versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.3 São Paulo mar. 2020 Epub 06-Abr-2020
https://doi.org/10.36660/abc.20200070
O artigo de Pivatto F Jr et al.,1 nos permite discutir a importante questão dos escores prognósticos em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca para endocardite infecciosa (EI).1 O manejo da EI do lado esquerdo geralmente envolve cirurgia durante a admissão índice, e o principal desafio é identificar rápida e corretamente pacientes de alto risco e transferi-los para instituições com uma equipe cirúrgica com experiência em cirurgia de endocardite.
Os escores prognósticos são importantes por várias razões: uma estimativa razoável do risco de morte é importante na tomada de decisão clínica em relação à indicação cirúrgica; a estimativa é necessária para informar os pacientes e suas famílias sobre o risco cirúrgico; a estratificação de risco permite uma comparação razoável dos resultados da cirurgia cardíaca, para que cirurgiões e hospitais que tratam pacientes de alto risco não pareçam ter piores resultados do que outros.2 Para que a mortalidade operatória permaneça uma medida válida da qualidade da assistência, ela deve estar relacionada ao perfil de risco dos pacientes submetidos à cirurgia.2
O Euroscore I, publicado em 1999, avaliou 19.030 pacientes submetidos à cirurgia cardíaca em 8 países da Europa, estudando 97 fatores de risco para óbito, dentre os quais foram selecionados aqueles que significativamente afetaram o prognóstico cirúrgico.2 Essas variáveis são apresentadas na Tabela 1 . Neste estudo, apenas 30% foram submetidos à cirurgia valvar e o número de indivíduos que apresentou endocardite não é mencionado.2
Tabela 1 – Variáveis incluídas em escores prognósticos de cirurgia cardíaca (Euroscore I e II e STS-IE)
Variáveis | EuroScore I | EuroScore II | STS-IE Score |
---|---|---|---|
Idade | |||
Gênero | |||
Peso | |||
Altura | |||
Índice de Massa Corpórea | |||
Diabetes Mellitus | |||
Doença Pulmonar Crônica | |||
Arteriopatia Extracardíaca | |||
Doença Arterial Periférica | |||
Disfunção Neurológica | |||
Baixa Mobilidade | |||
Cirurgia cardíaca prévia | |||
Número de cirurgias prévias | |||
Cirurgia valvar prévia | |||
Insuficiência renal em tratamento conservador | |||
Insuficiência Renal em Hemodiálise | |||
Creatinina Sérica/ Clearance de Creatinina | |||
Arritmia | |||
Hipertensão Arterial Sistêmica | |||
Endocardite infecciosa em atividade | |||
Terapia imunossupressora | |||
Infarto do miocárdio recente | |||
Choque cardiogênico | |||
Uso de inotrópicos | |||
Balão intraaórtico | |||
Classificação NYHA (New York Heart Association) | |||
Cirurgia não coronariana | |||
Angina Instável (CCS IV) | |||
Estado Crítico Pré-operatório | |||
Fração de Ejeção do Ventrículo Esquerdo | |||
Hipertensão Arterial Pulmonar | |||
Ressuscitação | |||
Procedimento de urgência | |||
Peso da Intervenção: | |||
Procedimento único não coronariano | |||
2 Procedimentos | |||
3 Procedimentos | |||
Ruptura septal pós Infarto do miocárdio |
O Euroscore II, publicado em 2012,3 teve como objetivo atualizar o primeiro modelo, avaliando 22.381 pacientes de 43 países do mundo, incluindo locais fora da Europa, para criar um escore mais confiável, incorporando novas variáveis e ajustando outras ( Tabela 1 ). Nesta época, já se sabia que o Euroscore2 superestimava o risco cirúrgico, pois progresso técnico em cirurgia cardíaca havia sido alcançado ao longo da década anterior, com uma diminuição da mortalidade ajustada pelo risco. As melhorias no Euroscore foram: clearance de creatinina como uma medida melhor da função renal do que os valores séricos de creatinina; a angina instável definida pelo uso de nitratos intravenosos estava desatualizada; o peso da intervenção não foi avaliado adequadamente no modelo anterior (por exemplo, a troca valvar aórtica com ou sem cirurgia de revascularização do miocárdio concomitante tinha o mesmo peso) e algumas variáveis contínuas, como número de cirurgias cardíacas anteriores e pressões sistólicas da artéria pulmonar, foram tratadas como dicotômicas.3
