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Erros de base fonológica na escrita: codificação de surdas e sonoras, segmentação e juntura vocabular

Erros de base fonológica na escrita: codificação de surdas e sonoras, segmentação e juntura vocabular

Autores:

Mirian Aratangy Arnaut,
Maria Mercedes Saraiva Hackerott,
Gabriela Juliane Bueno,
Pablo Felício Nepomuceno,
Clara Regina Brandão de Ávila

ARTIGO ORIGINAL

Audiology - Communication Research

versão On-line ISSN 2317-6431

Audiol., Commun. Res. vol.19 no.3 São Paulo jul./set. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/S2317-643120140003000010

INTRODUÇÃO

A escrita pode ser entendida como uma representação da fala. Na escrita alfabética, a ortografia desempenha o papel fundamental de neutralizar as variações da fala(1). A modalidade oral da língua varia conforme o tempo, o espaço e o grupo social em que a fala se situa e de acordo com cada situação discursiva. Apesar de ser um padrão oficial imposto por legislação, a ortografia também varia no tempo. A maior ou menor correspondência com a fala é que torna a escrita mais ou menos transparente(2-4).

O aprendizado da escrita depende, fundamentalmente, da adequação do desenvolvimento fonológico e do processamento das informações fonológicas, que permitem a associação de fonemas e grafemas. O substrato fonológico, categorizado a partir de memórias auditivas de experiências linguísticas, permite a escrita de palavras nunca antes ouvidas ou visualizadas. Apesar da reconhecida importância do processamento de diferentes informações, a informação fonológica, sem dúvida, é a base do aprendizado do princípio alfabético, que é a etapa inicial para o alcance do domínio ortográfico. Porém, para esse resultado, além do processamento das informações fonológicas, são necessárias competências morfossintáticas e metagráficas(4,5), conhecimento vocabular, memória auditiva e visual e condições educacionais, como as características do método e dos fatores socioculturais do contexto de ensino(2-8). Assim, hipóteses baseadas nas análises fonológica, semântica, morfossintática e na memória das palavras, quer faladas, quer escritas, completam o aprendizado ortográfico(9,10).

Durante o processo de apropriação do sistema ortográfico, é natural que o escolar cometa alguns erros. A necessária classificação desses erros pode auxiliar a identificação de possíveis déficits de habilidades subjacentes ao aprendizado do princípio alfabético, alguns deles próprios do desenvolvimento e superáveis ao longo do processo de alfabetização e outros, que só poderão ser resolvidos por meio de intervenções clínicas(4,11,12). Nos transtornos de aprendizagem, os erros decorrentes de processos ortográficos parecem ser os mais frequentes, muito embora sejam seguidos, em prevalência, pelos erros relacionados a processos fonológicos(12).

Diferentes estudos propuseram a classificação desses erros encontrados no início do aprendizado e/ou nas dificuldades ou nos transtornos do aprendizado. Alguns erros ortográficos são determinados por déficits de base fonológica e, de forma geral e consensual, têm sido assim classificados: erros na codificação de sílabas complexas; erros por troca de letras - as mais frequentes são observadas entre consoantes surdas e sonoras; erros de segmentação - pela ausência de segmentação ou pela segmentação indevida, observadas na escrita de textos(11). Há pesquisadores que os classificam baseados semiologicamente em erros de ortografia natural, que têm relação direta com o processamento de linguagem e de ortografia arbitrária, e erros diretamente relacionados com a memória visual, conhecimento de regras ortográficas, léxico e morfologia(4).

