versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.108 no.1 São Paulo jan. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20160197
Pessoas que vivem com o HIV (HIV +) têm maior prevalência de aterosclerose e a desenvolvem mais precocemente do que a população geral.
Foi avaliar e comparar as prevalências de aterosclerose avaliada pela medida da espessura mediointimal (EMI) das carótidas comuns e femorais, e do índice tornozelo-braquial (ITB) nos grupos controle e HIV com e sem inibidores de protease (IPs).
Foram incluídas 80 pessoas com HIV + [40 usavam IPs e 40 não] e 65 controles. O diagnóstico de aterosclerose foi determinado pela medição da EMI (carótidas e femorais) e do ITB. Fatores de risco clássicos para aterosclerose e específicos para o HIV foram comparados entre os grupos, usando testes estatístcos. O valor de p ≤ 0,05 foi cosiderado significativo.
A EMI > P75 ou presença de placa foi mais elevada no grupo de HIV sem IP que no controle (37,5% vs 19%, p = 0,04). A análise comparativa mostrou diferença significativa (p=0,014) na EMI nas artérias carótidas entre HIV + com IPs (0,71 ± 0,28 mm), sem IPs (0,63 ± 0,11 mm) e controles (0,59 ± 0,11 mm), A EMI na femoral não teve diferença significante entre os grupos. Não houve diferença significante entre os grupos controle e de HIV + quanto ao ITB. No entanto, observou-se uma diferença significativa (p=0,015) no ITB entre os grupos HIV + sem IPs (1,17 [1,08 - 1,23]), e controles [1,08 (1,07 - 1,17)].
Em pacientes com HIV, a aterosclerose é mais prevalente e parece ocorrer mais precocemente, com características distintas, em comparação a indivíduos HIV-negativos.
Palavras-chave: Doenças das Artérias Carótidas; Aterosclerose; Espessura Íntima-Média Carotídea; HIV; Índice Tornozelo-Braço
The prevalence of atherosclerosis is higher in HIV-positive people, who also experience it earlier than the general population.
To assess and compare the prevalence of atherosclerosis evaluated by the intima-media thickness of carotid and femoral arteries, and by the ankle-brachial pressure index (ABPI) in HIV patients treated or not treated with protease inhibitors (PIs) and controls.
Eighty HIV+ subjects (40 using PIs and 40 not using PIs) and 65 controls were included in the study. Atherosclerosis was diagnosed by (carotid and femoral) ITM measurement and ABPI. Classical risk factors for atherosclerosis and HIV were compared between the groups by statistical tests. A p ≤ 0.05 was considered significant.
An IMT > P75 or the presence of plaque was higher in the HIV+ than in the control group (37.5% vs 19%, p = 0.04). Comparative analysis showed a significant difference (p=0.014) in carotid IMT between HIV+ with PIs (0.71 ± 0.28 mm), without PIs 0.63 ± 0.11 mm and, and controls (0.59 ± 0.11 mm). There was no significant difference in femoral IMT between the groups or in ABPI between HIV+ subjects and controls. However, a significant difference (p=0.015) was found between HIV+ patients not treated with PIs (1.17 [1.08 - 1.23]), and controls 1.08 [1.07 - 1.17]).
In HIV patients, atherosclerosis is more prevalent and seems to occur earlier with particular characteristics compared with HIV-negative subjects.
