versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.11 Rio de Janeiro nov. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152111.22532015
As iniquidades sociais, ainda vigentes no Brasil apresentam natureza histórica num sistema de proteção social fragmentado e desigual. No final da década de 80, movimentos sociais promoveram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) que tem como princípios doutrinários, e também como desafios a serem alcançados: a equidade, a universalidade e a integralidade. Após 27 anos de criação do SUS, os investimentos na infraestrutura e na organização da oferta de serviços com priorização da atenção primária promoveram melhorias no acesso à assistência à saúde1. O estímulo à participação social e à oferta de ações de promoção e prevenção cooperam na conscientização da população sobre seu direito de atenção à saúde2. Nesse contexto, com o intuito de garantir o acesso aos serviços públicos de saúde, há a necessidade de superar os problemas ocasionados pelo envelhecimento populacional, acumulação e transição epidemiológica, além da necessidade de mudanças no modelo de atenção à saúde3. O aumento da população idosa; decorrente de transformações sociais, demográficas, econômicas e das mudanças de hábitos4; gera aumento na demanda por serviços de saúde5. Deve-se considerar ainda as diferentes realidades e necessidades de saúde da população idosa6,7, incluindo a saúde bucal desse estrato populacional.
A presença de agravos bucais em idosos pode comprometer aspectos relacionados à comunicação, capacidade mastigatória, autoimagem8, assim como a qualidade de vida dessas pessoas9,10. Os idosos brasileiros, em especial, foram vítimas de um modelo de assistência odontológica excludente e mutilador11,12, gerando uma alta prevalência de edentulismo13,14. Ao contrário do que ocorre com serviços médicos, a maioria dos idosos brasileiros não tem usado o SUS quando busca assistência em saúde bucal15. Segundo dados dos inquéritos populacionais de saúde bucal realizados no país, constatou-se que em 2002/200313, 5,83% dos idosos nunca haviam usado serviços odontológicos, já em 2010, essa proporção foi de 14,7%14.
Esse retrato sugere a ineficácia do SUS e das políticas públicas de saúde bucal quanto ao princípio da universalidade, ou seja, garantia universal do acesso e uso dos serviços odontológicos. Entretanto, as causas do aumento na proporção de idosos que nunca haviam usado serviços odontológicos não podem ser identificadas, pois os inquéritos apresentaram delineamento transversal. Observa-se ainda que o uso de serviços odontológicos é predominantemente privado e que iniquidades econômicas também podem ter impactado nesta redução do acesso nos últimos anos13,14. O conceito de “uso” de serviços de saúde é compreendido como todo contato direto (consultas, hospitalizações) ou indireto (realização de exames preventivos e diagnósticos) com os serviços de saúde16. Já o conceito de acesso refere-se à necessidade e obtenção de serviços de saúde que pode promover melhorias nos desfechos de saúde16,17. Enfim, o uso de serviços de saúde não necessariamente expressa melhorias no acesso aos mesmos.
O acesso aos serviços odontológicos no Brasil, por décadas, caracterizou-se pelo foco voltado para crianças em idade escolar18, posteriormente na prática privada e em serviços assegurados a trabalhadores urbanos, com carteira assinada. Constata-se um vazio assistencial no que se refere ao acesso aos serviços odontológicos para as populações que não se enquadravam nesses quesitos11. Uma expansão no acesso à assistência odontológica pública/governamental ocorreu a partir dos anos 2000 através da incorporação da equipe de saúde bucal na estratégia saúde da família19, com intuito de garantir tal acesso, de superar as desigualdades sociais e de atender a demanda reprimida, incluindo os idosos. Ressalta-se que o uso desses serviços, fato decorrente da melhoria da garantia do acesso, tem sido avaliado no contexto internacional20-22 e brasileiro12,23-24. Estudos23-26 prévios ao inquérito de 2010 analisaram o uso de serviços odontológicos no Brasil e evidenciaram um aumento na proporção de pessoas que utilizaram os serviços públicos/governamentais nos últimos anos27, mas este aumento não foi evidenciado nos últimos dois levantamentos epidemiológicos de âmbito nacional13,14. Dentre as fundamentações teóricas utilizadas para avaliar os determinantes relacionados ao uso de serviços odontológicos, destaca-se o modelo teórico proposto por Andersen e Davidson28 em 1997, adotado em estudos prévios23,24.