Durante o aprendizado da escrita, a criança elabora uma série de hipóteses sobre o registro das palavras e dos períodos. Aprende a perceber que a palavra é composta por sílabas, formadas por fonemas que são registrados graficamente por letras. Além disso, na comunicação oral, mais precisamente na fala encadeada, as sílabas são pronunciadas em grupos tonais, que não necessariamente correspondem a uma palavra(1). A pronúncia dos grupos tonais nem sempre coincide com os espaços gráficos que marcam as fronteiras das palavras. Na comunicação oral, um grupo tonal pode ser formado por mais de uma palavra. Essa diferença entre a pronúncia e o registro escrito não é levada em consideração em atividades que têm a palavra como unidade de análise, pois o registro de palavras isoladas não reproduz o mesmo sistema de pausas e entonação da fala(1,13,14). Na fala encadeada, a estrutura fônica da palavra, geralmente, sofre alterações pela coarticulação de seu final com o início da palavra seguinte, podendo ocorrer, até mesmo, a reestruturação dos padrões silábicos. Tal fenômeno é observado na conhecida juntura vocabular ou na segmentação indevida(12,15,16). No Português do Brasil, a sílaba tônica tem volume sonoro ou duração maior do que as sílabas átonas, o que caracteriza um ritmo acentual e não silábico do idioma(14). Essas informações são fonológicas e podem influenciar, por exemplo, a escrita de sintagmas, em que o escolar deve perceber que a divisão ortográfica dos itens lexicais nem sempre condiz com a segmentação fonética. Portanto, para identificar, na escrita, erros caracterizados por juntura vocabular e pela segmentação indevida, é necessário analisar a frase, o sintagma, e não apenas a palavra isolada.

Não obstante essa característica, grande parte das sondagens ou avaliações da capacidade do aprendizado ortográfico é realizada apenas com o ditado de palavras isoladas. O mesmo pode acontecer na clínica fonoaudiológica ou psicopedagógica, que busca identificar as dificuldades e alterações do aprendizado da escrita, principalmente aquelas relacionadas aos déficits de processamento ortográfico. Em ditados de palavras, os erros de juntura vocabular e de segmentação indevida são, então, desconsiderados(2).

A justificativa deste estudo se apoia na necessidade de determinar a natureza, as características e a classificação dos erros, mas que podem ser considerados marcadores ou indícios de alterações ou déficits ligados a processamentos fonológicos, de responsabilidade da investigação e clínica fonoaudiológicas(17). Para tanto, investigou, por meio de um ditado de sintagmas, três tipos de erros baseados no desenvolvimento e conhecimento fonológico: codificação escrita de fonemas que se diferenciam pelo traço de sonoridade; junturas entre vocábulos (vocabulares) e segmentações indevidas, também consideradas relacionadas ao processamento fonológico. As trocas de letra cujos fonemas correspondentes se opõem pelo traço de sonoridade, além de muito frequentes(12), são mais prontamente reconhecidas na área do ensino e na clínica fonoaudiológica. A ligação com o desenvolvimento fonológico é facilmente identificada, até porque a persistência do ensurdecimento na fala de escolares não é incomum.

É necessário conhecer a natureza e as características de erros que, embora se manifestem ortograficamente, podem ser considerados marcadores ou indícios de alterações ou déficits de processamentos fonológicos. Essas alterações devem ser consideradas relevantes na clínica e investigação fonoaudiológicas(17), principalmente quando o escolar já passou da fase em que erros de segmentação, de juntura ou de trocas de letras são comuns e, de certa forma, esperados(1,12). Há poucos estudos relacionados a essa necessidade, que mostra ser mais clínica que de ensino, principalmente ao se considerar escolares que apresentam erros de escrita após a fase de aprendizado, em que esses erros são normais e esperados. Por isso, além da investigação sobre a presença de erros de codificação escrita de fonemas que se diferenciam pelo traço de sonoridade, outras alterações da escrita, como junturas vocabulares ou segmentações indevidas, tidas como associadas ao processamento fonológico, foram investigadas, com o intuito de auxiliar a reduzir possíveis distorções da clínica de avaliação fonoaudiológica no delineamento dos perfis fonológico ou ortográfico dos erros de escrita. Na perspectiva da literatura que distingue a produção entre as redes de ensino pública e particular, este trabalho distinguiu esses erros em ambas as redes de ensino(18,19).