A curva ROC ( Receiver Operating Characteristic ) dos escores mostrou uma área abaixo da curva (AUC, area under the curve ) de 0,78 para o Euroscore logístico e aditivo e de 0,80 para o Euroscore II. Uma crítica ao modelo é que, embora países não europeus tenham sido incluídos, a grande maioria dos pacientes era da Espanha, França, Itália e Reino Unido, que contribuíram com 19, 16, 15 e 12 centros, respectivamente.3 Quanto à América Latina, o Brasil contribuiu com dados de 4 centros, Argentina 1 e Uruguai 1. Além disso, o modelo não analisou separadamente a cirurgia valvar. De fato, apenas 2,2% dos pacientes (497 em números absolutos) com EI ativa foram incluídos.4 Uma limitação descrita no estudo foi que todos os centros participaram voluntariamente, o que introduz um viés de seleção para os dados.3
Pacientes com EI precisam ser avaliados minuciosamente. Se tomarmos o perfil habitual de um paciente com EI operado no Instituto Nacional de Cardiologia, por exemplo, ele terá uma creatinina sérica acima do normal, com escore de 2 pontos; doença ativa (em tratamento com antibiótico para EI no momento da cirurgia), com escore de 3 pontos e disfunção ventricular esquerda pelo menos moderada, com escore de 1 ponto, ou seja, o Euroscore dele seria de 6 pontos e a mortalidade prevista seria superior a 11%. Não raramente, esse paciente foi submetido a cirurgia cardíaca anterior (já que mais de um terço tem valvopatia reumática e cerca de 10% tiveram EI anterior), o que acrescenta 3 pontos ao escore.4 - 6 Portanto, o Euroscore I não discrimina bem esse subgrupo de pacientes, pois a maioria provavelmente irá apresentar um escore de 6 ou mais. Patrat-Delon et al.,7 estudando 149 pacientes operados devido a EI na França, entre 2002 e 2013, cuja mortalidade hospitalar foi de 21%, chegaram a uma conclusão semelhante em relação ao EuroSCORE II: subestimou a mortalidade em pacientes com mortalidade prevista acima de 10%.7
O escore da Society of Thoracic Surgeons–Infective Endocarditis (STS-IE), publicado em 2011,8 tem suas variáveis mostradas esquematicamente na Tabela 1 . No subgrupo de pacientes norte-americanos com EI estudados, dos 13.617 pacientes, apenas pouco mais da metade apresentava endocardite ativa no momento da cirurgia.8 A mortalidade geral foi de 8,2%, embora a cirurgia valvar múltipla tivesse uma mortalidade operatória de 13%. As complicações pós-operatórias estavam presentes em mais da metade dos pacientes, sendo as mais comuns a ventilação prolongada em mais de um quarto.
No escore STS-IE, os números variam de 0 a 110 pontos e, de acordo com esse modelo, um paciente com 35 pontos teria um risco operatório de pelo menos 10% de mortalidade.8 Embora apenas pacientes com EI tenham sido estudados, esse foi um registro voluntário exclusivamente de hospitais americanos. Características importantes da EI, como microbiologia, discriminação entre válvulas nativas e próteses e presença de complicações intracardíacas (abscesso, fístula) não foram analisadas. Surpreendentemente, 43% dos pacientes foram operados de maneira “eletiva”, o que é um cenário diferente das outras séries.
