versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.106 no.2 São Paulo fev. 2016
https://doi.org/10.5935/abc.20160022
Espaço-tempo é uma das questões fundamentais da física e mexe com as próprias bases da ciência. São dois conceitos ligados à percepção da nossa simples realidade, através dos quais medimos e interpretamos o universo no qual vivemos.
A noção de espaço está ligada ao território de domínio, característica que interessa a todos os seres vivos para garantir a subsistência, reprodução, segurança e preservação da espécie. Entre nós humanos, evoluímos para a estruturação urbana, forma de convívio predominante há poucas décadas.
O tempo está embutido no próprio DNA, através do fenômeno apoptose, no comando do tempo de cena de cada ator, garantindo renovação permanente e eliminação dos erros de percurso - estratégia para assegurar a continuidade do espetáculo - priorizando a espécie em detrimento do indivíduo. Tem a ver com mortalidade, evolução, desenvolvimento e sustentabilidade.
Mortalidade descreve o tempo médio de vida de uma população dando-nos ilusão de algo homogêneo, mas evidentemente desigual quando analisada sua distribuição, inclusive espacial. A busca da explicação causal das diferenças leva-nos a elucubrar sobre condições e qualidade de vida da população e heterogeneidade no desenvolvimento humano. A comparação de séries históricas permite identificar estratos marginalizados, ou que não conseguem acompanhar as vantagens das quais outros se beneficiam.
Esse tipo de estudo pode ter escala mundial, observando, analisando e comparando um país com outro. Pode-se fazer dentro de um mesmo país com diversas distribuições da matriz espacial, por regiões, estados ou municípios. Pode-se estudar também por gênero, grupos etários, etnias, ocupações, etc.
O estudo da evolução temporal da mortalidade no Estado do Rio de Janeiro1 é um bom exemplo. Nós, em Porto Alegre, preocupados com a questão urbana, estudamos nossa cidade e sua distribuição por bairros,2 revelando, através da mortalidade precoce por doenças cardiovasculares, a vulnerabilidade ligada à desigualdade social e segregação urbana. Um de nossos autores, Sérgio Bassanesi, dizia que, a cada quilômetro que se desloca do centro para a periferia (melhores para piores índices), contam-se anos perdidos de expectativa de vida. Ou, como eu discuti num artigo de jornal da época,3 "diga-me o teu CEP e dir-te-ei teu risco cardiovascular".
As séries históricas permitem olhar indicadores em perspectiva. No estudo da mortalidade no Estado do Rio de Janeiro é possível constatar ao longo do tempo uma queda progressiva e consistente dos índices em quase todas as regiões analisadas, convergindo quase todos para níveis melhores e relativamente mais próximos, embora permaneça - o que seria de se esperar - um atraso entre aqueles que partiram de situações menos favoráveis.
Nossa tendência pela formação (ou deformação) profissional é de nos fixarmos na boa notícia relacionada com indicador de saúde, esquecendo que não passa de um epifenômeno, determinado pela qualidade de vida, e que nem sempre uma redução da mortalidade reflete melhor desempenho nos demais indicadores de desenvolvimento humano. Não somente a saúde - ou mais especificamente a saúde cardiovascular - está atrelada a determinantes sociais, mas também a violência está ligada à desigualdade, aos defeitos de autoestima, ao desinteresse e à falta de perspectiva, à exploração selvagem do trabalho, aos desequilíbrios financeiros e orçamentários, à corrupção, à qualidade da assistência e da informação, enfim, a todas as mazelas que afetam as pessoas, aqui e em qualquer parte do mundo. Para conservar as vantagens e por defesa, nós nos segregamos territorialmente (espaço), como se não estivéssemos ocupando o mesmo espaço ao mesmo tempo, e não pertencêssemos à mesma espécie.
Temos nos preocupado com o aquecimento global, fazendo estimativas sobre quanto tempo ainda temos para evitar a catástrofe global, fugindo do ponto sem retorno. Deveríamos fazer o mesmo ao analisar a temperatura da desigualdade através dos estudos de mortalidade. Quanto tempo ainda nos resta para compreendermos e investirmos na abolição das causas que determinam desigualdade na distribuição espacial dos indicadores de saúde?