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), espera-se que, desde o final do primeiro ciclo (5º ano) do Ensino Fundamental, os alunos não cometam erros ortográficos em “palavras de ortografia regular e de irregulares, mais frequentes”(20). De certa maneira, o erro ortográfico reflete processos cognitivos que indicam determinado modo de representar a fala. São traços visíveis do conhecimento, naquele momento. Os erros de ortografia decorrem de processos inerentes a toda a aprendizagem e manifestam a representação subjacente à forma escrita(21-23).

A literatura tem analisado, tabulado e normatizado erros, apenas em realizações de palavras isoladas. Questões sobre a percepção da fronteira de palavras são menos discutidas. Tampouco têm sido comparados erros em ditados de palavras isoladas(24), como os apresentados na escrita de palavras imersas em contexto frasal, nas diferentes redes do ensino fundamental(18,25). Este trabalho foi desenvolvido a partir da hipótese de que existem diferenças e que estas podem ser constatadas em proporções distintas nas duas redes de ensino.

Este estudo, portanto, procurou verificar, em escolares do Ciclo I do Ensino Fundamental, características do processamento da informação fonológica manifestadas na escrita, sob ditado de sintagmas, capazes de indicar possíveis correlações e algum impacto preditor entre os erros ortográficos analisados (de codificação de fonemas surdos e sonoros, de segmentação indevida, de juntura vocabular), segundo a rede de ensino. O tipo de erro de codificação de fonemas surdos e sonoros baseou a investigação da predição de aparecimento de um erro sobre o outro, uma vez que é o mais frequente(12) dentre os três escolhidos para análise.

MÉTODOS

Esta pesquisa é parte complementar do estudo piloto de um projeto submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e aprovado sob nº. 1768/11. Os Termos de Anuência e Termos de Consentimento Livre e Esclarecido foram assinados pelas instituições de ensino e pelos responsáveis dos escolares participantes, respectivamente, antes da coleta de dados.

Seleção da amostra

Foram selecionados 80 escolares (43 meninos e 37 meninas), na faixa etária entre 6 e 11 anos, regularmente matriculados do 2º ao 5º ano do Ensino Fundamental em escolas da rede pública estadual (PU) e particular (PA) do município de São Paulo. Para cada ano escolar, foram avaliados 20 escolares (10 PU e 10 PA).

A seleção dos escolares atendeu aos seguintes critérios de inclusão definidos previamente, para ambos os grupos: ausência de queixas ou de indicadores de déficits auditivos; ausência de queixas ou de indicadores de déficits visuais (não corrigidos); ausência de queixas ou de indicadores da presença de distúrbios neurológicos, comportamentais ou cognitivos; ausência de histórico de retenção escolar.

Os pais responderam a um questionário com dados sobre o desenvolvimento de seus filhos e os professores preencheram uma ficha sobre o desempenho dos escolares, para garantir a observância dos critérios de inclusão na amostra.

Instrumentos

A prova de ditado contou com uma lista de 34 sintagmas nominais, construídos a partir de palavras de alta frequência(25).

Procedimentos

1. Coleta de dados

As sessões de avaliação ocorreram em horários de aula, previamente estabelecidos pela coordenação e equipe docente, e em sala indicada pela direção. Os ditados foram aplicados ao longo do segundo semestre letivo, em 2012.

Os participantes receberam um lápis grafite e uma folha de papel com espaço determinado para a identificação dos dados cadastrais (nome, data e ano escola). Depois do preenchimento da identificação, os escolares receberam a seguinte instrução: “Vou ditar umas palavras e vocês devem escrever essas palavras na folha que receberam. Se for preciso, ditarei mais de uma vez. Se vocês errarem, façam um traço em cima do que escreveram e escrevam novamente ao lado. Vocês não poderão apagar nada.”

2. Análise de dados

Considerando-se os objetivos do presente trabalho, procedeu-se à identificação e à análise de possíveis erros ou imprecisões produzidas na prova de ditado de sintagmas nominais.

