos é regulamentada pela legislação específica e controlada pelo Sistema Nacional de transplante e a distribuição é feita com base no exame de compatibilidade HLA (Human Leucocyte Antigen).1,2,7
No primeiro semestre de 2016, os 120 centros de transplante renal, registraram a realização de 2651 transplantes. No ano de 2015 foram realizados 5.556 transplantes renais, destes 1172 provenientes de doador vivo, 4384 de doador falecido, 951 oriundos de parentes, 165 não parente-cônjuge e 56 não parente-outros. As regiões com maior número de transplantes realizados foram Sudeste e Sul, com destaque para o estado de São Paulo com um total de 1983 procedimentos, líder em número de equipes de transplante renal, com 33 equipes atuantes.2
O estado de São Paulo é o maior em número absoluto de transplantes, em função do tamanho de sua população e da migração de pacientes de outros estados. Nos últimos três anos tem mantido estável o número de doadores efetivos e cerca de 2000 transplantes renais por ano, sendo 75% com doador falecido.1,2 É capaz de realizar todos os tipos de transplantes em números superiores à média da região e do país. Teve-se como objetivo do estudo identificar e descrever o perfil epidemiológico dos pacientes inscritos no Cadastro Único de Transplante Renal do estado de São Paulo no período de 2009 a 2015.
Estudo epidemiológico transversal com abordagem quantitativa para identificar e descrever o perfil dos pacientes inscritos em fila única de espera para o transplante renal no estado de São Paulo. Realizou-se levantamento nas bases de dados da Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO 1) do Cadastro Técnico Único (CTU), estabelecendo-se como variáveis as características clínicas (diagnóstico e grupo sanguíneo), demográficas (sexo, idade em anos, cor da pele e procedência) e relativas ao desfecho de convocação (realização ou não do transplante renal e motivos de recusa) no período de período de 2009 a 2015.
A amostra foi composta por 12.415 pacientes que realizavam hemodiálise e paralelo ao tratamento encontravam-se inscritos para a realização do transplante renal. Os dados coletados foram extraídos em planilha Microsoft Excel. Posteriormente foi realizada uma análise pelos softwares estatísticos IBM® Statistical Package for social Science SPSS® 20.0 e o programa Data Analysis and Statistical Software STATA®, versão 12.0. A perda de dados incompletos do banco, assim como a eliminação de informações duplicadas não foram consideradas significantes ou de risco comprometedor no reflexo dos resultados levantados.
As associações entre as variáveis categóricas foram verificadas utilizando-se o teste de Qui-Quadrado. A comparação de duas médias foi realizada utilizando-se o teste t de Student para amostras independentes. Para se comparar mais de duas médias, empregou-se o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis, necessário para a realização da Análise de Variâncias - ANOVA.
As funções de sobrevivência foram analisadas separadamente para cada variável preditora (análise univariada) por características do paciente. Para as variáveis de natureza categórica foi aplicado o teste de sobrevivência de Kaplan-Meier, em sequência, para a avaliação simultânea dos efeitos de todas as variáveis preditoras sobre o tempo de sobrevida foi realizada pelo emprego do modelo de Cox (multivariado). Todas as variáveis preditoras selecionadas (cor, ABO, diagnóstico, sexo, idade e região) foram incluídas no modelo.
Para todos os testes estatísticos foi utilizado nível de significância de 5%.
O estudo atendeu às normas de ética em pesquisa envolvendo seres humanos - Registro CAAE - Certificado de Apresentação para Apreciação Ética: 16300113.6.0000.5505.
A amostra foi constituída por 12.415 pacientes inscritos no CTU em São Paulo para a realização de transplante renal, a média de idade (no momento da inscrição) foi de 50,2 anos (DP=15,3 anos), sendo observada uma idade mínima de 2 anos e máxima de 98 anos. A mediana das idades foi de 52 anos.
Utilizou-se os teste Qui-Quadrado e t de Student, e constatou-se predominância de pacientes do sexo masculino com 59,6% da amostra (p<0,001). Além disso, observou-se que 63,1% dos pacientes são brancos, 48,9% apresentam tipo sanguíneo O e 26,2% eram provenientes do município de São Paulo. Com relação ao diagnóstico da doença, 34,5% não apresentaram etiologia específica (Outro), 28,2% apresentaram Hipertensão Arterial Sistêmica - HAS e 20,8% Diabetes mellitus - DM, conforme observa-se na tabela 1.