Keywords: Carotid Artery Disease; Atherosclerosis; Carotid Intima-Media Thickness; HIV; Ankle Brachial Index
Indivíduos que vivem com HIV (HIV +) têm condição de vida diferente da população livre de infecção no que diz respeito à morbimortalidade por aterosclerose e eventos cardiovasculares a ela associados.1,2 A doença cardiovascular (DCV), particularmente aterosclerótica, é mais prevalente e precoce em HIV+, quando se compara à população sem infecção.3-5
Os fatores de risco tradicionais para DCV são: idade, sexo masculino, tabagismo, diabetes mellitus (DM), dislipidemia e hipertensão arterial sistêmica (HAS). Estudos demonstram que esses fatores podem ser mais prevalentes nas pessoas com HIV.6,7
A terapia antirretroviral altamente ativa (TARV) está associada a uma variedade de efeitos adversos, sendo esses pró-aterogênicos e também associados à DCV.8,9 Enquanto alguns autores sugeriram que os inibidores de proteases (IPs) podem estar associados à aterosclerose precoce e DCV,10 e outros demonstraram que medicações mais modernas alteram menos o perfil lipídico e, assim, têm menor influência sobre o aumento do risco cardiovascular por disfunção endotelial.11 Ao comparar HIV +, dislipidêmicos, tratados com IP com o grupo controle saudável, autores não encontraram diferença na função endotelial entre os grupos.12
A medida da espessura mediointimal (EMI) é um marcador não-invasivo e precoce da aterosclerose, cujo aumento que pode refletir em um maior risco cardiovascular.13 Essa medida é um preditor independente de DCV e pode ser considerada como marcador para avaliação de aterosclerose subclínica, inclusive em HIV +.14 A artéria femoral comum e a subclávia direita também vêm sendo estudadas como locais para a medida da EMI e sugeridas como marcadores mais precoces de aterosclerose.15-17
O índice tornozelo-braquial (ITB) é um método simples, não-invasivo, de alto valor preditivo para doença arterial periférica (DAP) e doença cardíaca. Valores inferiores a 0,9 estão associados a um significativo aumento do risco cardiovascular, independente de outros fatores de risco.18
A detecção de aterosclerose subclínica possibilita um manejo mais adequado de HIV + com risco de desenvolver eventos cardiovasculares.
Neste estudo, o objetivo principal foi avaliar a prevalência de aterosclerose por meio da medida da EMI das artérias carótidas comuns e femorais, e do ITB. O objetivo secundário foi comparar fatores de risco clássicos de aterosclerose e específicos do HIV entre os grupos que utilizavam ou não IP.
Este é um estudo transversal, prospectivo e analítico que recrutou HIV + em uso de TARV com ou sem IPs no período de junho de 2015 a fevereiro de 2016. A amostra foi definida empiricamente pelos autores com base na literatura sobre o tema,19,20 e incluiu 40 HIV + em uso de TARV com IP, 40 HIV + em uso de TARV sem IP e 65 controles.
Os pacientes foram selecionados no ambulatório de Doenças Infecciosas e Parasitárias da instituição de acordo com os critérios de inclusão e exclusão. Visando um parâmetro de referência para comparação das medidas nos indivíduos com HIV, foram incluídas 65 pessoas saudáveis (controle), sendo essas pareadas com os pacientes por gênero e idade (40 pacientes com HIV em uso de IPs com 40 controles e 40 pacientes sem IPs com 25 controles). Os indivíduos com HIV são inscritos no programa de prevenção, controle e tratamento da AIDS, e os controles eram acompanhantes dessas pessoas.
O critério de inclusão das pessoas com HIV foi um mínimo de cinco anos de tratamento com TARV, e os critérios de exclusão foram antecedentes de doenças cardiovasculares - angina pectoris, infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC), ou DAP; internação nos últimos dois meses; dosagem de CD4 muito baixa e/ou carga viral (CV) muito alta. Os controles saudáveis foram selecionados com os seguintes critérios de exclusão: antecedentes cardiovasculares, tabagismo, DM e/ou HAS.
As informações clínicas e dos exames complementares foram coletados por aplicação de questionários. Os prontuários dos participantes foram também consultados para esclarecimentos referentes à terapêutica. Os participantes do estudo tinham escore de risco de Framingham inferior a 10% (baixo risco).
Os fatores de risco para aterosclerose analisados foram: HAS, taba gismo, DM, hipercolesterolemia, hipertrigliceridemia e história familiar de evento cardiovascular - IAM, angina, AVC ou DAP. Para a avaliação de obesidade, realizou-se o cálculo do índice de massa corpórea (IMC), sendo considerado IMC de 18,5 a 24,9 kg/m2 como peso saudável e de 25,0 a 29,9 kg/m2 sobrepeso. Fatores específicos relacionados ao HIV foram: CD4 atual, CV atual, tempo de doença, tempo de trata mento e tipo de TARV.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da instituição. Para os pacientes e controles foi aplicado o termo de consentimento livre e esclarecido.
