versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.1 São Paulo 2018 Epub 07-Dez-2017
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082017rc4070
A doença de Crohn é uma doença inflamatória intestinal, que causa inflamação transmural do trato gastrintestinal.(1)Nas crianças é mais grave que nos adultos, tanto na apresentação quanto na evolução, fato que deve alertar o médico para o diagnóstico precoce.(2,3)
Conforme idade de início, os pacientes são classificados como precoces, se ela aparecer antes dos 10 anos de idade. Considerando a forma de apresentação, a doença de Crohn é classificada como estenosante, fistulizante, estenosante e fistulizante, nem estenosante nem fistulizante.(4)
O objetivo desse relato de caso foi descrever a evolução de um paciente pediátrico quando estenose e fístulas intestinais estão presentes ao diagnóstico de doença de Crohn.
LFS, 10 anos, sexo feminino, parda. Nascida de parto cesáreo, com 37 semanas, sem intercorrências neonatais. Mãe com pré-natal adequado, G1P1A0, pais não consanguíneos e sem comorbidades. Sem antecedentes familiares de doença autoimune. Vacinação completa. Desenvolvimento neuropsicomotor adequado.
Iniciou dor abdominal, diarreia mucossanguinolenta e perda ponderal aos 9 anos. Após 1 mês do início, realizou endoscopia digestiva alta que evidenciou duodenite crônica inespecífica leve e colonoscopia com úlceras profundas entremeadas de áreas de mucosa normal, e alguns segmentos com lesões coalescentes com estreita mento da luz. Biópsia revelou colite crônica inespecífica moderada. Devido ao quadro clínico, endoscópico e histológicos compatíveis com doença de Crohn, foi iniciado tratamento com prednisolona 2mg/kg/dia e mesalazina 40mg/kg/dia.
A paciente foi encaminhada ao ambulatório de gastrenterologia pediátrica da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, em São Paulo (SP). Na primeira consulta, apresentou índice de massa corporal (IMC) de 13kg/m2(escore Z <-3), estatura 129cm (escore Z <-3) e abcesso e fístula perianais. Pediatric Crohn's Disease Activity Index (PCDAI) pontuava 75, ou seja, atividade grave de doença. Outros resulta dos: hemoglobina 9,3g/dL; hematócrito 27%; leucócitos 10.310/mm3; plaquetas 736.000/mm3; e proteína C-reativa 94,4mg/dL. Foi introduzido infliximabe na dose de 5mg/kg/dose a cada 6 semanas; mesalazina teve a dose ajustada para 60mg/kg/dia. Foram administrados metronidazol e ciprofloxacino − estes dois últimos devido ao abcesso perianal. Nos 6 meses seguintes, houve melhora com redução do PCDAI para níveis de atividade leve.
Após 1 ano, repetiu colonoscopia, que era igual à inicial, PCDAI pontuou 33,5 (atividade moderada), e foi introduzida azatioprina na dose de 2mg/kg/dia. Res sonância de abdômen com fístulas êntero-cólica e fístula anorretal. Tentou-se indução de remissão de atividade de doença com nutrição enteral exclusiva, porém a paciente recusou tanto por via oral como por sonda nasogástrica. Por isso, foi mantida com infliximabe, mesalazina e azatioprina.
Após 2 anos do diagnóstico, por apresentar quadro de distensão abdominal, saciedade precoce, dor abdominal e inapetência persistentes, foi realizada ressonância de abdômen com estenose de íleo distal e, então, optou-se por laparotomia, que evidenciou múltiplas áreas de fístulas e estenoses, as quais foram ressecadas. Evoluiu com melhora nos 6 meses seguintes; porém, após 3 meses, iniciou anemia, perda ponderal e inapetência, sendo aumentado infliximabe 10mg/kg a cada 4 semanas.
Após 4 meses, deu entrada no pronto-socorro infantil com quadro de semioclusão intestinal. Foi submetida à ressecção cirúrgica de áreas estenosadas e das fístulas, ressecado 10cm de íleo e transverso, além da válvula ileocecal. Foi feita ileostomia.