Para a análise e classificação dos erros de escrita, foram considerados apenas os erros na codificação de fonemas surdos e sonoros, de segmentação indevida e de juntura vocabular. Computou-se o total de erros presentes nas produções dos escolares, por tipo de erro e rede de ensino.

3. Método estatístico

Para o tratamento estatístico dos resultados, foram utilizados os testes apropriados para o alcance das análises necessárias a esta pesquisa.

A comparação entre os grupos foi feita por meio do teste de Mann-Whitney (equivalente não paramétrico do teste t para medidas independentes), dada a distribuição assimétrica das variáveis envolvidas.

A verificação da existência de correlação entre o número de erros surdos sonoros e as demais variáveis estudadas (juntura vocabular, segmentação indevida) foi realizada a partir do teste de correlação de Spearman, uma vez que não apresentavam distribuição normal (Kolmogorov-Smirnof).

Para avaliar o impacto preditor da variável “número de erros de codificação de fonemas surdos e sonoros nos desfechos de juntura vocabular” e “segmentação indevida”, utilizou-se modelos de regressão de Poisson, inflados em zero. Em razão da natureza não independente das observações (crianças do segundo ano, das duas redes, apresentaram contagem no número de erros mais similar entre si, que as crianças dos outros anos escolares), os modelos de regressão de Poisson foram controlados pela a estrutura em cluster (multinível), gerando assim, erros padrão robustos (EPR). Os modelos de regressão independente foram gerados tanto para PU, quanto para PA e a taxa de inflação foi considerada constante. O nível de significância adotado foi 0,05.

RESULTADOS

Estabeleceram-se comparações intergrupos, investigaram-se correlações entre as variáveis estudadas e avaliou-se o impacto preditor entre estas.

As comparações conduzidas pelo teste de Mann-Whitney mostraram que os escolares da rede particular de ensino (PA) erraram menos que os escolares da rede pública de ensino (PU), em todos os itens analisados. As diferenças encontradas foram significativas (Tabela 1).

Tabela 1 Desempenho ortográfico de escolares do ensino fundamental das redes pública e particular de ensino 

Variáveis PU
PA
Valor de p
Média DP Média DP
Surda sonora 5,40 1,10 1,17 0,34 <0,001*
Segmentação indevida 1,45 0,36 0,27 0,10 0,001*
Juntura vocabular 1,30 0,47 0,17 0,07 0,022*

* Valores significativos (p<0,05) - Teste de Mann-Whitney

Legenda: PU = Rede pública de ensino; PA = Rede particular de ensino; DP = desvio padrão

Utilizou-se a correlação de Spearman para investigar a existência de correlação entre os erros na codificação de fonemas surdos e sonoros e os demais tipos estudados - segmentação indevida e juntura vocabular (Tabela 2).

Tabela 2 Correlações entre os tipos de erros ortográficos de escolares do ensino fundamental da rede pública e particular de ensino 

Variáveis   Surda sonora Segmentação indevida Juntura vocabular
Surda sonora Coeficiente de correlação (r) 1,000 0,544* 0,267
Valor de p - 0,000 0,017
n 80 80 80

Segmentação indevida Coeficiente de correlação (r) 0,544* 1,000 0,414*
Valor de p 0,000 - 0,000
n 80 80 80

Juntura vocabular Coeficiente de correlação (r) 0,267* 0,414* 1,000
Valor de p 0,017 0,000 -
n 80 80 80

*Valores significativos (p<0,05) – Coeficiente de Correlação de Spearman

Para a PU, observou-se correlação significativa e positiva entre os erros ortográficos na codificação de fonemas surdos e sonoros e de segmentação indevida (r=0,535, p<0,001) e entre a segmentação indevida e a juntura vocabular (Tabela 3).