Tabela 1 Análise dos pacientes por características preditoras
Variáveis | n(%) |
---|---|
Sexo | 12415(100,0) |
Feminino | 5016(40,4) |
Masculino | 7399(59,6) |
Cor | 12415(100,0) |
Amarela | 234(1,9) |
Branca | 7840(63,1) |
Negra | 1528(12,3) |
Parda | 2813(22,7) |
Tipo sanguíneo | 12415(100,0) |
A | 4393(35,4) |
AB | 419(3,4) |
B | 1528(12,3) |
O | 6075(48,9) |
Diagnóstico | 12397(100,0) |
Diabetes | 2576(20,8) |
Doença arterial hipertensiva | 3499(28,2) |
Glomerulonefrites | 1777(14,3) |
Nefrites Intersticiais (pielonefrites) | 266(2,1) |
Outro | 4279(34,5) |
Sem informação | 18(0,1) |
Município | 12415(100,0) |
SP | 3257(26,2) |
Demais | 9158(73,8) |
Conforme análise discriminante das variáveis pode-se observar a distribuição dos pacientes por recusas e situação de transplante. Verificou-se que 6,9% destes tiveram pelo menos uma recusa antes de receber o transplante. O percentual de transplantes realizados na primeira oferta foi de 15,9% e os candidatos inscritos que não receberam ofertam e nem realizaram o transplante renal correspondem a 77,2% (Figura 1).
Com base nos resultados encontrados, pode-se traçar um perfil dos pacientes inscritos em lista no CTU de São Paulo. As características clínicas, demográficas e relativas ao desfecho de convocação (realizou ou não o transplante renal) predominantes foram avaliadas e estão apresentadas a seguir (Figura 2).
Algumas limitações do estudo relacionam-se ao fato de tratar-se de uma análise epidemiológica transversal, com tempo limitado de execução, não contemplando os pacientes inscritos fora do período estabelecido. No presente estudo, as questões sobre conscientização e adesão ao tratamento do paciente enquanto aguarda em fila de espera não foram controladas. Ademais, seus achados abrangem a caracterização do perfil apenas dos candidatos ao transplante renal no estado de São Paulo.
Traçar o perfil epidemiológico dos pacientes em programa de tratamento de hemodiálise no estado de São Paulo nos permite conhecer melhor a população em fila de espera para a realização do transplante renal, lograr maiores chances de êxito na assistência prestada, acompanhamento adequado do tratamento e menores intercorrências no período de adaptação ao novo órgão, além de fornecer subsídios para a prática clínica dos profissionais da saúde na melhoria dos serviços prestados.
Os resultados arrolados demonstram que a maior parte dos indivíduos inscritos no CTU eram do sexo masculino (59,6%) com idade compreendida entre 51 a 60 anos, média de 50,2 anos, idade mínima de dois anos e máxima de 98 anos. Corrobora com estes resultados, pesquisas semelhantes realizadas nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, nas quais verificou-se que a maioria dos pacientes inscritos em programas de hemodiálise que aguardam o transplante renal tem idade acima de 50 anos e sexo masculino predominante.8
Ratifica os resultados encontrados também o Censo de 2015 da Sociedade Brasileira de Nefrologia, no qual de um total de 111.303 pacientes em terapia renal substitutiva (TRS) no Brasil, a maioria possui idade compreendida de 45 a 62 anos e cerca de 58% destes são homens, tal como o levantamento do Inquérito Brasileiro de Diálise Crônica de 2014, no qual 58% dos pacientes com doença renal crônica em fila de espera para o transplante renal são do sexo masculino com percentual etário correspondente ao estudo.9,10
De acordo com o Ministério da Saúde, os homens são mais vulneráveis às doenças crônicas, em especial hipertensão arterial sistêmica (HAS) e diabetes mellitus (DM), principais fatores de risco para DRC. Empiricamente, observa-se, no cotidiano dos serviços de saúde, que os homens em idade ativa de trabalho procuram menos atendimento que as mulheres uma vez que estas buscam mais os serviços de saúde devido a cuidados ginecológicos. Este fato pode estar relacionado à vulnerabilidade masculina com propensão a sugerir superioridade nas filas de espera para transplante renal.4,11-13
No estudo, constatou-se que o diagnóstico de base “Outro” (não especificado) foi a causa mais frequente da insuficiência renal crônica com 34,5%, seguido pela HAS com 28,2%; DM com 20,8%; glomerulonefrites com 14,3% e nefrites intersticiais (pielonefrites) com 2,1%. Estudos sobre o perfil epidemiológico similares constatam que as doenças de base HAS e DM são comumente identificadas como principais diagnósticos primários e responsáveis por cerca de metade das patologias dos pacientes em tratamento dialítico no Brasil, causas de etiologia desconhecida para DRC também aparecem constantemente nos registos. Pesquisas similares indicam que a DM apresenta-se constantemente como principal causa em alguns estados do Nordeste.13-15
