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Erros de enfermagem no processo de medicação: análise de mídia eletrônica televisiva

Erros de enfermagem no processo de medicação: análise de mídia eletrônica televisiva

Autores:

Verusca Soares de Souza,
Kelly Cristina Inoue,
Maria Antonia Ramos Costa,
João Lucas Campos de Oliveira,
Sonia Silva Marcon,
Laura Misue Matsuda

ARTIGO ORIGINAL

Escola Anna Nery

versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465

Esc. Anna Nery vol.22 no.2 Rio de Janeiro 2018 Epub 10-Maio-2018

http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0306

INTRODUÇÃO

A segurança do paciente é reconhecida como importante dimensão da qualidade na saúde e tornou-se mais evidente a partir da divulgação da alta incidência de eventos adversos pelo Institute of Medicine dos Estados Unidos da América.1 Destarte, os eventos adversos são compreendidos como danos reais, de magnitude diversa, decorrentes do cuidado à saúde, que podem alterar o resultado assistencial; a saúde do usuário e profissional; além do aumento do tempo de internação e/ou dos custos assistenciais.1,2

A amplitude da ocorrência dos eventos adversos impulsionou entidades nacionais e internacionais no intuito de se estabelecer metas voltadas à segurança do paciente1,3,4 e assim, diminuir a sua incidência. Em consonância com as tendências globais, o Ministério da Saúde do Brasil propôs o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP), o qual tornou obrigatória a viabilização de Núcleos de Segurança do Paciente nas instituições de saúde de todo o País, com vistas à qualificação do cuidado favorecida pela implementação de estratégias de segurança.3,4

Entre os pontos de atenção à segurança do paciente, têm-se a segurança medicamentosa, tema do terceiro desafio global intitulado "Medication Without Harm". No Brasil, o Ministério da Saúde propôs o Protocolo de Segurança na prescrição, uso e administração de medicamentos, o qual estabelece diretrizes às práticas seguras em todo o processo da terapia medicamentosa.5 Sua importância se refere ao fato de que, no cuidado à saúde, as falhas no processo de medicação ocorrem de forma frequente e extrapolaram as situações que envolvem apenas drogas concentradas e de alta vigilância.4 Isso porque, o uso de medicamentos no cuidado à saúde é corriqueiro, constituindo-se uma importante ameaça à assistência segura.6

O processo de medicação é complexo - passível de erros - e envolve a prescrição, dispensação e administração de agentes farmacológicos terapêuticos.5 Sabe-se que tal processo envolve atuação multidisciplinar, com enfoque às equipes médica, farmacêutica e de enfermagem.4,5,7 Contudo, os profissionais de enfermagem, vinculados ao cuidado direto, são responsáveis pela etapa de administração dos medicamentos, a qual, por findar o processo de medicação, é a que evidencia a cadeia de um possível erro, determinando comumente culpa à enfermagem pela falha.6

A equipe de enfermagem protagoniza a administração de medicamentos nos diversos níveis de complexidade assistencial e, por se tratar da última etapa do processo de medicação, a administração de medicamentos pode perfazer uma importante barreira de segurança.8 Dito isso, é prudente obter participação ativa da equipe de enfermagem nos esforços organizacionais rumo ao atendimento seguro, visando reduzir os riscos e prevenir, entre outros, os erros de medicação, além de mitigar os danos à sua ocorrência.9

Embora em muitas instituições de saúde as notificações de erros não exijam que o trabalhador que cometeu a falha se identifique, os profissionais ainda negligenciam esta etapa do processo da busca pela segurança,9 em especial por medo de possíveis punições da média e alta gerência, e/ou por vergonha de ter cometido o erro.10 Tal problemática pode ser produto da cultura de segurança limítrofe ou pouco disseminada entre os colaboradores e lideranças, o que ainda é comum nas organizações de saúde brasileiras.9

A cultura de segurança, especialmente no contexto do erro, é fenômeno multifacetado, complexo e que sofre influência de fatores externos à dinâmica organizacional,3 oriundos da própria sociedade, ao exemplo da mídia na saúde. Neste aspecto, a literatura10 ressalta o potencial da mídia para interferir no comportamento e na saúde da população e também, como ferramenta valiosa para a educação em saúde.