Embora não sejam específicos para endocardite, o Euroscore e o Euroscore II levam em consideração a endocardite ativa como uma variável importante associada à mortalidade operatória (ver Tabela 1 ). É importante ressaltar que foram criados vários escores mais específicos para a endocardite, incluindo variáveis com peso significativo em relação à gravidade dessa condição,8 - 13 mostradas na tabela 1 do artigo de Pivatto Jr F et al.1 As características específicas da EI são: EI de válvula protética, grande destruição intracardíaca, Staphylococcus spp. , patógeno isolado na cultura de amostras de sangue (ou seja, hemoculturas positivas), presença de abscesso, complicações perivalvares, microrganismo virulento; além destes, há bloqueio atrioventricular e microrganismos Gram-negativos não-HACEK (os últimos 2 para o modelo INC-Rio4 ) e envolvimento perivalvar (por exemplo, abscesso anular ou fístula aortocavitária).13 Quando agrupados, além do envolvimento da prótese, essencialmente o tipo de microrganismo e a destruição da válvula (bloqueio AV sinalizando abscesso perivalvar) são as características distintivas desses “escores de EI” (ver Tabela 2 ). Mostramos mais dados sobre os escores estudados por Pivatto Jr F et al.,1 na Tabela 3 e adicionamos a isso os escores INC-Rio4 e DeFeo et al. 13 A mortalidade e a AUC dos escores, em relação à população estudada, são mostradas ( Tabela 3 ). Vale ressaltar que a mortalidade foi variável nas diferentes séries e a mortalidade em pacientes operados com EI é pelo menos o dobro da observada em outras cirurgias cardíacas (observe as menores taxas de mortalidade para as populações estudadas no Euroscore I e II). O presente estudo não propõe um escore, e foi adicionado à tabela para mostrar a mortalidade em sua série. Neste estudo1 , a melhor taxa de mortalidade O/E foi alcançada pelo escore PALSUSE, seguido pelo EuroSCORE logístico, que demonstrou o maior poder discriminatório e foi significativamente superior ao EuroSCORE II, STS-IE, PALSUSE, AEPEI, e RISK-E.
Tabela 2 – Variáveis incluídas em escores prognósticos para mortalidade em cirurgia cardíaca em pacientes com endocardite infecciosa submetidos a troca valvar
Variáveis | PALSUSE2014 | AEPEI 2017 | INC-Rio 2016 | EndoSCORE 2017 | RISK-E 2017 |
---|---|---|---|---|---|
Endocardite de valva protética | |||||
Idade | |||||
Grande destruição intracardíaca* | |||||
Staphylococcus spp. | |||||
Cirurgia urgente | |||||
Sexo (feminino) | |||||
EuroScore ≥10 | |||||
IMC > 27Kg/m2 | |||||
Estado pré-operatório crítico | |||||
ClearCreat < 50mL/min | |||||
Classe IV NYHA | |||||
PSAP > 55mmHg | |||||
DPOC | |||||
Cr ≥ 2mg/dL | |||||
FEVE | |||||
Número de válvulas/próteses tratadas | |||||
Microrganismo patogênico isolado em hemoculturas | |||||
Presença de abscesso | |||||
Insuficiência renal aguda | |||||
Choque cardiogênico | |||||
Complicações perivalvares‡ | |||||
Choque séptico | |||||
Trombocitopenia§ | |||||
Microrganismo virulento// | |||||
BAV | |||||
DMID | |||||
GN não-HACEK | |||||
Uso de Inotrópicos |
*Abscessos ou outros achados de ecocardiografia sugeriram que a infecção foi invasiva (comunicação entre câmaras, dissecção de parede ou grande deiscência valvular). ‡ Abscesso, pseudoaneurisma, fistula ou deiscência protética; § < 150.000 plaquetas/mm3. //Staphylococcus aureus ou fungos.
IMC: índice de massa corporal; ClearCreat: clearance de creatinina (taxa de filtração glomerular estimada); NYHA: New York Heart Association; PSAP: pressão sistólica de artéria pulmonar; DPOC: doença pulmonar obstrutiva crônica; Cr: creatinina sérica; FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; BAV: bloqueio atrioventricular; DMID: diabetes mellitus insulinodependente; GN: Gram Negativo; HACEK: Haemophilus spp, Aggregatibacter spp (anteriormente Actinobacillus), Cardiobacterium hominis, Eikenella corrodens, Kingella kingae.
