versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.12 no.2 São Paulo abr./jun. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082014AO2844
Malformações venosas (MV) respondem por dois terços das malformações vasculares e se caracterizam por enovelados de veias de calibre, vênulas e capilares variados.(1) As MV podem afetar qualquer região do organismo e se apresentam como lesões bem delimitadas ou difusas.(2)
As MV podem estar presentes ao nascimento e crescem lentamente conforme o desenvolvimento do indivíduo. Seu diagnóstico se baseia na história clínica e nos achados do exame físico.(3)Diferentemente dos hemangiomas, que tendem a crescer rapidamente e estabilizar ou involuir espontaneamente, MV não regridem espontaneamente.(4)
Ao exame físico,(5,6) MV se apresentam como massas purpúreas ou azuladas friáveis, semelhantes a tumores e desprovidas sopro arterial ou batimentos subcutâneos. MV da cabeça e pescoço se manifestam clinicamente(7,8) por desfiguração cosmética, dor, ulceração, sangramento, compressão de nervos e tecidos adjacentes e deficiências funcionais.
A ressonância magnética é uma técnica complementar de imagem empregada no diagnóstico e acompanhamento de pacientes com MV.(9,10) Em sequências de imagens ponderadas em T2 e de recuperação reversa, as MV aparecem como canais ou áreas septadas com hiperintensidade, que podem conter pequenos volumes de fluido e flebólitos (áreas de ausência de sinal).
A ultrassonografia é uma técnica não invasiva simples, que permite a diferenciação entre lesões de alto e baixo fluxo, e pode ser empregada para guiar a injeção intralesional durante o procedimento de escleroterapia.(11,12)
O tratamento de eleição das MV consiste na injeção percutânea intralesional de agentes esclerosantes líquidos, realizada sob anestesia geral.(5,13) O álcool puro é o agente esclerosante mais potente e eficaz disponível,(14,15) porém seu emprego em altas doses acarreta complicações locais e sistêmicas.(16-18)
Bons resultados clínicos foram relatados após o tratamento ambulatorial de pacientes acometidos por MV dos membros com injeções repetidas de baixas doses de etanol.(17,18)
Avaliar os resultados da escleroterapia com baixas doses de etanol no tratamento de pacientes com malformações venosas na cabeça e pescoço.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital das Clínicas de São Paulo (protocolo eletrônico 8.536). Cinquenta e um pacientes, sendo 37 (72,6%) do sexo feminino, com idade entre 6 de 80 anos (mediana de 23 anos) foram estudados. Os pacientes haviam sido tratados com escleroterapia percutânea com etanol administrada em ambulatório, sob anestesia local, entre julho de 1995 e junho de 2007 e acompanhados por 6 a 72 meses (mediana de 18 meses). Dada a natureza retrospectiva do estudo, o consentimento informado não se fez necessário.
Os dados do exame clínico dos 51 pacientes estudados encontram-se dispostos natabela 1.
Características | n (%) |
---|---|
Localização da lesão | |
Face | 36 (70,6) |
Língua | 6 (11,8) |
Pescoço | 5 (9,8) |
Lábio | 4 (7,8) |
Sintomas | |
Deformidade | 39 (76,4) |
Dor | 10 (19,6) |
Sangramento | 2 (4) |
Tratamento prévio | |
Nenhum | 42 (82,4) |
Cirurgia or embolização | 9 (17,6) |
A maioria das lesões estava localizada na face e a principal queixa era a desfiguração cosmética. A maioria dos pacientes não havia recebido tratamento prévio.
As lesões foram mensuradas em milímetros ao longo de seu eixo maior com uma régua comum e classificadas em três grupos, de acordo com o tamanho: pequenas (até 3cm; 21 pacientes), médias (de 3 a 15cm; 21 pacientes) e grandes (acima de 15cm; 9 pacientes).