O envolvimento de pesquisadores na divulgação de estudos relacionados à segurança do paciente pode gerar benefícios no sentido de incentivar a comunidade a apoiar mudanças pautadas em práticas baseadas em evidências científicas.11 Neste contexto, investigações com foco na divulgação de erros no setor saúde e em enfermagem pela mídia fazem-se importantes porque, os seus resultados podem contribuir para a disseminação do tema, mas principalmente, para que os erros sejam reconhecidos como fontes de melhorias.

A ampliação do conhecimento da comunidade e dos profissionais sobre a temática, pode servir de subsídio à tomada de decisões assertivas, bem como, permitir o melhor entendimento social sobre o erro e seu potencial de aprendizado com a sua ocorrência. Com base no exposto, este estudo teve como objetivo analisar divulgações de uma mídia televisiva brasileira acerca dos erros de medicação na enfermagem.

MÉTODO

Pesquisa descritivo-exploratória, transversal, documental, de abordagem qualitativa. O estudo se utilizou de reportagens do G1, portal eletrônico online de notícias brasileiro, vinculado à Rede Globo. Esta fonte de dados foi intencionalmente escolhida, por ser uma emissora de canal aberto com conhecida ampla audiência no país.

Para definição das reportagens/matérias a serem analisadas, foram empregados os seguintes critérios: reportagens audiovisuais (televisivas) relacionadas a erros de medicação com envolvimento (suspeito ou confirmado) de profissionais e/ou estudantes de enfermagem; com data de divulgação até o mês de dezembro de 2016.

Devido às limitações de recursos de busca e ordenação dos resultados encontrados no acervo documentário eletrônico utilizado como fonte dos dados (G1), os links das notícias encontradas com uso dos termos não controlados "erro" AND "medicação" foram acessados sequencialmente. As reportagens foram classificadas por temas e selecionadas por meio da leitura da manchete, olho e lead, que compreendem os termos que designam a frase destacada e o primeiro parágrafo da reportagem, que voltam-se à responder as questões básicas para deixar o leitor informado. Com isso, foram incluídas as primeiras 100 reportagens que estivessem relacionadas com a ocorrência de erro de medicação.

Dentre as reportagens recrutadas, no sentido de refinar o universo de análise e alcançar o objetivo proposto, foram empregados os seguintes critérios de exclusão: se relacionar a erro de outros profissionais de saúde; não estar claro o envolvimento da enfermagem; não possuir vídeo e; não haver disponibilidade do vídeo para exibição.

As reportagens selecionadas foram então, assistidas repetidamente para transcrição das falas de todos os atores envolvidos. Aos dados transcritos, realizaram-se leituras para classificação do tipo de erro, conforme a proposta da Organização Mundial da Saúde,12 que determina a seguinte tipologia ao erro: Doente errado; Medicamento errado; Dose/frequência errada; Forma farmacêutica ou apresentação errada; Via errada; Quantidade errada; Rótulo/instrução de administração errada; Contraindicação; Armazenamento errado; Dose ou medicamento omitido; Medicamento fora da validade; e, Reação adversa medicamentosa. Ademais, foram extraídas informações acerca do local do erro (cidade, estado e tipo de estabelecimento de saúde); características básicas da vítima (faixa etária e sexo); e desfecho do caso.

Após a organização dos dados, aos mesmos empregou-se a Análise de Conteúdo Temática, respeitando-se as etapas de pré-análise; exploração do material e tratamento dos dados.13 A pré-análise foi realizada com a leitura flutuante/superficial do conteúdo transcrito das reportagens, momento em que foi possível levantar as ideias centrais, que são expressões encontradas comumente nos depoimentos dos vídeos, ou termos de total divergência entre os mesmos.13

A exploração do material, que foi procedida com novas e sucessivas leituras do corpus, aproximou o conteúdo das ideias centrais em núcleos de sentido, que são aglutinações de ideias centrais por semelhança ou afinidade temática, utilizando-se do critério semântico do referencial metodológico eleito. Por fim, dos núcleos de sentido emergiram as categorias temáticas, que legitimaram a tematização sistemática do conteúdo evocado pelos depoentes das reportagens.