O modelo teórico proposto por Andersen e Davidson28 foi previamente traduzido para o português brasileiro e descrito em outro trabalho12 e é o mais utilizado para se analisar os determinantes do uso. Neste modelo, entende-se que as características do contexto, o sistema de saúde bucal e as características pessoais das distintas populações influenciam os comportamentos de saúde bucal28. Enfim, essas características têm o papel de restringir ou predispor as pessoas ao uso dos serviços odontológicos29. Variáveis relacionadas ao contexto têm sido associadas a um maior ou menor uso de serviços entre os idosos, especialmente entre aqueles com menor renda, o que sugere iniquidades12,24,30. Estudos prévios investigaram ainda a associação entre o uso destes serviços com aspectos sociodemográficos; condições objetivas de saúde (raça, renda, escolaridade)24,31-33; condições subjetivas de saúde, tais como autopercepção da saúde e autopercepção da necessidade de tratamento; assim como com comportamentos relacionados à saúde12,23,26. Por outro lado, não foram encontrados estudos epidemiológicos que identificaram fatores associados ao uso de serviços odontológicos ofertados pelo SUS para a população idosa.
O respeito aos princípios doutrinários do SUS, como o acesso universal e equânime a serviços e ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, configura-se como proposta norteadora do sistema1. O princípio de equidade, de que trata este artigo, reconhece que os indivíduos são diferentes entre si e merecem, portanto, tratamento diferenciado que elimine ou reduza as desigualdades. Ou seja, o tratamento desigual é justo quando é benéfico ao indivíduo mais carente34. Assim, a análise do perfil de utilização de serviços de saúde é importante por permitir caracterizar a população usuária, identificar suas condições de saúde e suas motivações para a procura, elementos fundamentais para o planejamento e organização das ações de saúde34. Ao considerar as várias dimensões que interferem no uso de serviços24, este estudo objetivou avaliar se um dos princípios doutrinários do SUS, equidade, tem sido alcançado no âmbito da oferta de serviços odontológicos entre idosos.
Trata-se de um estudo transversal analítico conduzido entre idosos (65-74 anos) de um município brasileiro de grande porte populacional (Montes Claros - Minas Gerais), em que se utilizaram os critérios de avaliação das condições de saúde bucal propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS)35, em 1997, e adotados no SB Brasil 2002/200313. Considerou-se uma amostra probabilística, complexa, por conglomerados em dois estágios (setores censitários e quadras), e representativa da população. O cálculo amostral estimou a ocorrência dos eventos ou doenças em 50% da população, um erro amostral de 5,5%, nível de confiança de 95%, deff (design effect) igual a 2,0, e taxa de não resposta de 20%, para compensar as possíveis perdas. Estimou-se uma amostra de 740 idosos.
A coleta dos dados ocorreu nos domicílios pertencentes aos setores e quadras sorteados, tendo sido feita por 24 cirurgiões-dentistas treinados e calibrados (Kappa inter/intraexaminadores e coeficiente de correlação intraclasse) para a realização das entrevistas e exames intrabucais, que foram realizados em ambiente amplo, sob iluminação natural, empregando-se espelho clínico bucal e sonda CPI previamente esterilizados. Os examinadores que participaram da coleta de dados apresentaram concordância ≥ 0,60, conforme escala proposta por Fleiss36 e modificada por Cicchetti et al.37 (ICC ≥ 0,61 e Kappa ≥ 0,61). Os dados foram registrados no programa coletor de dados em saúde, desenvolvido para esta pesquisa, empregando-se computador de mão.