Os pacientes foram submetidos a injeções percutâneas quinzenais de álcool. O ponto de injeção foi selecionado por palpação, optando-se pelo ponto de maior dilatação venosa. A injeção foi realizada com escalpe tipo borboleta (butterfly)(19)calibre 21 introduzido perpendicularmente à superfície cutânea até o espaço vascular anômalo. O posicionamento correto da agulha foi confirmado mediante refluxo sanguíneo. Procedeu-se, então, à injeção intralesional de contraste iodado guiada por fluoroscopia, monitorando-se a opacificação do espaço vascular anômalo. Após a caracterização das MV e a quantificação do volume drenado para o sistema venoso, 2mL de cloridrato de lidocaína a 2% e etanol puro foram injetados em sequência, empregando-se a dose de 1 a 3mL de etanol para lesões pequenas e médias e de até 5mL para lesões grandes. Um pequeno volume de etanol foi injetado imediatamente antes da retração da agulha, seguindo-se da aplicação de bandagem levemente compressiva. Os pacientes foram mantidos em observação por 30 minutos antes de serem liberados.
Foram coletados dados referentes à evolução clínica dos sintomas, às alterações de tamanho das lesões, ao número de sessões realizadas e às respectivas complicações. O nível de satisfação dos pacientes foi mensurado por meio de um questionário simples. Cada paciente classificou a respectiva melhora clínica em uma escala de 1 a 4, sendo 1 correspondente à pouca ou nenhuma melhora, 2 à melhora moderada, 3 à melhora significativa e 4 à remissão completa dos sintomas. Neste estudo, os escores 2 e 3 foram agrupados e tratados como melhora.
Os resultados do tratamento foram avaliados com base no nível de satisfação dos pacientes e na redução do tamanho das lesões. A remissão completa dos sintomas foi relatada por 17 (33,3%) pacientes, enquanto 31 (60,8%) relataram melhora e 3 (5,9%), ausência de resposta. A regressão completa da lesão foi obtida em 14 (27,4%) pacientes e sua redução em 34 (66,7%); nos 3 (5,9%) pacientes restantes, o tamanho da lesão se manteve inalterado.
Os dados evolutivos referentes ao tamanho das lesões encontram-se dispostos natabela 2.
Grupo | Redução de tamanho (parcial ou completa) | Sem alteração |
---|---|---|
n (%) | n (%) | |
Pequena | 21 (100) | 0 (0) |
Média | 20 (95,2) | 1 (4,8) |
Grande | 7 (77,8) | 2 (22,2) |
A redução parcial ou completa das lesões, na maioria dos pacientes, em todos os grupos, sugeriu que a escleroterapia percutânea com etanol é eficaz, independente do tamanho da lesão.
A tabela 3 mostra o número de sessões de escleroterapia realizadas por grupo.
Grupo | n | Faixa de variação | Mediana |
---|---|---|---|
Pequena | 21 | 2-19 | 4 |
Média | 21 | 4-47 | 5 |
Grande | 9 | 6-36 | 17 |
Neste estudo, o número de sessões de escleroterapia variou de 2 a 47 (mediana de 7 sessões) e mostrou relação direta com o tamanho da lesão. Dos três pacientes que não responderam ao tratamento, um apresentava lesão de tamanho médio e dois, lesão de tamanho grande. O número de sessões realizadas nesses pacientes ficou entre 13 e 36 (mediana de 22). A evolução clínica de lesões pequenas, médias e grandes, assim como o respectivo número de sessões de escleroterapia, encontra-se ilustrada nas figuras 1,2 e 3.
Quarenta e dois (82,4%) pacientes tratados evoluíram sem complicações. Ulcerações cutâneas pequenas foram observadas em cinco (9,8%) pacientes e hiperpigmentação em dois (3,9%). Dois pacientes (3,9%) apresentaram parestesia transitória. Todas as complicações responderam bem ao tratamento conservativo.
As MV são as principais malformações vasculares sintomáticas de baixo fluxo em humanos, afetando principalmente a região da cabeça e pescoço.(6,13)
Diversas modalidades de tratamento foram descritas para MV, entre elas a irradiação, a crioterapia, o laser, a excisão cirúrgica e a escleroterapia.(2) O tratamento com laser é eficaz em MV superficiais(20) e a excisão cirúrgica em lesões bem delimitadas.(21)Lesões grandes são de difícil delimitação cirúrgica e sua ressecção radical se caracteriza por sequelas funcionais importantes, desfiguração e altas taxas de recorrência.(22)
A escleroterapia é tida como um tratamento eficaz para MV e pode ser realizada com diversos agentes esclerosantes. A pingiangmicina(23) (cloridrato de bleomicina) é um quimioterápico normalmente utilizado no tratamento do câncer oral que vem sendo empregado como agente esclerosante.
