versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.29 no.2 São Paulo 2017 Epub 13-Mar-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172015261
A fadiga vocal é uma percepção do indivíduo manifestada pelo aumento do esforço fonatório associado ao aumento da demanda vocal, que melhora com repouso vocal adequado(1). A fadiga vocal é também descrita como um sintoma de alteração vocal ou, quando associada a comportamentos negativos, é a causa de uma disfonia(2). Frequentemente, a presença de fadiga vocal é avaliada pela presença de uma variedade de sintomas(3-5). Existem várias definições de fadiga vocal na literatura, resultando em um aumento da dificuldade de se avaliar com precisão esse aspecto do ponto de vista do indivíduo(6,7).
Recentemente, um grupo de pesquisadores americanos desenvolveu e validou o Vocal Fatigue Index – VFI(7), um instrumento de autoavaliação respondido pelo paciente, elaborado à partir de um conjunto de sintomas que sinalizam a fadiga vocal e que colabora na identificação de indivíduos com esse problema. O protocolo americano apresenta 19 questões divididas em três domínios: fadiga e restrição vocal, desconforto físico associado à voz e recuperação dos sintomas com repouso(7).
De acordo com as normas internacionais do Scientific Advisory Committee of Medical Outcome Trust(8), para que um instrumento seja utilizado em outra língua e cultura é imprescindível a sua validação, cujo primeiro passo é a realização da adaptação cultural e linguística, resolvendo-se, assim, as diferenças de idioma, culturais e sociais que possam existir para a aplicação do instrumento na nova cultura e língua.
Dessa forma, o objetivo da presente pesquisa é desenvolver a equivalência cultural do protocolo VFI para o português brasileiro, por meio da adaptação cultural e linguística do protocolo.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp (CAAE: 09205412.1.0000.5505 e parecer n. 159.968, de 29/11/2012). Todos os sujeitos investigados concordaram em participar do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O VFI(7) foi traduzido para o português brasileiro por dois fonoaudiólogos brasileiros e bilíngues (Tradutor 1 – T1 e Tradutor 2 – T2), que realizaram a tradução conceitual. As traduções foram analisadas e comparadas por um comitê formado por cinco fonoaudiólogos especialistas em voz e com proficiência na língua inglesa. As diferenças encontradas foram discutidas e, quando necessário, modificações foram realizadas, chegando-se a uma versão traduzida final (versão em português – VP).
A versão final traduzida do protocolo foi retrotraduzida por um terceiro fonoaudiólogo brasileiro bilíngue, que não participou das etapas anteriores. A versão retrotraduzida foi comparada à versão inglês original do protocolo, chegando-se à versão em português com equivalência semântica e do idioma. As diferenças conceituais foram novamente discutidas pelo mesmo comitê de fonoaudiólogos que participou da etapa anterior, chegando-se à versão final com equivalência cultural e linguística do protocolo.
A versão final em português do protocolo VFI, assim como o original em inglês, é respondida pelo próprio paciente, de acordo com a frequência de ocorrência com que experienciam os sintomas: 0 = nunca, 1 = quase nunca, 2 = às vezes, 3 = quase sempre e 4 = sempre. Para a avaliação e verificação da equivalência cultural da versão em português brasileiro do instrumento, a opção “não aplicável” foi acrescida à chave de respostas e 20 indivíduos (13 mulheres e 7 homens, média de idade de 41 anos, com escolaridade de ensino fundamental a superior) com queixa vocal e diagnóstico de disfonia comportamental responderam a versão brasileira do VFI. As questões não aplicáveis foram desconsideradas da versão brasileira do questionário.
O critério de inclusão para os 20 participantes foi apresentar queixa vocal e disfonia de qualquer grau, tipo e etiologia. Os critérios de exclusão foram: usar medicamentos para doenças psiquiátricas e/ou ter alterações neurológicas que impossibilitassem a compreensão para o preenchimento do questionário.
A versão do VFI para o português brasileiro foi intitulada Índice de Fadiga Vocal – IFV. Os participantes não escolheram a opção não aplicável em nenhuma questão, dessa forma, nenhum item teve de ser eliminado ou modificado na adaptação cultural e linguística. O processo de tradução e adaptação cultural do protocolo encontra-se no Quadro 1.