A paciente permaneceu em terapia com azatioprina e adalimumabe, evoluindo com melhora do quadro clínico, normalização de hemoglobina (hemoglobina 14g/dL, proteína C-reativa 0,2mg/dL), ganho ponderal (IMC 21kg/m2), aumento de estatura para 141,2cm, melhora do apetite e da qualidade de vida, além de PCDAI 5 (sem atividade de doença) e calprotectina fecal negativa.
As doenças inflamatórias intestinais são crônicas e com pico de incidência entre 15 e 30 anos. São representadas por três doenças: retocolite ulcerativa, doença de Crohn e colite não classificada. As duas primeiras têm características típicas, e a terceira apresenta-se de forma que não permite diferenciar entre doença de Crohn e retocolite ulcerativa, sendo necessário o acompanhamento a longo prazo para esta definição.
Nos Estados Unidos, a incidência é cerca de 4,5 em 100 mil habitantes para doença de Crohn e 2,4 em 100 mil para retocolite ulcerativa sem dados estimados no Brasil,(3)com proporções semelhantes em ambos os sexos.(5)Nota-se número crescente de diagnósticos nos últimos anos, alertando para a necessidade de o pediatra suspeitar e reconhecer uma doença inflamatória intestinal. As crianças têm doença mais grave que os adultos, o que afeta sobremaneira a qualidade de vida, não só pelas manifestações da doença como também pelos efeitos da terapêutica.(4)
A etiologia é a combinação de genética, meio ambiente e fatores imunológicos.(5)Parentes de primeiro grau tem 20 vezes mais chance de desenvolver a doença que a população geral.(6)Além deste, outros dados reforçam a herança genética da doença, como a concordância da localização e tipo em uma mesma família.(7)
A origem genética da doença de Crohn baseia-se em alterações em genes responsáveis pela homeostase celular (como o IBD1), pela regulação da resposta imunológica e pela barreira adaptativa.(8,9)Fatores ambientais que alteram a microbiota intestinal, como tipo de parto, condições sanitárias, alimentação, uso de antibióticos e tabagismo, são desencadeantes.(10)
Enquanto a retocolite ulcerativa acomete apenas a mucosa do cólon, a doença de Crohn acomete, de forma transmural, qualquer área do trato gastrintestinal, sendo que as mais comumente afetadas são íleo terminal e cólon direito,(3)e, em cerca de 50% dos casos, há também acometimento do trato gastrintestinal superior. O acometimento da doença determina as ulcerações pro fundas, de extensão descontínua, formando um aspecto típico à colonoscopia, chamado “pedra de calçamento”, e também as complicações como estenoses e fístulas.(2)
As manifestações clínicas da doença de Crohn incluem dor abdominal, diarreia, hematoquezia, inapetência, perda de peso, febre e lesão perianal, além de manifestações extraintestinais. Cerca de metade dos pacientes tem baixa estatura e atraso puberal, que podem prece der os sintomas intestinais.(2)
O diagnóstico da doença de Crohn é baseado no somatório de quadro clínico, provas laboratoriais e exames endoscópicos com biópsia.(5)Outro aspecto importante no diagnóstico é o exame de imagem do trato gastrintestinal superior, que, quando acometido, sugere necessidade de cirurgia precoce.(10)
O infliximabe é um anticorpo quimérico monoclonal contra o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), efetivo em induzir e manter remissão da doença, porém seu efeito a longo prazo pode ser complicado pela perda de resposta que ocorre em 13% dos pacientes, podendo, então, o adalimumabe (anticorpo monoclonal humano contra TNF-α) ser uma alternativa.
Quando o paciente já se apresenta com quadros de estenose e doença perianal ao diagnóstico, estas medicações têm resultados pobres. Estudos recentes demonstram que fenótipos fibroestenosantes e fistulizantes de doença de Crohn não respondem bem à terapia medicamentosa e têm benefício com cirurgia precoce.(10)
A paciente evoluiu com refratariedade ao tratamento clínico, apresentando melhora da doença apenas após duas abordagens cirúrgicas. Baseados na literatura científica, acreditamos que a forma estenosante e fistulizante, somada à presença de doença perianal, foram os fatores que limitaram a eficácia do infliximabe. Todavia, não podemos excluir perda de resposta por conta de anticorpos contra infliximabe, pois não dispomos dos exa mes específicos.