O tetradecil sulfato de sódio (sotradecol) e o polidocanol são agentes dotados de propriedades detergentes capazes de interferir nos lipídios da superfície celular e causar lesão endotelial,(24) e consequentes trombose e fibrose. Entretanto, a recanalização pronunciada das lesões tratadas foi relatada(14,25) e o tratamento de MV cefálicas grandes por injeção de sotranecol pode desencadear reação anafilática e cegueira.(6,13)
O etanol puro é uma agente fibrosante barato e amplamente disponível, com efeitos contralaterais bem conhecidos e controláveis.(26) O contato direto do etanol com o endotélio vascular promove a desnaturação de proteínas sanguíneas, a necrose da parede vascular e a destruição eritrocítica, levando à trombose e à fibrose da íntima, e culminado na regressão da MV.(27)
A dose esclerosante de etanol guarda forte correlação com os níveis séricos de etanol nos pacientes tratados; os efeitos tóxicos da escleroterapia com etanol refletem diretamente o volume injetado no organismo. Doses acima de 1,0mL/kg podem causar depressão respiratória, arritmia cardíaca, rabdomiólise e hipoglicemia.(14,17) Neste estudo, doses máximas de 5mL de etanol puro mostraram-se insuficientes para desencadear efeitos colaterais tóxicos.
A maioria dos estudos de escleroterapia disponível na literatura envolve a injeção de altas doses de etanol sob anestesia geral, com complicações como trombose imediata da MV e edema grave resultante do bloqueio da circulação venosa,(5)tromboflebite superficial, trombose venosa profunda, com ou sem embolia pulmonar,(18) parada cardíaca(14) e cicatrizes ou lesões cutâneas tróficas.(28)
Berenger et al.(5) trataram 40 pacientes com doses altas de etanol. Trinta (75%) pacientes apresentaram melhora significativa ou cura completa e dez (25%) tiveram melhora discreta ou ausência de resposta ao tratamento. As principais complicações relatadas foram bolhas agudas (50%), hemoglobinúria (28%), ulceração profunda (13%) e lesão nervosa (7,5%). A paralisia facial transitória foi observada em dois casos e um paciente apresentou paralisia unilateral permanente da corda vocal.
Lee et al.(15) acompanharam 87 pacientes tratados por escleroterapia com altas doses de etanol. O estudo envolveu um total de 305 sessões (média de 3,5), com resultados excelentes, bons ou pobres em 23 (32,4%), 37 (52,1%) e 11 (15,5%) pacientes, respectivamente. Casos de edema foram tratados com medicação analgésica intramuscular ou intravenosa. As demais complicações observadas (quatro pacientes; 4,6%) foram dificuldade respiratória (dois casos), hipoestesia da língua (um caso) e paralisia facial transitória (um caso).
Em estudo realizado por Liu et al.,(23) 23 pacientes foram tratados com doses baixas de etanol e acompanhados por uma média de 20 meses. Todos os pacientes apresentaram remissão ou alívio dos sintomas, com resultados clínicos excelentes e bons em 9 e 14 pacientes, respectivamente. Os casos de edema e dor de intensidade leve a moderada foram tratados de forma conservadora, com boa resposta em poucos dias. Não houve casos de necrose cutânea ou lesão nervosa.
Neste estudo, 96,1% dos pacientes tratados apresentaram remissão completa ou melhora dos sintomas. A regressão parcial ou total das lesões foi obtida em 94,1% dos casos, com complicações de baixa gravidade, que responderam favoravelmente ao tratamento conservador. A escleroterapia percutânea ambulatorial foi considerada eficaz no tratamento de MV.
A escleroterapia percutânea com baixas doses de etanol, realizada sob anestesia local, constitui em modalidade segura e eficaz de tratamento de malformações venosas da cabeça e pescoço.