Na avaliação das funções de sobrevivência por características dos pacientes, verificou-se via modelo Kaplan Meier, um tempo médio até o transplante de 63,4 meses e a estimativa de probabilidade de não realização do transplante em até cinco anos foi de respectivamente 87,8%. Em uma análise detalhada entre a relação diagnósticos de base por sexo dos pacientes, pode-se observar prevalência do sexo masculino na doença arterial hipertensiva com 29,1% e no diabetes mellitus com 23,2%. O diagnóstico glomerulonefrite é observado predominantemente no sexo feminino com 16%, assim como o diagnóstico “Outro” correspondente a 37,4% do total. Dentre os pacientes que não transplantaram de ambos os sexos, mais da metade apresentam o DM como doença de base. Ratificam estes resultados, outra pesquisa conduzida por Malta et al,17 que verificou maiores índices de prevalência de HAS e DM em pacientes portadores de DRC do sexo masculino.16,17
Na avaliação de grupo étnico, houve predominância da cor branca com 63,1% do total. A cor parda registrou 22,7%, seguida da cor negra com 12,3% e a cor amarela com 1,9%. No entanto, a análise de dados demonstra que esta característica não está necessariamente relacionada ao transplante uma vez que a avaliação das condições clínicas do paciente em lista de espera e seleção ocorrem independentemente da cor de pele, portanto diferenças não étnicas. Estudos semelhantes realizados nas regiões Sudeste e Sul apresentaram resultados similares com predomínio de cor branca autorreferida.18
Verificou-se que pacientes do tipo sanguíneo O realizaram menos transplantes em relação aos outros grupos, esse fato pode ocorrer devido a presença de aglutininas anti-A e anti-B no plasma. Em relação ao sistema ABO, indivíduos do tipo sanguíneo O estão em maior porcentagem na lista única de espera, sendo consistente com os estudos de Machado et al,5 e associa-se ao fato dos indivíduos do tipo O serem compatíveis apenas com os do mesmo grupo sanguíneo.19
Quanto à procedência, observou-se que a maioria dos pacientes inscritos no CTU era proveniente da região metropolitana de São Paulo (78,3%) do total, enquanto 26,2% eram provenientes da cidade de São Paulo. Justifica-se esse fato, o oferecimento dos serviços pela rede pública de saúde por meio de convênio com o SUS, atendimento ambulatorial pré e pós-transplante (principalmente no fornecimento dos medicamentos imunossupressores posterior ao transplante renal), unidade especializada para internações hospitalares, procedimentos cirúrgicos e diagnósticos de alta complexidade aos pacientes atendidos.3,11,17
Frente a esses achados, indica-se a importância de encaminhar precocemente pacientes que ingressam em TRS para a realização do transplante renal enquanto aguardam em lista única de espera, tendo em vista que o tempo em diálise pode influenciar negativamente na identificação de um doador compatível e no tempo de sobrevida do órgão transplantado. Os profissionais de saúde devem estar atentos para as melhorias na assistência à saúde dos pacientes renais em terapia dialítica, já que a condição clínica e o desenvolvimento de comorbidades podem inativar o paciente em lista ou mesmo impedi-lo definitivamente de realizar o transplante renal.
Ao se conhecer o perfil da população que aguarda em lista única para o transplante renal, novas estratégias de cuidados em saúde podem ser traçadas para redução principalmente das taxas de morbidade e mortalidade. Nota-se carência de atendimento da demanda e altos índices de recusa. Conclui-se que a identificação e análise do perfil dos pacientes podem subsidiar os profissionais de saúde atuantes na área clínica, facilitando o manejo das atividades desenvolvidas em campo. A caracterização dos pacientes inscritos em lista de espera para o transplante renal é necessária em todos os centros transplantadores, assim como em centros de tratamento de terapia renal substitutiva, pois os aspectos sócio populacionais podem determinar os tipos de comprometimentos resultantes da doença renal crônica, assim como sua evolução no período pós transplante renal.