Participaram do estudo apenas os idosos que não apresentavam problemas cognitivos, que relataram ter utilizado serviços odontológicos e que responderam à pergunta referente ao local do serviço utilizado. Os idosos sorteados foram submetidos à avaliação cognitiva empregando a versão validada no Brasil do Mini Exame do Estado Mental (MEEM)38. Foram adotados pontos de corte diferentes para análise do MEEM, segundo os níveis de escolaridade do idoso, 21 para idosos analfabetos, 22 no grupo de baixa escolaridade (1 a 5 anos de estudo), 23 nos idosos com média escolaridade (6 a 11 anos de estudo) e 24 no grupo de alta escolaridade (12 ou mais anos de estudo)39. Os idosos com pontuação no MEEM inferior à definida pelo ponto de corte foram identificados como idosos com comprometimento cognitivo e não foram considerados nessa investigação. Ao final do emprego desses critérios de inclusão e exclusão, a população de estudo ficou reduzida.
A variável dependente foi o uso de serviços no SUS, que foi construída a partir da pergunta: Onde utilizou o serviço odontológico? (serviço público, serviço privado liberal, serviço privado por planos e convênios, serviço filantrópico e outros). A variável diz respeito à consulta odontológica por parte do entrevistado durante toda a sua vida e não nos últimos meses ou anos, conforme foi aferido em alguns trabalhos26,40. Em seguida, a variável foi transformada em dicotômica: “SUS” (serviço público) e “outros” (serviço privado liberal, serviço privado por planos e convênios, serviço filantrópico, outros).
As variáveis independentes foram reunidas em quatro blocos de acordo com o modelo teórico de Andersen e Davidson28: demográficas e socioeconômicas (idade, sexo, raça autodeclarada, estado civil, anos de estudo, renda per capita); acesso a informações em saúde bucal (informações sobre como evitar problemas bucais; sobre higiene bucal e câncer bucal); comportamentos/sistema de atenção à saúde bucal (realização do autoexame de boca; frequência da limpeza diária da cavidade bucal; motivo uso, tempo de uso do serviço odontológico, avaliação do atendimento); e desfechos em saúde, sendo este último dividido em condições objetivas (edentulismo, uso de prótese dentária e necessidade de prótese dentária) e subjetivas de saúde (autopercepção da necessidade de tratamento, da saúde bucal, da mastigação, da aparência, relacionamento afetado pela saúde bucal, sensibilidade dolorosa em dentes e gengiva nos últimos seis meses e incômodo na cabeça e no pescoço). A coleta de dados sobre acesso a informações sobre saúde bucal foi realizada através das perguntas: Recebeu informações sobre como evitar problemas bucais? Você recebeu orientações sobre higiene bucal nos serviços odontológicos ao longo da vida? Você recebeu orientações sobre como evitar o câncer bucal nos serviços odontológicos ao longo da vida? As perguntas que geraram as demais variáveis relacionadas ao comportamento/sistema de atenção à saúde bucal foram: Você já realizou autoexame de boca? Quantas vezes por dia você limpou os dentes na última semana? Por que foi ao dentista? Há quanto tempo foi ao dentista? Como você avalia o atendimento que recebeu? As perguntas que deram origem às variáveis subjetivas dos desfechos em saúde foram: Você considera que necessita de tratamento odontológico atualmente? Como classificaria sua saúde bucal? Como classificaria sua mastigação? Como classificaria a aparência dos seus dentes e gengiva? De que forma a sua saúde bucal afeta o seu relacionamento com as outras pessoas? O quanto de dor seus dentes e gengivas causaram nos últimos 6 meses?
Para a análise dos dados, empregou-se o software PASW Statistics 18.0. Realizou-se a correção pelo efeito desenho, já que o estudo baseou-se em amostra complexa por conglomerados em dois estágios. Na análise descritiva incluiu-se a frequência absoluta (n), a frequência relativa (%) e a frequência relativa com correção pelo efeito de desenho (%*), o erro padrão e o deff para variáveis categóricas. Para as variáveis discretas, idade e renda percapita, foram apresentados a média e o desvio padrão. Em seguida, foram conduzidas análises bivariadas a partir do Teste Qui-quadrado, ajustado através da correção pelo efeito do desenho. Foram incluídas nas análises múltiplas hierarquizadas somente as variáveis que apresentaram nível de significância (valor-p) igual ou inferior a 0,20. Foram feitas regressões logísticas hierarquizadas para estimativa dos modelos múltiplos, inserindo cada um dos quatro blocos de variáveis de acordo com os fatores distais e proximais do modelo teórico utilizado e modificado pela junção dos determinantes primários e exógenos em um único bloco. O modelo final apresenta os valores ajustados das variáveis que permaneceram associados ao nível de p ≤ 0,05, com intervalos de 95% de confiança em cada uma das etapas da análise hierarquizada.