Tabela 3 Correlações entre os tipos de erros ortográficos de escolares do ensino fundamental da rede pública de ensino 

Variáveis   Surda sonora Segmentação indevida Juntura vocabular
Surda sonora Coeficiente de correlação (r) 1,000 0,535* 0,032
Valor de p - 0,000 0,843
n 40 40 40

Segmentação indevida Coeficiente de correlação (r) 0,535* 1,000 0,450*
Valor de p 0,000 - 0,004
n 40 40 40

Juntura vocabular Coeficiente de correlação (r) 0,032 0,450* 1,000
Valor de p 0,843 0,004 -
n 40 40 40

*Valores significativos (p<0,05) – Coeficiente de Correlação de Spearman

Na PA foram observadas correlações entre os erros na codificação de fonemas surdos e sonoros e de juntura vocabular (r=0,446*, p=0,004). Ao se desconsiderar a rede de ensino, observou-se que os erros na codificação de fonemas surdos e sonoros não se correlacionaram com os erros de segmentação indevida (r=0,270 p=0,092), mas correlacionaram-se com os de (r=544*, p<0,001) e de juntura vocabular (r=0,267*, p=0,017) (Tabela 4).

Tabela 4 Correlações entre os tipos de erros ortográficos de escolares do ensino fundamental da rede particular de ensino 

Variáveis   Surda sonora Segmentação indevida Juntura vocabular
Surda sonora Coeficiente de correlação (r) 1,000 0,270 0,446*
Valor de p - 0,092 0,004
n 40 40 40

Segmentação indevida Coeficiente de correlação (r) 0,270 1,000 0,212
Valor de p 0,092 - 0,189
n 40 40 40

Juntura vocabular Coeficiente de correlação (r) 0,446* 0,212 1,000
Valor de p 0,004 0,189 -
n 40 40 40

*Valores significativos (p<0,05) – Coeficiente de Correlação de Spearman

Verificou-se, além disso, que, na PU, o número de erros ortográficos na codificação de fonemas surdos e sonoros não foi preditor dos demais tipos de erros considerados nesta pesquisa. Todavia, na PA, todos os erros ortográficos foram preditos pelo número de erros na codificação de fonemas surdos e sonoros. Sendo assim, cada erro na codificação de fonemas surdos e sonoros aumentou 0,384 erros do tipo segmentação indevida e, por fim, aumentou 0,587 erros do tipo juntura vocabular (Tabela 5).

Tabela 5 Impacto preditor dos erros ortográficos do tipo troca “surda sonora” de escolares do ensino fundamental da rede pública e particular de ensino 

  PU
PA
  Impacto dos erros surda sonora em (b) EPR Valor de p 95% IC Impacto dos erros surda sonora em (b) EPR Valor de p 95% IC
Desfechos                    
Segmentação indevida -0,018 0,022 0,415 -0,061 0,025 0,384 0,100 <0,001* 0,188 0,580
Juntura vocabular 0,054 0,067 0,427 -0,079 0,186 0,587 0,201 0,004* 0,192 0,982

*Valores significativos (p<0,05) – Modelos de Regressão de Poisson inflados em zero

Legenda: PU = Rede pública de ensino; PA = Rede particular de ensino; IC = intervalo de confiança; EPR = erros-padrão robustos; (b) = Beta

DISCUSSÃO

O aprendizado da ortografia depende, dentre outros fatores, do conhecimento metalinguístico de fenômenos morfossintáticos, da adequação das representações e do processamento das informações fonológicas, que fundamentam a associação fonema-grafema(2,3,5-8). No Português, fonemas e grafemas estabelecem relações, ou biunívocas ou múltiplas.

Nesta pesquisa, os erros de natureza puramente ortográfica (irregularidades, representação múltipla), que apareceram em diferentes frequências de ocorrência, foram desconsiderados, dada a natureza do objeto de investigação, que se limitou a analisar os erros na codificação de fonemas surdos e sonoros, segmentação indevida e juntura vocabular.

