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Escore de Cálcio Isolado no Cenário de Dor Torácica Aguda - É Suficiente?

Escore de Cálcio Isolado no Cenário de Dor Torácica Aguda - É Suficiente?

Autores:

Tiago Augusto Magalhães,
Marcio Sommer Bittencourt,
Carlos Eduardo Rochitte

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.2 São Paulo ago. 2017

https://doi.org/10.5935/abc.20170116

A utilidade clínica de qualquer exame empregado na medicina depende da população estudada, pois mesmo um exame acurado não terá proveito se usado na população incorreta. Enquanto que a sensibilidade e a especificidade são características inerentes ao método diagnóstico, a probabilidade de o indivíduo apresentar a doença quando o teste é positivo (valor preditivo positivo, VPP) e a probabilidade de o indivíduo não a apresentar quando o teste é negativo (valor preditivo negativo, VPN) dependem da prevalência da doença na população estudada e da probabilidade de o indivíduo ter a doença antes da realização do exame, a chamada probabilidade pré-teste.

Os valores preditivos positivo e negativo são as informações que interessam quando utilizamos um exame diagnóstico na prática clínica, pois quando nos defrontamos com um exame positivo nos interessa saber qual a probabilidade de o paciente realmente ter a doença, enquanto quando o exame é negativo nos interessa a chance de ela existir mesmo com o resultado negativo. Logo, esses valores devem ser considerados antes de solicitar um exame, pois muitas vezes um exame positivo não é suficiente para confirmar a presença de doença, enquanto que um exame negativo pode não ser capaz de excluí-la de forma segura.

A investigação de dor torácica possivelmente anginosa é um dos exemplos mais clássicos desta dualidade entre a probabilidade pré-teste de doença e a sensibilidade e especificidade dos exames complementares utilizados. A primeira discussão sobre essa abordagem no diagnóstico de doença arterial coronária (DAC) foi publicada por Diamond e Forrester no New England Journal of Medicine em 1979,1 e a avaliação da probabilidade pré-teste antes da escolha do melhor teste diagnóstico em pacientes com dor torácica continua a ser recomendada nas diretrizes atuais.2-4

Enquanto que exames como a angiotomografia de artérias coronárias, o teste ergométrico e os testes funcionais associados a imagem (como a cintilografia de perfusão miocárdica com estresse) têm indicação clara na investigação de dor torácica nos diferentes cenários,2,5 o uso do escore de cálcio coronário (ECC) não é recomendado na avaliação rotineira de dor torácica em nenhuma situação clínica segundo as diretrizes brasileiras.5 No entanto, alguns estudos sugerem que o ECC pode ser considerado em indivíduos com dor torácica de baixa a moderada probabilidade pré-teste de DAC, e esses estudos levaram à sua incorporação nas diretrizes inglesas do National Institute of Health and Clinical Excellence (NICE) em 2010.6 Essa indicação foi baseada na utilização do teorema de Bayes e leva em conta a baixa probabilidade pré-teste da população estudada e o considerável VPN do ECC. No entanto, mesmo as recomendações do NICE, que para a escolha do método diagnóstico consideram de forma muito intensa o aspecto de custo-efetividade do teste, foram recentemente modificadas. Em sua nova versão, as recomendações inglesas também deixaram de recomendar o ECC como parte da investigação de indivíduos com dor torácica de possível origem cardíaca, e agora recomendam a angiotomografia de artérias coronárias como teste de primeira escolha para a imensa maioria dos indivíduos.

Vários são os motivos do forte apelo ao uso do ECC, entre eles, a sua facilidade de realização, com dose de radiação muito baixa, sem uso de qualquer agente estressor ou de contraste, sem qualquer preparo para o paciente e inexistência de contraindicações absolutas ao exame. Adiciona-se a isso, o tempo de exame de menos de 5 minutos, com análise e resultados praticamente imediatos e com processamento de imagem mínimo.

A transposição da indicação de métodos originalmente desenhados ou validados para um propósito específico para uma outra indicação diversa deve ser avaliada cuidadosamente. Ainda mais quando essa transposição propõe substituir ou evitar o uso de outro método já estabelecido ou claramente mais acurado para uma importante definição diagnóstica.