Os princípios éticos desse estudo estiveram de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde do Brasil, n°196/96, sob aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, CEP/Unimontes. Todos os participantes do estudo assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Dos 736 idosos avaliados, 480 foram incluídos no presente estudo, uma vez que 123 apresentavam problemas cognitivos e, dentre os que restaram, 12 nunca haviam usado serviços odontológicos. A prevalência do uso do serviço odontológicos provenientes do SUS foi de 31,2%. A média de idade da amostra foi de 68,6 (± 3,05), com a escolaridade média de 4,3 anos de estudo (± 4,22). A análise descritiva revelou uma população com predominância do sexo feminino, de baixa renda, com baixa escolaridade e que, em sua maioria, utilizou o serviço odontológico há mais de um ano (Tabela 1).
Tabela 1 Análise descritiva do tipo de serviço odontológico utilizado, características demográficas e socioeconômicas, sistema de atenção à saúde bucal, acesso a informações em saúde, comportamentos e desfechos em saúde entre idosos de Montes Claros – MG. 2009 (n = 480).
ε Erro padrão. Deff = Efeito de desenho. * Com correção pelo efeito de desenho. ** variação no n.
Nas análises bivariadas, o uso de serviços no SUS associou-se (p ≤ 0,20) a variáveis referentes às características sociodemográficas, acesso a informações em saúde bucal, comportamentos/sistema de atenção à saúde bucal e aos desfechos em saúde, por meio das condições objetivas e subjetivas (Tabela 2). Considerou-se esta associação para selecionar as variáveis para compor o modelo logístico hierarquizado.
Tabela 2 Análise bivariada dos fatores associados ao uso de serviços odontológicos provenientes do SUS entre idosos de Montes Claros. 2009.
Na análise múltipla hierarquizada (p ≤ 0,05), identificou-se que o uso de serviços odontológicos do SUS foi maior à medida que a renda e a escolaridade foram diminuindo, e também naqueles idosos que usavam os serviços odontológicos para procedimentos que não fossem de rotina/manutenção, e sim para sangramentos, cavidade, dor e que tiveram o relacionamento afetado por problemas bucais. Além disso, constatou-se que esse uso foi menor entre aqueles que não realizaram o autoexame da boca e que consideravam o atendimento como regular, ruim ou péssimo (Tabela 3).
Tabela 3 Análise de regressão logística múltipla hierarquizada dos fatores associados ao uso de serviços odontológicos provenientes do SUS entre idosos de Montes Claros. 2009.
Ref.: categoria de referência. * p ≤ 0,05.
A Tabela 4 apresenta o modelo final e ajustado e seus respectivos R2.
No Brasil coexistem três sistemas de saúde: um público e universal (SUS); o suplementar baseado na oferta de seguros e planos de saúde (de adesão voluntária ou por parte do empregador) e o privado, com o pagamento direto ao se consumir o serviço. Este trabalho encontrou uma menor proporção (7,0%) de uso de planos de saúde por idosos, se comparado com a proporção de brasileiros que os tinham (17,9% em 2008). Além disso, o uso dos serviços odontológicos privados (60,9%), por idosos, foi superior à prevalência encontrada na população brasileira em geral (51,6%)41. A prevalência de idosos que utilizam o serviço público neste trabalho foi semelhante ao encontrado entre brasileiros da mesma faixa etária14 no levantamento nacional, mas superior a outros estudos prévios também conduzidos entre idosos no Brasil, que estudaram amostras de conveniência12,42, e aquém de países da Europa, que chegam a alcançar taxas de 80% de uso de serviços odontológicos no serviço público, entre idosos43.