A avaliação ultrassonográfica da medida da EMI das artérias ca rótidas comuns e femorais comuns foi realizada no modo B do ultrassom (USG) LOGIQ e, DICOM 3.0, AUTO IMT com transdutor linear 12L-RS da General Electric® (GE) por pesquisador "cego". A EMI da carótida comum foi considerada como medida de referência. As carótidas eram avaliadas em cortes transversal e longitudinal, desde o segmento proximal da carótida comum até a bifurcação das carótidas internas e externas. A medida da EMI foi realizada na parede posterior da carótida comum em área livre de placa, e foi definida como a distância entre duas linhas ecogênicas representadas pelas interfaces lúmen-íntima e média-adventícia da parede arterial. Mede-se mais frequentemente a EMI na carótida comum usando-se, como referência, a medida média e, na carótida interna, a medida máxima.15 A placa carotídea ateromatosa pode ser definida como uma estrutura focal que se estende no mínimo 0,5 mm para a luz do vaso e/ou mede mais que 50% do valor da EMI adjacente e/ou apresenta uma medida da EMI maior que 1,5mm.15 A medida automática da EMI foi realizada nas carótidas comuns direita e esquerda, com software que determina as medidas média, máxima e mínima. Quando identificadas placas ateromatosa, realizou-se a medida automática e manual da EMI. A média da medida automática da carótida comum mais espessada foi definida como referência, seja ela direita (CCD) ou esquerda (CCE). Como a população estudada tinha até 65 anos, a EMI foi considerada espessada se >0,8 mm17,21,22 e também foi calculado o percentil 75 da população estudada.15 A presença de placa foi definida quando demonstrada uma EMI >1,5 mm.15 Também foi realizada a medida da EMI em artéria femoral comum direita (AFCD) e esquerda (AFCE). Adotou-se a mesma referência para espessamento da EMI da carótida comum e mesmo critério para placas.
O ITB foi calculado após aferição da pressão nos tor nozelos direito e esquerdo. A pressão foi aferida sob visão direta das artérias dorsal do pé e tibial posterior. Para aferição da pressão arterial nos membros superiores (MMSS) e inferiores (MMII) utilizou-se apa relho esfignomanômetro Becton Dickinson® e aparelho de USG Doppler acima descrito. O ITB foi calculado dividindo a maior pressão sistólica do tornozelo pela maior pressão sistólica braquial. O valor do ITB considerado normal foi de 0,9 a 1,3; sendo > 1,3 artérias incompressíveis e < 0,9 DAP.21
Na análise estatística, foi aplicado o teste de Kolmogorov-Smirnov para avaliar a normalidade dos dados. Quando houve distribuição normal, as variáveis foram apresentadas como média e desvio padrão e quando não, como mediana e valores máximo e mínimo. Foi realizada análise estatística descritiva e analítica. O valor de p foi considerado significativo quando ≤ 0,05.
Foram calculadas as prevalências de aterosclerose e seus respectivos intervalos de confiança ao nível de 95% nos grupos com e sem HIV e testadas as diferenças pelo teste Qui-Quadrado de Pearson. As Odds Ratios (ORs) foram calculadas tomando como referência o grupo controle e estimadas a OR para cada um dos grupos HIV com e sem uso de IPs.
Na comparação dos fatores de riscos clássicos para aterosclerose entre os grupos, nas variáveis idade e IMC foi utilizada a ANOVA para a comparação das médias, com pós-teste de Bonferroni. Na comparação das medianas, foi utilizado o teste não paramétrico de Kruskall-Wallis. Para as variáveis categóricas foi utilizado o teste Qui-quadrado de Pearson.
Para a avaliação de chance de aterosclerose segundo a condição HIV e uso de IP, foi aplicada análise multivariada de modelo logístico, ajustada pelas variáveis: cor da pele, condição de hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia, DM e IMC. Essas variáveis eram significativamente diferentes entre os grupos.
Para a análise de validação da EMI femoral, a EMI da carótida comum foi adotada como medida de referência, e uma curva ROC foi aplicada para a determinação do cut-off da EMI femoral. As análises foram realizadas pela estatística C (área sob a curva ROC), medidas de sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo (VPP) e negativo (VPN), calculados pelo software Stata versão 12.0.
Foram recrutadas 40 pessoas com HIV/AIDS em uso de TARV com IPs (26 homens, idade média de 42,7 ± 8,8 anos), 40 pessoas com HIV/AIDS em uso de TARV sem IP (21 homens, idade média de 42,2 ± 9,1 anos) e 65 controles (37 homens, idade média de 39,7 ± 9,7 anos).