Este estudo cumpriu integralmente as exigências éticas que regem as pesquisas que envolvem seres humanos, pois o material empírico analisado é de domínio público, o que não impõe necessidade de trâmite ético formal. Os vídeos elencados foram identificados de acordo com o termo "Caso" seguido do numeral que correspondia à ordem em que foram incluídos neste estudo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram analisados 14 casos de erro de medicação, divulgados por meio de 25 reportagens. Estas, compreenderam 25 vídeos, cuja duração variou de 34'' a 8'15''; 20 reportagens escritas; e, divulgação de 15 fotos. Dentre as 25 reportagens, seis (24%) foram noticiadas no ano de 2012; seis (24%) em 2013; sete (28%) em 2014; duas (8%) em 2015; uma (4%) em 2016.

Observa-se que os erros reportados (Quadro 1) acarretaram sérios prejuízos às vítimas que foram a óbito na maioria dos casos (n=10). Este fato reforça a periculosidade que o processo de medicação envolve, o que, por consequência, impera a necessidade de se (re)planejar incessantemente ações de segurança com enfoque na prevenção do erro, uma vez que a morte, considerada o evento adverso de maior gravidade,3 pode ser comum no caso de falha na medicação.

Quadro 1 Caracterização dos casos de erros de medicação com envolvimento da Enfermagem, divulgados por mídia televisiva eletrônica. Brasil, 2012-2016.  

Caso Tipo de Erro Local Vítima(s) Desfecho da vítima(s)
1 Medicamento errado/Reação adversa medicamentosa Hospital (Itumbiara - GO) Menino, 1 ano e 4 meses Óbito
2 Doente errado Hospital (Anápolis - GO) Menina, 9 meses Óbito
3 Medicamento errado Hospital (Botelhos - MG) Idosa, 71 anos Óbito
4 Via errada Hospital (Campo Belo, MG) Idosa, 80 anos Óbito
5 Via errada Hospital (Alfenas, MG) Idoso, 83 anos Internado na Unidade de Terapia Intensiva seguido de alta hospitalar
6 Medicamento errado Hospital (Belo Horizonte, MG) Menino, 2 anos Queimadura grave
7 Indefinido Hospital (Campo Grande, MS) 3 mulheres Óbito
8 Dose/frequência errada Hospital (Campo Grande, MS) Idoso, 82 anos Óbito
9 Medicamento fora da validade Pronto Atendimento (Cuiabá, MT) Mulher, 57 anos Mal estar
10 Via errada Posto de Atendimento Médico (São João de Meriti, RJ) Idosa, 80 anos Óbito
11 Via errada Hospital (Porto Alegre, RS) Bebê, 40 dias Óbito
12 Medicamento errado Hospital (Itapevi, SP) Menino, 2 anos; Menina 4 anos Queimadura grave
13 Via errada Hospital (Caraguatatuba, SP) Idoso, 87 anos Óbito
14 Dose/frequência errada Hospital (Campo Maior, PI) Menina, 1 ano e 8 meses Óbito

Os erros abrangeram diferentes regiões do território nacional, mas ao se considerar o tipo de estabelecimento de saúde das ocorrências, constata-se que a maioria ocorreu em hospitais (n=12). Este dado é de certa forma esperado porque, de acordo com a literatura14 nos hospitais há maior complexidade assistencial, em decorrência da incorporação crescente de conhecimentos e tecnologias, mas que não tem promovido melhora consubstancial nos problemas de quantificação e qualificação profissional existentes nestes serviços.