Um dos motivos de controvérsia está relacionado com a fisiopatologia da síndrome coronariana aguda. Os pacientes que se apresentam na emergência com quadro de síndrome coronariana aguda são portadores de menor carga de placa calcificada e presença de lesões culpadas com maior predomínio de componente não calcificado,7 de tal forma que basear um teste de screening na presença ou ausência de calcificação coronariana para a avaliação da dor torácica na sala de emergência pode não encontrar racional fisiopatológico adequado. Ademais, dados do estudo CORE64, que avaliou pacientes sintomáticos encaminhados à angiotomografia de coronárias, demonstraram que aproximadamente um em cada cinco dos indivíduos atendidos na emergência com dor torácica aguda e que apresentavam ECC zero (ausência de calcificações coronarianas), apresentaram estenose coronariana significativa de pelo menos um segmento coronariano pela coronariografia invasiva.8 São dados que não tornam confortável qualquer decisão embasada no resultado do ECC em pacientes com dor torácica aguda.

Na presente edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Correia et al.9 avaliaram a possível extensão dessa indicação controversa do uso do ECC para pacientes admitidos em unidade coronária de um hospital terciário brasileiro e que têm maior probabilidade pré-teste de DAC obstrutiva. Os autores concluem que apesar do limitado VPP associado a ECC acima de zero, o ECC apresentou VPN de 90% para DAC obstrutiva. Como esperado, a capacidade de excluir doença do ECC foi maior em indivíduos com probabilidade pré-teste mais baixa (abaixo de 50%), onde o VPN chegou a 95%. Por fim, os autores sugerem que até um em cada quatro indivíduos teria probabilidade de DAC obstrutiva suficientemente baixa para permitir o descarte desse diagnóstico diferencial pela presença de ECC de zero.

Para estimar os VPP e VPN e utilizar o chamado teorema de Bayes na prática clínica é necessário algum instrumento para estimar a probabilidade pré-teste de DAC para cada indivíduo. A despeito de possíveis problemas de calibração,10 escores de probabilidade pré-teste estão bem estabelecidos para a avaliação de dor torácica estável. No entanto, inexistem escores de probabilidade pré-teste validados para a dor torácica aguda. Correia et al.9 devem ser parabenizados por utilizarem uma amostra local para derivar um escore de probabilidade pré-teste para DAC aguda em pacientes admitidos a unidade coronária. No entanto, enquanto isso permite que a probabilidade pré-teste utilizada seja bastante adequada para o presente estudo, também leva a limitações importantes. Primeiro, a performance desse escore possivelmente está superestimada, e é provável que esses resultados não mantenham sua performance quando replicados em outras populações. Logo, há necessidade de validação externa do escore de probabilidade antes da tradução dos resultados do presente estudo para a prática clínica.

Mesmo enquanto aguardamos essa validação externa, o presente estudo apresenta outros resultados que fazem jus a uma discussão mais aprofundada. Primeiro, os autores definiram que uma probabilidade de DAC obstrutiva menor do que 10% permite que esse diagnóstico seja descartado. Recomendações para DAC estável consideram que tais probabilidades podem ser consideradas baixas o suficiente para não justificar investigação adicional.3,4 No entanto, com essa abordagem, um em cada dez pacientes com DAC obstrutiva pode ser liberado sem o diagnóstico correto, o que pode ser considerado inadequado pela equipe responsável pelo atendimento dos pacientes no ambiente de urgência e emergência, como nas unidades coronárias.

Por outro lado, caso uma probabilidade de doença de 10% possa ser considerada baixa o suficiente para descartar doença, 8% dos pacientes do estudo poderiam ter sido liberados sem a realização de qualquer exame, visto que nesse caso nenhum indivíduo apresentou DAC obstrutiva, mas um em cada quatro foi incorretamente classificado por apresentar um ECC acima de zero.

Um ponto particularmente interessante do presente estudo é a inclusão de indivíduos com probabilidade de doença maior do que o previamente estudado. Além disso, os autores tiveram também o cuidado de estratificar os resultados de acordo com a probabilidade pré-teste e de acordo com a presença ou ausência de alterações no eletrocardiograma de repouso e nos valores de troponina. Para indivíduos com probabilidade de doença acima de 50% ou para aqueles em que foram encontradas alterações de troponina ou no eletrocardiograma, a capacidade do ECC de zero descartar doença foi apenas razoável (VPN de 63% e 83%, respectivamente). Por outro lado, em casos onde a probabilidade pré-teste era menor que 50%, e particularmente nos pacientes com eletrocardiograma e valores de troponina normais, a capacidade de descartar doença nessa população foi mais robusta (VPN de 95% e 100%, respectivamente).