O percentil 75 calculado para os 145 pacientes estudados foi de 0,66 mm. Quando a EMI foi considerada espessada (> 0,66 mm), a análise comparativa da EMI nas artérias carótidas entre controles, HIV + sem e com IPs revelou 0,59 ± 0,11 mm vs 0,63 ± 0,11 mm vs 0,71 ± 0,28 mm, respectivamente com p = 0,014 (Tabela 1). Presença de EMI > P75 ou placa nos controles foi 19,0% (9,1 - 29,0), enquanto nas HIV + sem IP 37,5% (21,8 - 53,2), sendo p = 0,041 (Tabela 1).
Tabela 1 Prevalência de aterosclerose pela espessura mediointimal (EMI) das artérias carótidas comuns e femorais e pela alteração de índice tornozelo-braquial (ITB) entre os indivíduos não portadores do HIV, pessoas que vivem com HIV em uso de terapia antirretroviral com e sem prescrição de inibidor de protease (IP)
Aterosclerose | OR (IC 95%)b valor de p (controle x sem IP) | OR (IC 95%)b valor de p (controle x com IP) | valor de p (3 grupos) | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Não portadores do HIV % (IC 95%) | Pessoas que vivem com HIV % (IC 95%) | Pessoas que vivem com HIV | OR controle xHIV (IC 95%)b valor de p | ||||||
Sem IP % (IC 95%) | Com IP % (IC 95%) | ||||||||
Espessamento mediointimal | |||||||||
Carótida | |||||||||
EMI | 0,59 ± 0,11 | 0,70 ± 0,27 | 0,63 ± 0,11 | 0,71 ± 0,28 | 0,004 | 0,007 | 0,006 | 0,014 | |
EMI >P75 ou presença de placa | 19,0% (9,1 - 29,0) | 35,0% (24,3 - 45,7) | 37,5% (21,8 - 53,2) | 32,5% (17,3 47,7) | 2,28 (1,05 - 4,98) p = 0,037 | 2,55 (1,04 - 6,25) p = 0,041 | 2,05 (0,82 -6,25) p = 0,124 | 0,095 | |
EMI >0,8mm ou presença de placa | 3,2% (0,0 - 7,6) | 15,0% (7,0 - 23,0) | 15,0% (3,4 - 26,6) | 15,0% (3,4 - 26,6) | 5,38 (1,16 - 25,1) p = 0,032 | 5,38 (1,03 - 28,1) p = 0,046 | 5,38 (1,03 - 28,1) p = 0,046 | 0,061 | |
Femoral | |||||||||
EMId | 0,74 ± 0,30 | 0,79 ± 0,33 | 0,75 ± 0,27 | 0,82 ± 0,38 | 0,373 | 0,661 | 0,155 | 0,351 | |
EMI >P75 ou presença de placa | 50,8% (38,1 -63,5) | 65,0% (54,3 - 75,7) | 60,0% (44,1 - 75,9) | 70,0% (55,1 - 84,8) | 1,80 (0,92 - 3,53) p = 0,088 | 1,45 (0,65 -3,24) p = 0,361 | 2,26 (0,98 -5,22) p = 0,056 | 0,153 | |
EMI >0,8mm ou presença de placa | 11,1% (3,1 - 19,1) | 20,0% (11,0 - 29,0) | 20,0% (7,0 32,9) | 20,0% (7,0 - 32,9) | 2,00 (0,77 - 5,21) p = 0,156 | 2,00 (0,66 - 6,03) p = 0,218 | 2,00 (0,66 - 6,03) p = 0,218 | 0,356 | |
Alteração do ITBc | |||||||||
ITBe | 1,08 (1,07; 1,17) | 1,15 (1,08; 1,2) | 1,17 (1,08; 1,23) | 1,08 (1,07; 1,17) | 0,190 | 0,015 | 0,797 | 0,019a | |
Normal (0,9 - 1,3) | 95,2% (92,0 - 100) | 96,3% (92,0 - 100) | 90,0% (80,3 - 99,9) | 100% (-) | Referência | Referência | Referência | - | |
Incompressível (> 1,3) | 4,8% (0,0 - 10,2) | 5,0% (0,1 - 9,9) | 10,0% (0,03 - 19,7) | 0% (-) | 1,05 (0,23 - 4,88) p = 0,948 | 2,22 (0,47 - 10,5) p = 0,314 | Não calculado | 0,116 |
ITB: Índice tornozelo-braço; OR: Odds Ratios; HIV: vírus da imunodeficiência humana.
aa P75 do EMI da população em estudo igual a 0,66mm;
bGrupo de referência: indivíduos HIV-negativos;
cNão houve pesquisados com ITB abaixo de 0,9;
dMedida com transformação logarítmica para normalização da distribuição;
eMediana (P25; P75) - aplicação do teste de Kruskal-Wallis na comparação dos grupos.