No contexto dos processos de medicação, a equipe de enfermagem geralmente é submetida à elevada carga de trabalho, pois é responsável pela manipulação direta de drogas, antes que as mesmas sejam consumidas pelo paciente.6 Postula-se que isso pode ser ainda mais evidente no âmbito hospitalar, uma vez que, na prática clínica, o manejo farmacológico nestes ambientes, normalmente, se dá por vias invasivas - especialmente a via intravenosa - cuja manipulação acarreta elevado dispêndio de tempo para manutenção da permeabilidade de dispositivos (cateteres) inseridos no endotélio vascular, além da necessidade de maior cautela na administração dos fármacos.

Em relação às características das vítimas, destaca-se que a maior parte se encontrava nos extremos de idade, ou seja, crianças (n=7) e idosos (n=6), grupos, que em geral, têm maior necessidade de cuidados à saúde em relação a outras faixas etárias. Isso porque, já é conhecido que os extremos de idade no ciclo vital incorrem em alterações fisiológicas naturais, mas que podem favorecer algum desenvolvimento patológico e até mesmo a internação hospitalar.

As crianças em especial, apresentam maior vulnerabilidade à ocorrência de erros quando comparada a outras faixas etárias, o que pode ser justificado por suas especificidades anatômicas e fisiológicas, bem como, pela falta de políticas de saúde e da indústria farmacêutica ao atendimento das particularidades desta clientela.15 Mediante a esses fatos, considera-se que há de se repensar as iniciativas sociais oficiais em prol à implementação de estratégias de prevenção de erros de medicação específicas, para promover a segurança do paciente pediátrico.

No âmbito internacional, já existem recomendações para redução de erros de medicação e princípios de segurança do paciente em Pediatria15 que podem contribuir para o aprimoramento de programas e políticas brasileiras à saúde e à segurança infantil. Isto significa que, as políticas referidas podem ser adaptadas à realidade nacional, com vistas à melhoria das condições de saúde dessa peculiar clientela.

Dada a utilização de múltiplos medicamentos (polifarmácia) e frequência elevada de internações hospitalares, a literatura16 ressalta o maior risco para a ocorrência de erros na população idosa. Tem-se então que, para essa clientela, a equipe de enfermagem deve dispensar atenção redobrada e, no caso do enfermeiro, deve considerar racionalmente a intervenção farmacológica prescrita ao seu plano de cuidado, a fim de que isso também contribua à segurança dos pacientes idosos e favoreça a redução de riscos ao erro de medicação.3,16

Após o procedimento analítico das falas incutidas nas reportagens, emergiram duas categorias temáticas.

Identificação do erro de medicação e reação dos (supostos) envolvidos

É possível que muitos erros cometidos na administração de medicamentos não sejam detectados ou percebidos pela equipe de enfermagem. Neste contexto, apenas no Caso 5 o erro foi detectado por um profissional da área:

A falha foi cometida por uma técnica de enfermagem por volta das sete horas de sexta-feira, mas só foi percebida duas horas depois por uma enfermeira da equipe. (Repórter, Caso 5).

O processo de medicação impõe dinâmica de trabalho atarefada à equipe de enfermagem, especialmente a categoria de nível médio, pois, a mesma é responsável pela maior carga de trabalho atrelada a este processo assistencial.6 Nota-se que no caso houve certa demora no reconhecimento do erro, pois já havia passado cerca de duas horas após sua ocorrência, associado a identificação por profissional alheio à administração do medicamento em si. Tal profissional, a enfermeira, pode ter reconhecido o erro devido à característica de supervisão do trabalho da equipe técnica, a qual, talvez encarregada de múltiplas tarefas assistenciais, não detectou a falha imediatamente.

Ainda que não seja uma justificativa de respaldo legal e ético, nem tampouco ter sido pontuada como a causa do erro noticiado no Caso 5, a sobrecarga de trabalho da enfermagem é diretamente relacionada à maior predisposição de eventos adversos na assistência à saúde.6 Deste modo, é evidente que o trabalho da enfermagem deve ser incrementado de barreiras de segurança, a fim de que a ocorrência de eventos adversos seja prevenida e, paralelamente, a sua ação ganhe maior cientificidade.