É importante mencionar que, dentre os erros de codificação de fonemas surdos e sonoros, além daqueles de transparência ortográfica, encontraram-se, também, os que apresentavam interferência da opacidade da escrita em Português. Esse é o tipo de erro mais frequentemente referido na literatura(12) e também foi o mais numeroso nesta pesquisa, tanto na PU quanto na PA. Erros de segmentação indevida e de juntura vocabular também foram encontrados na escrita sob ditado de sintagmas (Tabela 1). Na construção de hipóteses sobre a escrita, o aprendiz é influenciado pela prosódia. Porém, como nem sempre a fronteira prosódica coincide com a vocabular, observaram-se, na escrita de escolares, junturas vocabulares e segmentações indevidas de palavras(15). Desta forma, os resultados desta pesquisa confirmam os da literatura.

Esses tipos de erros não podem ser considerados, ou encontrados, quando os protocolos avaliativos utilizam itens isolados(2). A utilização de sintagmas nominais para o ditado permitiu que se evidenciassem erros ligados à percepção da estrutura fonológica da palavra, ou de seus segmentos silábicos, ou de grupos tonais. Permitiu, também, que esses erros fossem comparados entre os escolares, entre os anos escolares(26) e entre as redes de ensino.

Assim como os erros mais numerosos de codificação de fonemas surdos e sonoros, a persistência e maior frequência de junturas vocabulares e de segmentações indevidas, principalmente em anos escolares mais adiantados, podem indicar dificuldades ainda não superadas no nível fonológico(12).

A análise estatística identificou desempenho de escrita similar entre os 2os anos escolares, mas desempenhos diferentes entre as redes de ensino (Tabela 1), quando observados os anos subsequentes. O número de erros de codificação de fonemas surdos e sonoros foi o de maior frequência nas duas redes e o que melhor as diferenciou, embora as separações indevidas e as junturas vocabulares também tenham evidenciado pior desempenho da PU, em relação à PA. Esses dados concordam com os encontrados na literatura, mas é preciso ressalvar que essa literatura refere-se a estudos com ditado de palavras isoladas, para a avaliação(2,3,7).

A correlação de desempenhos por tipo de erros (Tabela 2), na qual verificou-se que quanto mais erros na codificação de fonemas surdos e sonoros, mais erros de juntura vocabular e de segmentação indevida na escrita dos sintagmas dos escolares, pode indicar que esses erros são de mesma natureza fonológica. Entretanto, quando se buscou um padrão de correlações, separadamente, para cada rede de ensino foi possível observar, na PU, que os erros de codificação de fonemas surdos e sonoros correlacionaram-se positivamente apenas com a segmentação indevida e esta, por sua vez, correlacionou-se positivamente, também, com as junturas vocabulares (Tabela 3). As segmentações indevidas são a alocação de espaços dentro dos limites da palavra e podem indicar que a percepção do escolar pode estar direcionada para os constituintes mais baixos da hierarquia de organização fonológica, tais como a sílaba e o pé métrico(14,27). Esta evidência pode indicar, portanto, provável déficit na percepção da palavra como unidade linguística, levando o estudante a reproduzir as segmentações internas ao item lexical, em estágios iniciais da escrita ou na presença de algum transtorno, quando a frequência desse tipo de erro é alta. Indagaria-se se esta percepção faz parte do processo de desenvolvimento, se estaria ligada a déficit vocabular, ou se denotaria prejuízo ou atraso do processamento fonológico e/ou auditivo.

Por outro lado, na PA, somente a juntura vocabular correlacionou-se positivamente com os erros na codificação de fonemas surdos e sonoros (Tabela 4). As junturas vocabulares denotam a falta de espaço entre fronteiras vocabulares e podem ser preponderantemente influenciadas por constituintes mais altos da hierarquia fonológica(1), o seja, o grupo tonal, a frase fonológica, ou a frase entonacional. A forma como o escolar percebe essas unidades na língua pode influenciar sua escrita, dificultando o encontro dos limites vocabulares. Também na PA, os resultados mostraram a correlação entre erros de codificação de fonemas surdos e sonoros e juntura vocabular, em que o estudante percebeu o grupo tonal como unidade de significação, ao invés da palavra. Prejuízos de percepção de componentes fonológicos poderiam determinar a permanência desse tipo de escrita.