A prevalência da EMI > 0,8 mm ou presença de placa aterosclerótica nas artérias carótidas foi de 3,2% (0,0 - 7,6) nos controles e 15,0% (7,0 - 23,0) em HIV +, p = 0,032. Na tabela 1, são demonstradas algumas comparações de medidas da EMI nas artérias carótidas e femorais, e ITB entre os grupos.
Não houve diferença significativa no ITB entre os grupos controle e de HIV +. A comparação entre controles e HIV + sem IP revelou 1,08 (1,07 - 1,17) + vs 1,17 (1,08 - 1,23), p = 0,015. A EMI na artéria femoral entre os grupos controle e de HIV + foi 0,74 mm ± 0,30 vs 0,79 mm ± 0,33, p = 0,373 (Tabela 1).
Com relação aos fatores de risco para aterosclerose, considerando as 80 HIV +, estavam presentes: tabagismo em 6 pacientes (7,5%), HAS em 7 (8,75%), hipercolesterolemia em 15 (18,75%), hipertrigliceridemia em 24 (30%) e DM em 6 (7,5%). O IMC médio se mantinha dentro da normalidade nos HIV + com IPs, no limite inferior de sobrepeso no grupo sem IPs, e classificado como sobrepeso no grupo controle. O IMC nos grupos controle, HIV + sem e com IPs foi 26,2 ± 5,4 vs 25 ± 3,6 vs 24,7 ± 3,7 kg/m2, respectivamente, sendo p = 0,193 (Tabela 2).
Tabela 2 Comparação dos fatores de risco clássicos para aterosclerose entre os indivíduos não portadores do HIV, pessoas que vivem com HIV em uso de terapia antirretroviral com e sem prescrição de inibidor de protease (IP)
Fatores de risco para arteriosclerose | Grupos | valor de p (controle x sem IP) | valor de p (controle x com IP) | valor de p (3 grupos) | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Não portadores do HIV (n = 63) | Pessoas que vivem com HIV | |||||
Sem IP (n = 40) | Com IP (n = 40) | |||||
Idade, anos (média ± dp)b | 39,7 ± 9,7 | 42,2 ± 9,1 | 42,7 ± 8,8 | 0,550 | 0,351 | 0,215 |
Sexo masculino (%) | 37 (58,7%) | 21 (52,5%) | 26 (65,0%) | 0,998 | 0,276 | 0,525 |
Anos de escolaridade (%) | ||||||
De 0 a 4 anos | 55 (87,3%) | 33 (82,5%) | 33 (82,5%) | 0,501 | 0,501 | 0,732 |
De 5 a 7 anos | 8 (12,7%) | 7 (17,5%) | 7 (17,5%) | |||
Cor da pele (%) | ||||||
Branca | 27 (42,9%) | 8 (20,0%) | 10 (25,0%) | 0,017a | 0,066 | 0,030a |
Não branca | 36 (57,1%) | 32 (80,0%) | 30 (75,0%) | |||
Tabagismo (%) | 0 (0%) | 4 (10,0%) | 2 (5,0%) | Não calculado | Não calculado | 0,046a |
HAS (%) | 0 (0%) | 2 (5,0%) | 5 (12,5%) | Não calculado | Não calculado | 0,062 |
Hipercolesterolemia (%) | 3 (4,8%) | 3 (7,5%) | 12 (30,0%) | 0,563 | <0,001a | <0,001a |
Hipertrigliceridemia (%) | 1 (1,6%) | 2 (5,0%) | 22 (55,0%) | 0,315 | <0,001a | <0,001a |
Diabetes (%) | 0 (0%) | 1 (2,5%) | 5 (12,5%) | Não calculado | Não calculado | 0,007a |
IMC, kg/m2 (média ± dp)b | 26,2 ± 5,4 | 25,0 ± 3,6 | 24,7 ± 3,7 | 0,585 | 0,285 | 0,193 |
Sobrepeso/obeso (%) | 36 (57,1%) | 19 (47,5%) | 19 (47,5%) | 0,339 | 0,339 | 0,519 |
aAplicação da ANOVA com pós-teste de Bonferroni;
bApesar da diferença significativa entre os grupos, para as condições hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia e raça, as associações não foram ajustadas pela baixa frequência das variáveis. HIV: vírus da imunodeficiência humana; HAS: Hipertensão arterial sistêmica; IMC: índice de massa corpórea; dp: desvio padrão.