Quadro 1 Processo de tradução e adaptação cultural e linguística do protocolo Vocal Fatigue Index – VFI(7) para o português brasileiro
Questões | Versão original em inglês(7) |
Tradução para o português brasileiro |
Retrotradução da VP para o inglês |
Comitê de fonoaudiólogos: equivalência semântica e do idioma |
Comitê de fonoaudiólogos: equivalência cultural e linguística |
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1 | I don’t feel like talking after a period of voice use | T1: Fico sem vontade de falar depois que falei um pouco mais T2: Perco a vontade de falar após o período de uso vocal VP: Fico sem vontade de falar depois que falei um pouco mais |
I don’t feel like talking after I had been speaking quite a bit | Não tenho vontade de falar depois de ter conversado por algum tempo | Fico sem vontade de falar depois que falei um pouco mais |
2 | My voice feels tired when I talk more | T1: Minha voz fica cansada quando eu falo demais T2: Minha voz fica cansada quando eu falo muito VP: Minha voz fica cansada quando falo muito |
My voice gets tired when I speak a lot | Minha voz fica cansada quando eu falo muito | Minha voz fica cansada quando eu falo muito |
3 | I experience increased sense of effort with talking | T1: Sinto que o esforço aumenta na medida em que estou falando T2: Sinto que faço muito esforço para falar VP: Sinto que faço mais esforço quando eu falo |
I feel that I strain more when I speak | Sinto que faço mais força quando falo | Sinto que o esforço aumenta enquanto falo |
4 | My voice gets hoarse with voice use | T1: Minha voz fica rouca depois de um tempo de fala T2: Minha voz fica rouca quando falo VP: Minha voz fica rouca depois de falar |
My voice gets hoarse after I speak | Minha voz fica rouca depois que falo | Minha voz fica rouca depois que falo |
5 | It feels like work to use my voice | T1: Tenho que fazer força para produzir a voz T2: Tenho que forçar para produzir a voz VP: Tenho que fazer força para produzir a voz |
I have to strain to phonate | Preciso fazer força para falar | Tenho que fazer força para produzir a voz |
6 | I tend to generally limit my talking after a period of voice use | T1: Procuro evitar falar depois que usei muito a voz T2: Eu geralmente poupo minha voz após usá-la VP: Tento evitar falar depois que falei muito |
I try to avoid speaking after I talked a lot | Evito conversar depois que falei muito | Procuro evitar falar depois que usei muito a voz |
7 | I avoid social situations when I know I have to talk more | T1: Evito situações sociais quando sei que vou ter que falar muito T2: Evito situações sociais onde sei que falarei muito VP: Evito situações sociais quando sei que falarei muito |
I avoid social meetings when I know I will speak a lot | Evito eventos sociais quando sei que terei que falar muito | Evito situações sociais quando sei que vou ter que falar muito |
8 | I feel I cannot talk to my family after a work day | T1: Depois de um dia de trabalho sinto dificuldades para falar com minha família T2: Sinto que não consigo falar com minha família após um dia de trabalho VP: Tenho problemas para falar com minha família depois de um dia de trabalho |
I have trouble to talk to my family after a day of work | Tenho dificuldade em conversar com minha família depois de um dia de trabalho | Tenho dificuldades para falar com minha família depois de um dia de trabalho |
9 | It is effortful to produce my voice after a period of voice use | T1: Tenho que fazer força para produzir a voz depois que falei um pouco mais T2: Falar após um período de uso vocal requer muita energia VP: Tenho que fazer força para produzir a voz depois que falei um pouco mais |
I have to make an effort to phonate after I had been talking quite a bit | Preciso fazer certo esforço para falar depois de ter conversado por um tempo | Tenho que fazer força para produzir a voz depois que falei um pouco mais |
10 | I find it difficult to project my voice with voice use | T1: Tenho dificuldades de projetar a minha voz na medida em que vou falando T2: É difícil projetar minha voz VP: Tenho dificuldades em projetar minha voz quando falo |
I have trouble projecting my voice when I speak | Tenho dificuldade para projetar minha voz quando falo | Tenho dificuldade para projetar a minha voz enquanto falo |
11 | My voice feels weak after a period of voice use | T1: Minha voz fica fraca depois que eu falo um pouco mais T2: Minha voz fica fraca após um período de uso VP: Minha voz fica fraca depois que eu falo um pouco mais |
My voice gets weak after I had spoken quite a bit | Minha voz fica fraca depois de eu ter falado um pouco | Minha voz fica fraca depois que eu falo um pouco mais |
12 | I experience pain in the neck at the end of the day with voice use | T1: Quando uso da voz, fico com dor no pescoço ao final do dia T2: Eu tenho dores no pescoço no final do dia quando uso a voz VP: Eu tenho dores no pescoço no final do dia quando uso a voz |