Embora alguns casos não tenham deixado claro quem foi o indivíduo que detectou o erro, constata-se que os familiares que acompanhavam as vítimas foram os principais sujeitos a identificá-lo:

Minha netinha pegou o soro [...] ela olhou e falou: vó, deram soro vencido para a senhor [...] (Vítima, Caso 9).

Falei assim, você está aplicando leite na veia dela, café com leite na veia dela, tira isso daí [...] (Filha, Caso 10).

Os pacientes e seus familiares podem e devem contribuir para a qualidade dos cuidados à saúde, atuando como agentes ativos na busca da própria segurança, inclusive para a prevenção de erros de medicação.3 Neste sentido, é importante que os profissionais de enfermagem, além de estimular a participação desses indivíduos na assistência, também escutem e valorizem seus alertas, no intuito de evitar que situações de erro evoluam para condições irreversíveis.3,4

Um estudo realizado em hospital universitário do interior do estado do Paraná evidenciou que o conhecimento do paciente acerca do uso de medicamentos, suas indicações e possíveis reações adversas, perfaz um dos fatores de maior deficiência de conhecimento sobre a assistência hospitalar dispensada.17 Frente a isto e ao que se constata nesta pesquisa, alvitra-se que a participação do familiar é valorosa à formulação de mais uma barreira de segurança, já que, por possível desconhecimento ou condição clínica desfavorável, o paciente pode não detectar os riscos e possíveis erros assistenciais, não contribuindo, portanto, na identificação da falha, conforme se percebe nos casos 9 e 10.

A escuta ativa dos familiares pelos profissionais pode auxiliar na detecção de alterações ou na identificação precoce do erro.3,4 Em contraponto a tal ditame, a pouca valorização ou descrença da equipe de enfermagem e saúde sobre queixas de familiares relacionadas às condições clínicas do ente querido enfermo foi citada:

Falei com a enfermeira que ele não estava bem, ela disse que estava, fez algumas coisas e vazou [...] (Mãe, caso 1).

[...] ao receber medicação começou passar mal, mas foi tratada como se tivesse sofrido uma crise alérgica e teve alta, mais tarde acabou sendo internada de novo com queimadura de terceiro grau [...] (Repórter, Caso 6).

Cumpre destacar que ninguém melhor que o paciente e sua família para conhecer o seu histórico de saúde, a progressão da sua doença, dos sintomas e experiências com os tratamentos anteriores.3 Nesta perspectiva, ignorar as informações relatadas por esses sujeitos pode causar danos deletérios, além de ser uma postura antiética por parte dos profissionais.

O ato de ignorar solicitações ou informações da família demonstra que alguns profissionais ainda se colocam em condição de soberania diante do paciente e dos familiares, e esta relação de falta de proximidade impossibilita o envolvimento e à participação de todos no processo de cuidar, em especial no momento da medicação que requer atenção redobrada.17,18 Tal fato pode se apresentar como fator que possibilita a ocorrência de erro e ainda, mostrar-se como agravante na análise de falhas em um cenário que cultua a culpabilização dos profissionais.19

Apesar da postura profissional dos trabalhadores de enfermagem relacionados nos casos noticiados, cumpre destacar a notação do Caso 6, onde o repórter afirma que a paciente vítima do erro "foi tratada como se tivesse sofrido uma crise alérgica e teve alta". Interpretando este excerto, é notório que o erro é um produto muito complexo e delicado para ser isolado à culpa, ou ao menos, o julgamento, de uma única categoria profissional, uma vez que as ações terapêuticas adotadas no caso após o erro denotam que condutas médicas, como o diagnóstico e a alta, foram tomadas mesmo com a condição clínica aparentemente desfavorável do paciente após ter consumido a medicação errada.

Ante ao exposto pautar a assistência em protocolos assistenciais, bem como, estabelecer-se rotinas de atendimento em caso de ocorrência de erros, requer o envolvimento de toda a equipe multidisciplinar, com o intuito de se evitar situações em que gere a culpabilização entre as categorias, evidenciada no excerto abaixo.