Esses dados sugerem que em casos selecionados de indivíduos com eletrocardiograma e troponina normais em que a probabilidade pré-teste de doença esteja entre 10% e 50%, o ECC possa ser considerado uma alternativa na investigação de dor torácica aguda possivelmente anginosa, em particular em situações em que outros métodos de avaliação, como a angiotomografia de artérias coronárias e os testes funcionais, não estejam disponíveis ou sejam contraindicados. No entanto, antes da incorporação rotineira dessa estratégia na prática clínica, são necessárias a validação e a calibração de um escore de probabilidade adaptado para esse cenário, assim como a replicação desses resultados em coortes de maior tamanho para garantir a reprodutibilidade da capacidade de excluir doença associada ao ECC nessa população.

Tendo exposto acima os argumentos favoráveis e contrários à utilização do ECC como gatekeeper na avaliação da dor torácica no pronto socorro, cabe-nos reforçar ainda a não adoção do ECC isolado com a finalidade de exclusão de DAC obstrutiva significativa em pacientes com dor torácica aguda pela maioria das diretrizes de cardiologia no mundo no momento atual.

REFERÊNCIAS

1 Diamond GA, Forrester JS. Analysis of probability as an aid in the clinical diagnosis of coronary-artery disease. N Engl J Med. 1979; 300(24):1350-8.
2 Cesar LA, Ferreira JF, Armaganijan D, Gowdak LH, Mansur AP, Bodanese LC, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia. Guideline for stable coronary artery disease. Arq Bras Cardiol. 2014;103(2 Suppl 2):1-56.
3 Fihn SD, Gardin JM, Abrams J, Berra K, Blankenship JC, Dallas AP, et al; American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force. 2012 ACCF/AHA/ACP/AATS/PCNA/SCAI/STS guideline for the diagnosis and management of patients with stable ischemic heart disease: a report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association task force on practice guidelines, and the American College of Physicians, American Association for Thoracic Surgery, Preventive Cardiovascular Nurses Association, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions, and Society of Thoracic Surgeons. Circulation. 2012;126(25):e354-471. Erratum in: Circulation. 2014;129(16):e463.
4 Montalescot G, Sechtem U, Achenbach S, Andreotti F, Arden C, Budaj A, et al. Task Force Members. 2013 ESC guidelines on the management of stable coronary artery disease: the Task Force on the management of stable coronary artery disease of the European Society of Cardiology. Eur Heart J. 2013;34(38):2949-3003. Erratum in: Eur Heart J. 2014;35(33):2260-1.
5 Sara L, Szarf G, Tachibana A, Shiozaki AA, Villa AV, de Oliveira AC, et al; Sociedade Brasileira de Cardiologia; Colégio Brasileiro de Radiologia. [II Guidelines on Cardiovascular Magnetic Resonance and Computed Tomography of the Brazilian Society of Cardiology and the Brazilian College of Radiology]. Arq Bras Cardiol. 2014;103(6 Suppl 3):1-86.
6 Cooper A, Timmis A, Skinner J; Guideline Development Group. Assessment of recent onset chest pain or discomfort of suspected cardiac origin: summary of NICE guidance. BMJ. 2010;340:c1118.
7 Schuijf JD, Beck T, Burgstahler C, Jukema JW, Dirksen MS, de Roos A, et al. Differences in plaque composition and distribution in stable coronary artery disease versus acute coronary syndromes; non-invasive evaluation with multi-slice computed tomography. Acute Card Care. 2007;9(1):48-53.
8 Gottlieb I, Miller JM, Arbab-Zadeh A, Dewey M, Clouse ME, Sara L, et al. The absence of coronary calcification does not exclude obstructive coronary artery disease or the need for revascularization in patients referred for conventional coronary angiography. J Am Coll Cardiol. 2010;55(7):627-34.
9 Correia LC, ESteves FB, Carvalhal M, de Souza TM, de Sá N, Correira VC, et al. Zero calcium score as a gatekeeper for further testing in patients admitted to the coronary care unit with chest pain. Arq Bras Cardiol. 2017. [In press].
10 Bittencourt MS, Hulten E, Polonsky TS, Hoffman U, Nasir K, Abbara S, et al. European Society of Cardiology-recommended coronary artery disease consortium pretest probability scores more accurately predict obstructive coronary disease and cardiovascular events than the diamond and forrester score: the Partners registry. Circulation. 2016;134(3):201-11.