O tempo de doença foi significativamente diferente entre HIV + com IPs (13,6 ± 6,2 anos) e sem IPs (7,3 ± 6,8 anos) (p < 0,001). O tempo de TARV foi de 12,1 ± 6,7 anos no grupo com IPs vs 6,6 ± 6,7 anos no grupo sem IP, p < 0,001. Apenas 4 (5%) HIV + tinham CD4 abaixo de 200 e apenas 7 (8,75%) pesquisados tinham CV detectável, sendo a máxima de 3231 cópias (Tabela 3).
Tabela 3 Comparação dos fatores de risco, medidas laboratoriais e relacionadas à infecção pelo HIV entre as pessoas que vivem com HIV em uso de terapia antirretroviral com e sem prescrição de inibidor de protease (IP)
Fatores | Sem IP | Com IP | valor de p |
---|---|---|---|
Laboratoriaisa | |||
Colesterol (mg/dl)b | 182,3 ± 32,9 | 188,0 ± 57,9 | 0,642 |
Colesterol HDL (mg/dl)b | 52,5 ± 13,6 | 45,4 ± 10,6 | 0,071 |
Colesterol LDL (mg/dl)b | 103,2 ± 31,0 | 81,8 ± 25,2 | 0,044 |
Triglicerídeo (mg/dl)c | 95,7 (73,6; 143,5) | 238,1 (140; 375,9) | <0,001 |
Relacionados ao HIV | |||
Tempo HIV (em anos)b | 7,27 ± 6,78 | 13,62 ± 6,20 | <0,001 |
Tempo TARV (em anos)b | 6,62 ± 6,65 | 12,1 ± 6,69 | <0,001 |
Contagem de CD4 (%) | |||
< 200 células/mm3 | 2 (5,0%) | 2 (5,0%) | 0,599 |
De 200 a 500 células/mm3 | 9 (22,5%) | 13 (32,5%) | |
> 500 células/mm3 | 29 (72,5%) | 25 (62,5%) |
aa 36/40 no grupo sem IP e 20/40 no grupo com IP tinham informações laboratoriais;
bMédia ± desvio padrão; teste t de Student;
cMediana (P25; P75); teste não paramétrico de Mann-Whitney. HIV: vírus da imunodeficiência humana; HDL: High Density Lipoprotein; LDL: Low Density Lipoprotein; TARV: terapia antirretroviral altamente ativa.
Houve correlação de Pearson positiva entre os EMI da carótida comum e da femoral [ρ = 0,354 (p<0,001)] (Figura1).
Figura 1 Correlação entre as medidas da espessura mediointimal (EMI) da artéria carótida comum e EMI da artéria femoral comum; *Correlação de Pearson = 0,354 (p < 0,001)
Na figura 2, observa-se a curva ROC das medidas da EMI pela artéria femoral considerando-se aterosclerose como a EMI na artéria carótida > 0,66 mm. Usando ponte de corte na femoral de 0,7mm, observou-se sensibilidade de 72,5%, especificidade de 46,6%, área da curva ROC de 0,661e kappa de 14,3% (Tabela 4).
Figura 2 Curva ROC das medidas da espessura mediointimal (EMI) da artéria femoral considerando arteriosclerose uma medida da EMI na artéria carótida comum acima de 0,66mm; *Área sob a curva = 0.6614 (IC95%: 0,563 - 0,760).