[...] O médico ao sair da UTI falou: sua mãe faleceu. Mas o motivo dela ter falecido foi o erro da enfermeira, ela aplicou uma medicação de forma errada na sua mãe, agravou o quadro dela e a levou a óbito [...] (Filho, Caso 4).

Ressalta-se que, as relações do médico com os demais profissionais devem se basear na ética, respeito mútuo, liberdade e autonomia profissional, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente.20 O excerto extraído do Caso 4 reforça que a cultura da culpa ainda se sobrepõe à da segurança.

Destaca-se que no momento da ocorrência do erro, o profissional envolvido deve agir com honestidade, sem medo de punições, pois este seria o caminho para que as providências em relação ao paciente, a família e ao profissional sejam tomadas, no sentido de se evitar/minimizar a ocorrência do erro.21 Tal fato pode ser percebido nos Casos 8 e 11.

Tão logo foi identificado [o erro] a enfermeira responsável por este setor foi notificada e foi lá com um médico para que o paciente fosse avaliado, todas as medidas necessárias foram tomadas de imediato. (Diretor do Hospital, Caso 8).

Uma técnica de enfermagem do hospital [...] admitiu ter injetado alimento na veia de uma criança que estava internada na UTI neonatal. (Repórter, Caso 11).

Ela [técnica de enfermagem] confessou que fez a medicação de forma errada [...] (Delegado, Caso 13).

A admissão do erro pelos profissionais de enfermagem resulta em uma diversidade de sentimentos que culminam em carga de sofrimento psíquico. Essa sucessão de sentimentos como tristeza, culpa e vergonha, por vezes é agravada pela frequente ênfase na punição dada pela instituição e pelos familiares, o que resulta no sentimento de estresse psicológico e torna os profissionais "segundas vítimas" do evento adverso.22

Dentre os profissionais de saúde, os integrantes da equipe de enfermagem são responsáveis pela finalização do processo de administração de medicamentos e, ao detectar erros, pode contribuir para a sua prevenção. Com isso, a culpabilização pelo erro de medicação tende a postar-se como um fardo individual sobre esse profissional, muitas vezes, sem se considerar as condições de infraestrutura, recursos humanos e financeiros, que contribuíram para a ocorrência do erro.

Destaca-se que nenhuma das reportagens apontou situações agravantes que puderam culminar no erro, o que gera no imaginário social, a responsabilização apenas do profissional que administrou o medicamento. Desta forma, notoriamente, a repercussão do erro identificado majoritariamente como produto da enfermagem, é em geral negativa.

Reações, sentimentos e condutas frente ao erro de medicação

Os familiares das vítimas de erros de medicação com envolvimento de profissionais de enfermagem manifestaram reações e sentimentos, expressos de forma congruente pela dor, tristeza e/ou revolta, observado nos excertos a seguir.

Isso não pode ficar impune não. Como a menina [enfermeira] dá uma injeção no menino, que faz mal e enfarta o menino?[...] (Pai, Caso 1).

[...] que a morte da minha mãe não seja em vão, mas que sirva de alerta para que tomem cuidado[...] (Filho, Caso 4).

Queremos justiça, foi uma criança que morreu sem saber de nada. O caso precisa ser investigado e quem estiver errado que pague pelo seu erro. (Mãe, Caso 14).

Frente à revolta com o erro de medicação e seu desfecho, alguns familiares clamaram por justiça e por mais atenção e segurança no cuidado à saúde. As ocorrências de erros acarretam em consequências catastróficas aos pacientes e aos profissionais de enfermagem incorrem em punições éticas dos órgãos de classe,23 com o objetivo de implementar práticas mais efetivas e seguras com relação ao cuidado ao paciente.

A enfermeira ao invés de ser um anjo que vai salvar uma vida provoca uma morte, porque ela não sabia ministrar um medicamento[...] (Filho, Caso 4).

Não é justo deixar uma pessoa que não é capacitada, uma pessoa que é estagiária, fazer o serviço de quem tem que fazer [...] (Filha, Caso 10).