As diretrizes, para o processo de trabalho em saúde bucal no serviço público, orientam os profissionais para que desenvolvam ações programadas de promoção à saúde, prevenção de doenças e de assistência, voltadas ao controle de doenças crônicas e às populações mais vulneráveis do território41. As equipes de saúde bucal, que atuam na atenção básica, devem adotar métodos de classificação de risco familiar e individual que orientem o uso dos serviços odontológicos públicos, especialmente para as pessoas que mais necessitam. Seriam incluídas nestes critérios as famílias escolhidas a partir de análise de risco social, pela realização de levantamento de necessidades odontológicas e pela definição de grupos prioritários tais como gestantes, pacientes com necessidades especiais, hipertensos, idosos, dentre outros.
Este estudo revelou que o uso dos serviços odontológicos no SUS foi maior entre os idosos que vivem sob condições de vulnerabilidade, o que sugere que a busca pelo principio da equidade tem sido alcançada. O uso foi maior à medida que a renda e a escolaridade diminuíram.
A associação entre menor renda e maior uso do serviço odontológico público foi previamente identificada15,40,42. Uma maior renda familiar pode contribuir com a possibilidade de acesso aos serviços privados44,45, sendo, portanto, a baixa renda um fator que influencia na iniquidade de acesso. Ressalta-se que o acesso aos serviços privados pode-se configurar como uma alternativa efetiva, quando se considera algumas barreiras aos serviços públicos, tais como tempo de espera, sendo esta alternativa prejudicada pela baixa renda dos indivíduos. Outro estudo46, que analisou as desigualdades no uso de serviços de saúde, observou que as características que mais levam ao uso desigual não estão relacionados à necessidade em saúde e sim à renda, à localização geográfica e à presença de um plano de saúde privado entre as pessoas mais ricas.
Identificou-se que o uso de serviços odontológicos no SUS foi maior entre os idosos com menor escolaridade. A população idosa já sofre com barreiras no acesso a serviços de saúde, decorrente de sua baixa escolaridade, fato previamente identificado em estudos conduzidos no Brasil23,45 e na Dinamarca, Suécia, Alemanha e Reino Unido43. As pessoas com maior escolaridade podem ter tido maior acesso a informações sobre a importância do uso regular dos serviços odontológicos44, promovendo a busca pelo serviço, seja ele público ou particular. Apesar da baixa escolaridade desse estrato etário, observa-se que o idoso com menor escolaridade apresentou maior chance de uso de serviços odontológicos no SUS, o que é motivo de reconhecimento. Os serviços devem contribuir com o principio da equidade e conferir ao ambiente clínico oportunidades de aprendizado, procurando assegurar a todos o acesso aos recursos necessários para que cuidados odontológicos sejam, efetivamente, um direito humano47 .
Outro fator importante a ser considerado nas ações em saúde dentro do SUS é o direito à informação, que tem impacto no comportamento e na adoção de estilo de vida e hábitos preventivos. Identificou-se que o uso de serviços odontológicos provenientes do SUS foi menor entre aqueles que não haviam realizado o autoexame da boca, sugerindo que o estímulo à prática do autoexame parece ser mais frequente naqueles que usaram o SUS. A importância da educação em saúde como ferramenta, que leva a hábitos e comportamentos saudáveis, já foi estabelecida na literatura18,48, somado-se a isso o fato de que ações educativas são mais frequentes nos serviços públicos49,50. O autoexame da boca está associado ao uso do serviço, pois a percepção da necessidade da assistência profissional em função da presença de alterações na cavidade bucal gera a demanda por assistência50, podendo levar a busca pelo serviço.
O motivo da utilização dos serviços odontológicos observado no SUS, no presente estudo, esteve mais relacionado à busca por tratamentos de sangramentos, cavidades e dor, do que um uso rotineiro para a preservação da saúde bucal. Tal achado indica que a demanda existente por cuidados em saúde bucal interfere na motivação do uso dos serviços odontológicos e evidencia que o controle das doenças bucais nesta faixa etária ainda não foi alcançado. Entretanto, ao ser analisada a realidade nacional14, verifica-se que o uso para atendimento de rotina foi mais positivo e em maior proporção do que se comparado ao país. Estudo prévio24 analisou o uso de serviços por rotina entre idosos dentados e edentados e percebeu iniquidades em diversos fatores, como barreiras geográficas, renda e aspectos relacionados à regularidade de acesso ao longo do tempo. Falando-se ainda sobre o tempo, este demonstrou um retrato mais desfavorável, pois foi encontrada uma menor prevalência de uso dos serviços odontológicos no último ano se comparada à realidade nacional em 201014.
