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Equivalência cultural da versão brasileira do Eating Assessment Tool - EAT-10

Equivalência cultural da versão brasileira do Eating Assessment Tool - EAT-10

Autores:

Maria Inês Rebelo Gonçalves,
Carla Bogossian Remaili,
Mara Behlau

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.25 no.6 São Paulo 2013 Epub 16-Dez-2013

http://dx.doi.org/10.1590/S2317-17822013.05000012

INTRODUÇÃO

Transtornos de deglutição, também denominados disfagias, ocorrem em grande parte da população. Na literatura, não há dados exatos a respeito da prevalência de disfagia. No entanto, estudos epidemiológicos indicam que ela pode estar ao redor de 22% em indivíduos acima dos 50 anos de idade( 1 ). Nos Estados Unidos da América, aproximadamente 10 milhões de indivíduos são avaliados por dificuldades de deglutição todos os anos( 2 ).

É importante ressaltar que as dificuldades de deglutição têm um impacto negativo em diversos aspectos da qualidade de vida(3) e podem contribuir com morbidade e mortalidade significantes( 4 ).

Podemos verificar a presença de disfagia em 20% dos pacientes diagnosticados com Doença de Parkinson( 5 ) e em 22% dos pacientes com esclerose lateral amiotrófica( 6 ). Esse número pode aumentar de 25 a 70% nos acidentes vasculares( 7 ).

A quantificação do impacto de uma disfagia, seja ele na qualidade de vida, nas complicações pulmonares, etc., deve ser feita de forma rápida e, preferencialmente, em triagem clínica, pelas consequências negativas do risco de problemas de deglutição.

Para quantificar esse impacto, assim como avaliar a evolução do paciente e guiar as decisões terapêuticas, vários protocolos têm sido desenvolvidos, com objetivos diferentes, como as Escalas FOIS( 8 ), uma escala de ingesta oral, de O'Neill( 9 ), de gravidade da disfagia, e de Rosenbeck( 10 ), de quantificação de penetração laríngea e/ou aspiração traqueal. Em sua grande maioria, os protocolos foram elaborados originalmente na língua inglesa e ganharam rápida popularidade clínica e científica.

O Scientific Advisory Committee of Medical Outcome Trust( 11 ) recomenda critérios de padronização para desenvolvimento de protocolos de avaliação de qualidade de vida e validações em outros idiomas que não os originais.

Para que esses instrumentos possam ser utilizados em outras realidades culturais, eles devem ser traduzidos e adaptados de acordo com as regras internacionais e, em seguida, devem ter suas propriedades de medida demonstradas num contexto cultural específico( 11 ). Assim, o instrumento deve ser cuidadosamente traduzido e culturalmente adaptado, fugindo da simples tradução literal que exclui os contextos culturais e sociais. Ao final do processo, o protocolo traduzido e adaptado deve ser testado, para se certificar de sua adequação e validade para a população, idioma e cultura em questão, seguindo as regras internacionais de adaptação linguística e equivalência cultural, validade, reprodutibilidade, sensibilidade e confiabilidade( 11 ).

O Eating Assessment Tool (EAT-10) foi conceitualmente desenvolvido a partir de informações de 482 pacientes para uso como um instrumento robusto de autoavaliação da identificação do risco de disfagia( 12 ), favorecendo a indicação de intervenção multidisciplinar o mais precocemente possível. Tal instrumento, com dez questões de formulação simples, fornece informações sobre funcionalidade, impacto emocional e sintomas físicos que um problema de deglutição pode acarretar na vida de um indivíduo.

O objetivo deste estudo foi realizar a equivalência cultural da versão brasileira do Eating Assessment Tool (EAT-10)( 12 ), por meio de adaptações culturais e linguísticas do instrumento.

MÉTODOS

Após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer nº 159.929), o questionário foi traduzido para a língua portuguesa por duas fonoaudiólogas brasileiras bilíngues, cientes do objetivo desta pesquisa, que realizaram a tradução conceitual, evitando o uso literal das palavras ou frases. A seguir, as duas traduções foram comparadas e compiladas em uma única. A retrotradução foi efetuada por uma terceira fonoaudióloga, brasileira, bilíngue, professora de inglês, que não participou da etapa anterior. A tradução e a retrotradução foram confrontadas entre si e também em relação ao conteúdo do instrumento original, sendo que discrepâncias existentes foram analisadas e discutidas por um comitê composto por três fonoaudiólogas especialistas em disfagia, com proficiência na língua inglesa, que realizaram as mudanças necessárias por consenso, produzindo um protocolo final, denominado Instrumento de Autoavaliação da Alimentação - EAT-10 (Anexo 1).

Para obtenção da equivalência cultural e validação da ferramenta, o EAT-10 foi aplicado em um grupo de 107 pacientes adultos, internados no Hospital São Paulo, sendo 30 deles provenientes de UTIs e 77 de enfermarias. Todos os indivíduos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Os critérios de inclusão foram: pacientes adultos, internados, com bom nível cognitivo, capacidade de leitura e/ou compreensão e com solicitação médica de avaliação fonoaudiológica.

Os critérios de exclusão foram: pacientes que apresentavam dificuldades quanto à leitura e/ou quanto à compreensão das sentenças e/ou instruções, falta de interesse ou indisponibilidade para participar do estudo, presença de alterações que inviabilizassem a aplicação do protocolo e instabilidade do quadro clínico.

Avaliou-se o poder discriminativo do EAT-10 por meio da análise da curva ROC.

RESULTADOS

Os pacientes responderam a todas as questões sem solicitação de esclarecimentos ou ajuda. Dos 107 participantes, apenas 13 tiveram as questões lidas pela pesquisadora por problemas de dificuldades de leitura ou ausência de óculos no momento do exame.