I feel pain in the neck at the end of the day when I use my voice | No final do dia, quando falo, sinto dor no pescoço | Fico com dor no pescoço ao final do dia quando uso a voz |
13 | I experience throat pain at the end of the day with voice use | T1: Quando uso a voz, fico com dor na garganta ao final do dia T2: Eu tenho dores na garganta no final do dia quando uso a voz VP: Eu tenho dores na garganta no final do dia quando uso a voz |
I feel throat pain at the end of the day when I use my voice | No final do dia, quando falo, sinto dor na garganta | Fico com dor na garganta ao final do dia quando uso a voz |
14 | My voice feels sore when I talk more | T1: Tenho a sensação de que falar fica dolorido quando eu falo mais T2: Minha voz parece ruim quando falo muito VP: Quando falo muito sinto dor para falar |
When I speak too much I feel pain while speaking | Quando converso muito, sinto dor ao falar | Quando eu falo muito sinto dor para falar |
15 | My throat aches with voice use | T1: Minha garganta dói quando falo muito T2: Minha garganta dói quando falo VP: Minha garganta dói quando eu falo |
When I speak my throat hurts | Quando eu falo minha garganta dói | Quando eu falo minha garganta dói |
16 | I experience discomfort in my neck with voice use | T1: Sinto desconforto no pescoço quando falo T2: Sinto desconforto na região do pescoço quando falo VP: Quando eu falo sinto desconforto no pescoço |
When I speak I feel discomfort in the neck | Quando eu falo sinto desconforto no pescoço | Quando eu falo sinto desconforto no pescoço |
17 | My voice feels better after I have rested | T1: Quando eu descanso minha voz melhora T2: Minha voz melhora quando descanso VP: Quando eu descanso minha voz melhora |
When I rest my voice gets better | Quando eu descanso minha voz melhora | Quando eu descanso minha voz melhora |
18 | The effort to produce my voice decreases with rest | T1: Quando eu descanso, faço menos força para falar T2: O esforço para produzir a voz diminui quando descanso VP: Quando eu descanso, faço menos força para falar |
When I rest I strain less when I speak | Quando eu descanso faço menos força para falar | Quando eu descanso faço menos força para falar |
19 | The hoarseness of my voice gets better with rest | T1: Quando eu descanso, minha voz fica menos rouca T2: Minha rouquidão diminui quando descanso VP: Quando eu descanso, minha voz fica menos rouca |
When I rest my voice gets less hoarse | Quando eu descanso minha voz fica menos rouca | Quando eu descanso minha voz fica menos rouca |
Legenda: T1 = tradutor inglês-português número 1; T2 = tradutor inglês-português número 2; VP = versão em português da compilação das traduções do T1 + T2
Da mesma forma que o original VFI, a versão traduzida IFV possui 19 questões divididas em três domínios: o primeiro é formado por 11 itens relacionados à fadiga e restrição vocal; o segundo possui 5 itens referentes ao desconforto físico associado à voz e o terceiro, três itens relacionados à recuperação da fadiga com repouso vocal (Anexo A).
A fadiga vocal é um tema atual e de relevância para pesquisas com indivíduos disfônicos ou populações de risco(3-5). Poucos estudos desenvolveram instrumentos específicos para a autoavaliação da fadiga vocal, nenhum desenvolvido ou validado para o português brasileiro, fazendo-se necessária a adaptação cultural e linguística como primeiro passo para a validação de tais instrumentos(8).
A adaptação cultural e linguística visa a adequação dos itens de um instrumento para sua aplicabilidade na população em questão, para que as possíveis diferenças socioculturais entre as culturas e os idiomas sejam resolvidas, não sendo uma mera tradução literal do instrumento original8, possibilitando seu uso pelos indivíduos dessa cultura alvo. Tal metodologia de adaptação cultural tem sido utilizada para a tradução e validação de outros instrumentos de áreas da Fonoaudiologia para o português brasileiro(9-15).
Com a conclusão do processo de tradução e adaptação cultural e linguística para o português brasileiro, o processo de validação do IFV foi iniciado, objetivando-se demonstrar as propriedades psicométricas de validade, confiabilidade e sensibilidade da versão brasileira, a fim de possibilitar seu uso confiável em pesquisas e na prática clínica(8). Pesquisas futuras com o IFV poderão comparar aspectos da fadiga vocal de indivíduos disfônicos com outros instrumentos de autoavaliação ou, ainda, incluir características da fadiga vocal como item de avaliação multidimensional para grupos de risco.
A versão para o português brasileiro do instrumento, chamada Índice de Fadiga Vocal – IFV, apresenta equivalência cultural e linguística em relação ao original Vocal Fatigue Index – VFI. A validação do IFV para o português brasileiro está em andamento.