Assim como em outras investigações, o precário estado da dentição evidencia a indesejável realidade do Brasil para essa faixa etária13,14. Observou-se, nesta investigação, um predomínio de idosos edêntulos (57,7%), um alto uso (79,4%) e necessidade de próteses (68,8%). Ressalta-se que no Brasil, a maior parte dos serviços odontológicos especializados, como a confecção de próteses dentárias, são ofertados no serviço público pelos Centros de Especialidades Odontológicas (CEO). Em alguns casos se depara com a falta de centros acessíveis ou mesmo de recursos financeiros para buscar a assistência privada. Um estudo que analisou o uso de serviços odontológicos por idosos em países europeus definiu como sendo o maior determinante do uso, o estado da dentição e a necessidade de tratamento43.
Os desfechos em saúde, ou seja, questões relacionadas às condições normativas32-34 e subjetivas30 de saúde bucal, estiveram associadas ao uso de serviços odontológicos em estudos prévios. Neste estudo, a análise hierarquizada não revelou que desfechos normativos estiveram associados ao uso de serviços odontológicos no SUS para a população idosa, mas evidenciou a importância dos fatores subjetivos na diferenciação do tipo de serviço procurado pelos idosos. As condições subjetivas foram investigadas em estudos que avaliaram a autopercepção de saúde bucal12,51, mas têm sido negligenciadas em análises sobre serviços de saúde entre idosos e na população em geral52-54. Porém, na presente investigação, foram encontradas associações entre o tipo de serviço odontológico utilizado e as condições subjetivas.
A importância dos dados referentes à autopercepção deve-se à possibilidade de verificar quando existe a necessidade de mudança de comportamento55 ou mesmo de buscar o serviço para resolver um incômodo percebido. Idosos que autopercebem sua aparência de forma negativa tendem a utilizar mais o SUS do que outros serviços, o que confere ao sistema público uma maior possibilidade de ser porta de entrada, mais acessível e facilitada, aos cuidados em saúde bucal para essa população.
Os idosos que apresentaram impacto causado por problemas bucais no seu relacionamento usaram mais o SUS do que outros tipos de serviços. Não foi encontrado outro trabalho que avaliasse este assunto, mas no levantamento epidemiológico de saúde bucal de 200313 foi percebido um menor uso de serviços no último ano para idosos que relataram impacto no seu relacionamento, sugerindo problemas de acesso. É importante salientar que as variáveis subjetivas estão muito relacionadas ao estado físico, psicológico e contextuais do individuo56 e, por isso, pode mudar até mesmo ao longo de um dia ou de uma semana. Captar a subjetividade ligada ao bem estar ou às consequências do adoecer é sempre difícil, pois envolve sentimentos e valores implícitos ao julgamento56. Levando em consideração o desenho de estudo adotado ser do tipo transversal, há uma limitação na interpretação dos resultados apresentados.
Ressalta-se que o uso de serviços odontológicos no SUS e as variáveis investigadas compõem um processo dinâmico e refletem a evolução de um sistema de saúde, que se aperfeiçoa e modifica ao longo do tempo. Sendo um estudo transversal, não é possível medir as variações temporais e nem estabelecer relações de causa e efeito. Além disso, outras variáveis referentes ao uso e à qualidade de assistência prestada devem ser consideradas em estudos posteriores. Apesar disso, o presente estudo identificou que as condições mais desfavoráveis relacionadas à pobreza, à educação, à desinformação, ao impacto nas relações pessoais e à doença obtiveram maior uso do serviço no SUS, mas os outros (privados, filantrópicos e planos de saúde) ainda representam a maioria dos atendimentos odontológicos.
As razões que explicam essas desigualdades são históricas e complexas, e as mudanças para esse enfretamento devem partir do governo, principalmente em nível local, que tem a função de colocar em prática as políticas públicas existentes, especialmente as que operam nos determinantes de saúde. Assim, espera-se que este estudo contribua com o aumento do conhecimento acerca dos fatores relacionados à equidade no uso de serviços odontológicos ofertados aos idosos no âmbito do SUS.