A diferença entre os padrões de correlações encontrados para cada rede de ensino mostrou que as características de desenvolvimento das habilidades ligadas ao processamento das informações fonológicas e ortográficas podem ser diferentes nos dois grupos de escolares (PU e PA). Observou-se que o número de erros de codificação de fonemas surdos e sonoros não foi preditor dos desfechos nas separações indevidas e junturas vocabulares, no modelo de regressão entre os escolares da PU (Tabela 5). Esse resultado parece se confirmar pelo fato dos erros do tipo surdo sonoro terem predito os demais erros investigados (a frequência de junturas vocabulares e de segmentações indevidas) na PA. Ou seja, na rede particular, tanto as separações indevidas quanto as junturas vocabulares foram preditas pelo número de erros de codificação de fonemas surdos e sonoros. Cada erro na codificação de surdos e sonoros aumentará 0,384 erros de segmentação de palavras, e 0,587 de junturas vocabulares.

Da análise dos resultados sobre o número de erros de codificação de fonemas surdos e sonoros, considerando-se o fato de terem ocorrido em menor número na PA, pode-se levantar a hipótese de que, nessa rede de ensino, talvez os erros sejam decorrentes de prejuízos ou déficits que caracterizem algum tipo de transtorno de aprendizagem. A maior variabilidade de outros tipos de erros encontrada na PU nos 4 anos escolares investigados, pode ter definido esse resultado. Ou seja, a variabilidade dos erros não foi definida apenas pelos valores de média de erros ou de desvio padrão, mas qualitativamente, a PU apresentou maior quantidade de tipos de erros que não foram considerados neste estudo.

Este estudo não investigou o efeito da escolarização sobre os erros encontrados(1,2,11,12,15,17,18,28). Este fato é uma limitação da pesquisa, na medida em que a média de erros foi calculada entre os quatro anos escolares de cada rede de ensino e não foi possível observar, nesta amostra, o efeito relatado na maioria das investigações realizadas com a escrita de escolares, principalmente nas séries iniciais.

Em pesquisa anterior(26), foi observada similaridade de desempenho dos segundos anos escolares das duas redes de ensino, seguida de distanciamento crescente dos desempenhos das redes, do 3o ao 5o ano, com melhores desempenhos na PA, o que parece confirmar a hipótese de que esses tipos de erros são mais específicos na PA.

Junções vocabulares e segmentações indevidas são menos frequentemente relatadas nas pesquisas sobre a escrita no ensino fundamental(28). Esses tipos de alterações de escrita podem ser observados em textos, sentenças ou sintagmas. As avaliações realizadas por meio de ditado de itens isolados não permite que elas se evidenciem. Os resultados desta pesquisa mostraram que as trocas surdo-sonoras, presentes na escrita de itens isolados, podem estar associadas a outros erros ligados à percepção de constituintes prosódicos das palavras ou sentenças(1,27), indicando a necessidade de estimulação da percepção de componentes fonológicos de diferentes estruturas linguísticas.

CONCLUSÃO

Escolares da rede PU mostram mais erros na codificação de fonemas surdos e sonoros, de segmentação indevida e de juntura vocabular, quando comparados com escolares da PA. O estudo das correlações entre os três tipos de erros mostrou padrões diferentes em cada rede de ensino. Na PU, codificação de fonemas surdos e sonoros e segmentações indevidas correlacionaram-se positivamente. Provável déficit de percepção fonológica de constituintes mais baixos da hierarquia fonológica influenciou o desempenho dos escolares da escola pública. Na PA, déficits de percepção da palavra fonológica, da frase fonológica e da frase entonacional, constituintes mais altos da hierarquia fonológica, podem ter influenciado as correlações entre os erros na codificação de fonemas surdos e sonoros e as junturas vocabulares. Apenas na rede particular de ensino os erros na codificação de fonemas surdos e sonoros, puderam predizer erros de juntura vocabular e de segmentação indevida.

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