Ao analisar os excertos acima (Caso 4 e 10), verifica-se que o estereótipo de anjo que a enfermagem perpetua desde Florence Nightingale, deve-se à associação da profissão à humildade, dedicação humana e dom divino. Neste aspecto, os familiares esperam encontrar neste profissional o suporte emocional e espiritual, além do conhecimento técnico-científico necessário para o atendimento ao seu familiar.

Percebe-se que as reportagens veicularam uma denúncia importante acerca da insuficiente formação profissional na área de enfermagem. Cumpre alertar que os erros provocados por estudantes, inclusive de medicação, não isentam o enfermeiro da responsabilidade sob eventos ocorridos sob sua supervisão.24 Além disso, destaca-se a necessidade constante de se lançar mão da educação permanente em saúde na capacitação constante dos profissionais na busca pela qualificação da assistência.

A gravidade das consequências atribuídas aos erros de medicação define as penalidades ao profissional envolvido, levando-se em consideração as lesões corporais causadas ao paciente e o tipo de consequência. Os profissionais podem ser submetidos a processos judiciais por negligência, imprudência ou má prática; cuja responsabilização se pauta na legislação civil, penal e ética.23 Destaca-se que as penalidades foram atribuídas aos profissionais envolvidos nos casos estudados como afirmam os excertos abaixo.

A delegada afirmou que houve negligência, imprudência e imperícia por parte da auxiliar de enfermagem. (Repórter, Caso 5).

Os envolvidos foram indiciados por homicídio doloso, lesão corporal grave [...] (Repórter, Caso 7).

O Conselho Regional de Enfermagem diz que está apurando o caso e que vai tomar as medidas cabíveis, caso seja confirmada a infração[...] (Repórter, Caso 12).

Embora haja um movimento de estímulo à cultura justa, a cultura punitiva ainda é uma realidade nas instituições em que, não há menção ou divulgação adequada dos fatores causais e contribuintes ao erro de medicação. Isso porque, o erro de medicação é influenciado por fatores sistêmicos e múltiplos e a evidência científica ainda é limitada para sustentar modificações no processo de trabalho das instituições de saúde.21

Por cautela, muitas instituições afastaram os envolvidos do cargo para investigação, conforme os excertos a seguir.

A funcionária que trocou a medicação foi afastada e a polícia vai investigar o caso[...] (Repórter, Caso 6).

A secretária de saúde abriu sindicância para apurar o que aconteceu e já afastou tanto a estagiária, quanto as enfermeiras que deveriam supervisionar os estudantes [...] (Repórter, Caso 10).

A técnica em enfermagem continua no hospital, mas está afastada de suas funções. (Repórter, Caso 5)

Concorda-se que, é preciso que as instituições de saúde adotem uma cultura de transparência em relação aos erros de medicação, com a criação de políticas e padronizações para notificação, divulgação e fortalecimento de medidas preventivas.3,7 Afinal, o erro faz parte da condição humana e é preciso que, mediante sua ocorrência, condutas adotadas em relação à condição clínica do paciente sejam adequadas e estratégias sejam implementadas para se prevenir novas ocorrências.

CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

As notícias reportadas em mídia televisiva sobre erros de medicação se mostraram relativamente limitadas. Isso porque, potenciais consumidores de serviços de saúde tomam conhecimento sobre a existência de erros de medicação, que podem ser fatais sem, contudo, obter quaisquer informações sobre os mecanismos e processos de identificação e prevenção de erros, nem tampouco acerca do contexto em que se tem desenvolvido os cuidados à saúde.

Torna-se urgente e necessário associar as medidas de gerenciamento de risco e as discussões acadêmicas e profissionais, com a maior consciência pública na compreensão das questões relativas à segurança dos pacientes. Ademais, as evidências de falha no sistema devem ser encaradas como uma oportunidade de revisão do processo de trabalho em saúde e aprimoramento da assistência.

A responsabilização dos profissionais de enfermagem deve seguir os trâmites ético-legais, mas é preciso lembrar que há aparente culpabilização de indivíduos sem demonstração de preocupação com os processos pelos quais os erros de medicação se desencadeiam.

REFERÊNCIAS

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