No processo de tradução e adaptação cultural, não houve modificação e/ou eliminação de nenhuma questão. A composição final da tradução do EAT-10 (Anexo 1), após adaptação cultural e linguística, apresenta dez questões, das quais três referem-se ao domínio funcional, por exemplo, "Preciso fazer força para beber líquidos"; três são relativas ao domínio emocional (efeito psicológico), por exemplo, "Meu problema para engolir me tira o prazer de comer"; e quatro referem-se ao domínio físico (sintomas orgânicos), por exemplo, "Meu problema para engolir me faz perder peso".

Para verificar a capacidade de diferenciar os indivíduos sem disfagia, ou disfagia leve, dos que apresentam problemas de deglutição em maior grau, por meio da soma dos resultados do EAT, foi determinada a curva ROC, que revelou que o instrumento tem um poder discriminativo de 0.7297 ou 72,97%, com p=0,0029. O ponto de corte obtido foi de três, com sensibilidade de 69,70% e especificidade de 72,00%, definido como limite de separação entre passa e falha na triagem da alimentação, com precisão considerada boa (Gráfico 1).

Gráfico 1 Curva de características de Operação do Receptor para discriminação de disfagia 

Legenda: AAC = área abaixo da curva de Operação do Receptor

Assim, o escore de três pontos, assim como na versão original, foi a nota de corte para o risco de disfagia, ou seja, a tradução do instrumento para a língua portuguesa não interferiu na nota de corte.

DISCUSSÃO

A obtenção da equivalência cultural é o início essencial do processo de validação de protocolos( 4 ), pois, a partir dela, todo o restante do processo pode ser realizado. Portanto, é por meio da adaptação cultural que um questionário traduzido pode ser direcionado à população da língua em questão.

A literatura é muito clara quanto à necessidade de especificidade de um protocolo de identificação de risco de disfagia, ou seja, o quão específico ele é para a população, situação ou patologia a que se destina. O EAT-10 traz uma importante contribuição para a identificação do risco e de sintomas de disfagia, com consequente indicação precoce de intervenção multidisciplinar e acompanhamento clínico do tratamento. Assim, um escore de três pontos no questionário já é indicativo de risco de disfagia, e o paciente deve ser encaminhado para avaliação fonoaudiológica da deglutição.

É importante ressaltar que o EAT-10 pode ser aplicado em todos os pacientes com suspeita de disfagia, desde que apresentem condições de respondê-lo. É um questionário simples, de rápida aplicação, não requer medidas visuais analógicas e tampouco fórmulas para cálculos. Além disso, pode ser aplicado por vários profissionais de saúde, o que pode favorecer o aumento de encaminhamentos para avaliação fonoaudiológica, contribuindo para intervenções mais precoces, redução de custos dos tratamentos e melhora da qualidade de vida.

O término do processo de validação do EAT-10 para o português brasileiro, já em fase de conclusão, possibilitará seu uso confiável na prática clínica e na pesquisa, pois a experiência de percorrer os passos para validação de um protocolo ajuda a compreender os aspectos comuns de pacientes com disfagia. Estudos futuros poderão realizar comparações de seus resultados por utilizarem um instrumento padronizado e validado para o nosso idioma, o que viabilizará um maior rigor científico.

CONCLUSÃO

Observou-se equivalência cultural do EAT-10 para o português brasileiro, sem a necessidade de modificação ou retirada de nenhuma questão do protocolo original.

REFERÊNCIAS

1. Howden CW. Management of acid-related disorders in patients with dysphagia. Am J Med. 2004;117(5A):44S-48S.
2. Domench E, Kelly J. Swallowing disorders. Med Clin North Am. 1999;83(1):97-113.
3. Lovell SJ, Wong HB, Loh KS, Ngo RY, Wilson JA. Impact of dysphagia on quality of life in nasopharyngeal carcinoma. Head Neck. 2005;27(10):864-72.
4. Palmer JB, Drennan JC, Baba M. Evaluation and treatment of swallowing impairments. Am Fam Physician. 2000;61(8):2453-62.
5. Volonté MA, Porta M, Comi G. Clinical assessment of dysphagia in early phases of Parkinson's disease. Neurol Sci. 2002;23(Suppl 2):S121-2.
6. Kidney D, Alexander M, Corr B, O'Toole O, Hardman O. Oropharyngeal dysphagia in amyotrophic lateral sclerosis: neurological and dysphagia specific rating scales. Amyotroph Lateral Scler Other Motor Neuron Disord. 2004;5(3):150-3.
7. Mann G, Hankey GJ, Cameron D. Swallowing disorders following acute stroke: prevalence and diagnostic accuracy. Cerebrovasc Dis. 2000;10(5):380-6.
8. Crary MA, Mann GDC, Groher ME. Initial psychometric assessment of a functional oral intake scale for dysphagia in stroke patients. Arch Phys Med Rehabil. 2005;86(8):1516-20.
9. O'Neil KH, Purdy M, Falk J, Gallo L. The dysphagia outcome and severity scale. Dysphagia. 1999;14(3):139-45.
10. Rosenbek JC, Robbins J, Roecker EB, Coyle JL, Wood JL. A penetration-aspiration scale. Dysphagia. 1996;11(2):93-8.
11. Scientific Advisory Committee of Medical Outcomes Trust. Assessing health status and quality of life instruments: attributes and review criteria. Qual Life Res. 2002;11(3):193-205.
12. Belafsky PC, Mouadeb DA, Rees CJ, Pryor JC, Postma GN, Leonard RJ, et al. Validity and reliability of the Eating Assessment Tool (EAT-10). Ann Otol Rhinol Laryngol. 2008;117(2):919-24.