Tabela 3 – Áreas sob a curva (AUC) dos escores de risco propostos para avaliação de mortalidade em cirurgia cardíaca para endocardite infecciosa
ESCORE | AUC | Mortalidade pós- operatória intra-hospitalar | Avaliou EI separadamente? | N estudado | País | Autor, ano |
---|---|---|---|---|---|---|
Logistic EuroSCORE | 0,79 | 4,7% | não | 14.799 | Países europeus* | Nashef 1999 |
EuroSCORE II | 0,81 | 3,9% | não | 22.381 | Países europeus** | Nashef 2012 |
STS-IE | 0,76 | 8,2% | sim | 13.617 | EUA | Gaca 2011 |
“De Feo”*** | 0,88 | 9,1% | sim | 440 | Itália | De Feo 2012 |
PALSUSE | 0,68 | 24,3% | sim | 437 | Espanha | Martínez-Sellés 2014 |
INC-Rio | 0,97 | 17,5% | sim | 154 | Brasil | Martins 2016 |
RISK-E | 0,82 | 28,6% | sim | 671 | França e Espanha | Olmos 2017 |
AEPEI | 0,78 | 15,5% | sim | 361 | França e Itália | Gatti 2017 |
EndoSCORE | 0,85 | 11% | sim | 2.715 | Itália | Di Mauro 2017 |
Não foi criado | Não avaliada | 29% | sim | 107 | Brasil | Pivatto Jr F, 2020 |
AUC: área sob a curva (area under the curve); EI: endocardite infecciosa. *Não está discriminado que países participaram. **A maior parte dos centros de investigação eram da França, Itália e Espanha; países da América do Sul e do Norte, Ásia e África tiveram participação pequena. EUA: Estados Unidos da América. *** Somente pacientes com EI de válvula nativa foram estudados; nenhum nome foi dado ao escore.
Em conclusão, vários grupos estão em busca de um escore adequado para prever a mortalidade em pacientes operados por EI. O Euroscore I e II, amplamente utilizados, e o STS-IE, foram estudados comparativamente aos novos escores propostos, alguns dos quais (por exemplo, PALSUSE) incluíram partes do Euroscore. No Brasil, apenas 2 estudos (o presente, com 107 pacientes, e o de Martins et al.,4 com 154) abordaram o desempenho dos escores na EI, ambos com pequeno número. No primeiro, os autores concluíram que, apesar da disponibilidade de escores específicos, o EuroSCORE logístico era o melhor para prever a mortalidade em sua coorte e nenhum escore foi proposto; no segundo, os escores de EI mencionados não foram avaliados (a maioria deles publicada após 2016), mas a sensibilidade e especificidade do Euroscore I foram de 81,5% e 63%; para Euroscore II, 29,6% e 97,6%, e para o STS-IE 7,4% e 98,4%, respectivamente. Os valores da AUC foram de 0,86 (Euroscore I), 0,90 (Euroscore II) e 0,85 (STS-IE). Na análise multivariada, as variáveis consideradas estatisticamente significantes para óbito foram bloqueio AV, choque cardiogênico, diabetes mellitus insulinodependente, microrganismos Gram-negativos não-HACEK e uso de inotrópicos. Estes foram incluídos em um modelo, o INC-Rio,4 com sensibilidade calculada de 88,9% e especificidade de 91,8%; a AUC foi de 0,97. Casalino et al.14 estudaram todos os tipos de cirurgia valvar em 440 pacientes, nos quais a taxa de mortalidade foi de 16,0% (6,0% em cirurgia eletiva e 34,0% em cirurgia de emergência / urgência) e constataram que a AUC foi de 0,76 para o EuroSCORE aditivo e logístico e 0,81 para o EuroSCORE II. Eles concluíram que os modelos de EuroSCORE tinham boa capacidade discriminatória, embora a calibração estivesse comprometida devido à subestimação da mortalidade.
Acreditamos que um estudo multinacional no Brasil seria de suma importância, com maior número de pacientes, para propor e validar um escore, uma vez que os pacientes com EI em nosso país diferem drasticamente daqueles dos países da América do Norte ou da Europa, principalmente devido à alta proporção de valvopatia reumática, EI causada por estreptococos do grupo viridans , maior demora no diagnóstico e idade mais jovem.