versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.2 São Paulo ago. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170093
A angina variante consiste em uma forma de angina pectoris causada pelo vasoespasmo de uma artéria coronária epicárdica que resulta em isquemia do miocárdio, podendo ser manifestada por elevação transitória do segmento ST no eletrocardiograma.1 Embora habitualmente se apresente com dor no peito, episódios assintomáticos não são raros.2,3 Relatamos um caso de diagnóstico incidental de vasoespasmo coronariano assintomático em um paciente com politraumatismo.
Um homem de 42 anos de idade, com histórico pregresso de tabagismo e sem doença cardiovascular prévia, deu entrada no serviço de emergência devido a uma queda acidental de três metros de altura, com traumatismos craniano, facial e torácico. Como parte da avaliação inicial, foi realizado um eletrocardiograma de 12 derivações pelo serviço médico de emergência, que revelou uma elevação transitória do segmento ST de 3 mm nas derivações II, III, aVF, V5 e V6, que não estava mais presente no primeiro ECG realizado na internação (Figura 1). O paciente negou dor torácica, tontura ou dispneia tanto antes quanto após o acidente. O exame físico, incluindo exame neurológico básico, foi completamente normal. Foi realizada tomografia computadorizada craniana, torácica e abdominal sem evidências de lesão nos órgãos. As análises sanguíneas revelaram valores normais de biomarcadores cardíacos. O ecocardiograma transtorácico apresentou medida normal do ventrículo esquerdo, com função sistólica preservada, sem anormalidades de movimento da parede segmentar, e ausência de efusão pericárdica.
O paciente se consultou no setor de cardiologia permanecendo completamente assintomático, sem alterações nos ECGs em série, na determinação de troponina ou nos exames ecocardiográficos. No entanto, devido à alta suspeita de vasoespasmo coronariano, com a presença de alterações isquêmicas transitórias no ECG, foi agendado um cateterismo, realizado 24 horas depois. A angiografia coronária revelou irregularidades luminais leves, principalmente na artéria coronária circunflexa esquerda, porém sem estenose coronária significativa. Foi realizado um teste de ergonovina, que teve resultado positivo clínica e eletricamente, com leve dor torácica e elevação do segmento ST de 3 mm nas derivações II, III e aVF. Também foi documentado um vasoespasmo grave no segmento proximal da artéria circunflexa (Figura 2). Foi administrada nitroglicerina intracoronariana, levando a uma completa resolução das alterações angiográficas e à normalização do segmento ST. A tomografia de coerência óptica revelou uma placa rica em lipídios sem complicações no segmento-alvo. Não foram revelados dados sugestivos de ruptura sutil da placa ou trombo intracoronário.
Figura 2 A Angiografia coronariana basal com estenose não significativa. B) Vasoespasmo coronariano grave induzido por ergonovina da artéria coronária circunflexa (seta) com redução de calibre difusa muito leve em toda a árvore coronária. C) Estrutura normal da parede coronária. A aparência característica de 3 camadas é prontamente visualizada. D) Placa lipídica aterosclerótica não complicada no mesmo segmento coronário onde foi induzido vasoespasmo.
Com o diagnóstico final de angina vasoespástica, o paciente recebeu alta quatro dias depois sob tratamento com bloqueadores dos canais de cálcio e baixa dose de aspirina. Após três meses de acompanhamento, o paciente continuou completamente assintomático, sem novos eventos cardiovasculares.
Este caso atende aos critérios das diretrizes de vasoespasmo exigidas para o diagnóstico de "angina vasoespástica definitiva."4 Observamos alterações isquêmicas transitórias no ECG que foram reproduzidas no laboratório de cateterização durante o teste provocativo com claro espasmo coronariano angiográfico induzido pelo medicamento, resolvido após vasodilatadores. A fisiopatologia desta síndrome inclui disfunção endotelial e aumento do estresse oxidativo.5 Além disso, a função relevante do desbalanço do sistema nervoso autônomo também foi bem definida em seu desenvolvimento.6 O tabagismo também é um fator de risco bem conhecido para vasoespasmo. Contudo, no caso apresentado, a descarga de catecolaminas após o traumatismo pode ter uma função significativa, o que pode ter levado à vasoconstrição coronariana excessiva súbita. Observa-se que o vasoespasmo coronariano também foi relatado com outras manifestações incomuns, como arritmias graves ou, ainda, a Síndrome de Takotsubo.7 Entretanto, no paciente em questão, foi demonstrada uma função ventricular esquerda completamente normal. Este é o primeiro caso conhecido de angina variante assintomática diagnosticada de forma incidental por consequência de outra entidade clínica aguda que precipita o vasoespasmo coronariano.
Além disso, em nosso paciente, a tomografia de coerência óptica foi instrumental para descartar a ruptura da placa ou a formação de trombo intracoronário descrita em pacientes com angina vasoespática. Estudos anteriores sugeriram recentemente que a erosão de uma placa fibrótica subjacente com trombo branco coronário sobreposto pode ser identificada na maioria dos pacientes com vasoespasmo coronariano.8-10 Neste caso, entretanto, foram descartadas imagens sutis de ruptura, erosão ou trombo.
Os nossos achados destacam o amplo espectro desta patologia única. Justifica-se uma maior compreensão da fisiopatologia desta desafiadora entidade clínica para identificar com mais precisão os fatores precipitantes potenciais do vasoespasmo coronariano e, portanto, obter um diagnóstico precoce.