Tabela 4 Acurácia da medida da espessura mediointimal (EMI) das artérias femorais e da EMI das artérias carótidas nos pacientes estudados
EMI carótidaa | Estatísticas (IC 95%) | ||
---|---|---|---|
Com arteriosclerose | Sem arteriosclerose | ||
EMI femoralb | |||
Com arteriosclerose | 29 | 55 | Sensibilidade: 72,5% (58,0 - 86,9) |
Sem arteriosclerose | 11 | 48 | Especificidade: 46,6% (36,8 - 56,4) |
Total | 40 | 103 | VPP: 34,5% (24,1 - 44,9) |
VPN: 18,6% (8,4 - 28,9) | |||
Área sob a curva: 0,661 (0,563 - 0,760) | |||
Kappa: 14,3% (0,8 - 27,8) |
aAterosclerose pelo percentil 75 do EMI da população em estudo maior ou igual a 0,66mm;
bAterosclerose pelo cutoff da EMI da femoral maior ou igual a 0,7mm estimada pela curva ROC. VPP: Valor preditivo positivo; VPN: Valor preditivo negativo.
O presente estudo revelou que a EMI em artérias carótidas foi maior nas HIV + do que nos controles, independentemente do uso de IPs. .
Eira20 estudou 118 pacientes, sendo esses divididos em 4 grupos (HIV em uso de TARV, HIV sem tratamento - grupo naive, diabéticos não insulino-dependentes e controle). A EMI da carótida direita foi maior no grupo naive, comparado aos grupos TARV e controle (0,55 ± 0,02 mm vs 0,52 ± 0,02 mm vs 0,52 ± 0,02 mm, respectivamente; p<0,001), enquanto a EMI da carótida esquerda foi maior no grupo TARV, comparado aos grupos naive e DM (0,64 ± 0,04 mm vs 0,53 ± 0,04 mm vs 0,52 ± 0,04 mm, respectivamente; p<0,0001). Desta forma, em pacientes com HIV naive ou usando TARV as espessuras carotídeas foram maiores, sendo concordantes com nossos resultados no sentido de maior espessura em pessoas com o vírus quando comparadas a outras pessoas.20 Outros autores também demonstram maior prevalência de aterosclerose em pessoas com HIV tratadas com TARV.23
Nossos achados são diferentes do estudo de Godoi et al.21,22 que incluiu 70 pessoas com HIV e 70 controles e revelou não haver diferenças entre os grupos. Entretanto, a população era mais jovem do que no nesse estudo e havia pessoas tabagistas, hipertensas e com DM entre os controles, o que pode ter contribuído para maior medida da EMI.
Pessoas com HIV no nosso estudo tinham valor médio da EMI acima do percentil 75 calculado para população do estudo e esta medida foi maior do que nos controles.
O percentil 75 da EMI depende da população estudada, pois está relacionado ao sexo, raça e idade. No estudo Elsa-Brasil, quando foi avaliado este percentil em indivíduos na faixa etária semelhante a do nosso estudo, de raça parda e do sexo masculino, o percentil 75 foi entre 0,58 e 0,63 mm.15
Em HIV +, a ativação imunológica crônica e a inflamação crônica são associadas ao aumento do risco de aterosclerose. A USG foi um dos primeiros métodos diagnósticos a revelar alta incidência de aterosclerose subclínica em indivíduos infectados pelo HIV quando comparados aos controles não infectados.24,25
Existe a hipótese de que a TARV induza a ativação da função endotelial no sentido de promoção de aterosclerose. Desta forma, o HIV, a resposta de reconstituição imune, e a TARV podem promover ativação prematura do endotélio, sendo possivelmente fatores pró-aterogênicos e/ou aceleradores de aterosclerose.26,27 A comparação da EMI entre os grupos HIV + com e sem IPs não demonstrou diferença significante no presente estudo. Apesar da hipótese da disfunção endotelial relacionada à TARV, alguns aspectos necessitam de melhores esclarecimentos.
Nolan et al.12 compararam pessoas com HIV com dislipidemia tratadas com IPs e grupo controle saudável e não encontraram diferença na função endotelial entre os grupos.
Em nosso estudo, apesar de os pacientes com HIV em uso de IP terem tempo de doença e tempo de tratamento significativamente maior que o grupo sem IP, o uso de IPs aparentemente não influenciou na EMI das HIV +.
Em algumas situações, o tratamento de HIV + pode ser iniciado sem IPs. Neste estudo, é possível que o grupo de pacientes com IPs tenha realizado tratamento prévio sem uso de IPs, o que pode justificar maior o tempo de doença e de tratamento nesse grupo.
A ausência de diferença significante na medida da EMI entre os grupos de HIV + com e sem IP pode ser justificado pelo fato de que os IPs mais modernos estarem menos relacionados aos distúrbios metabólicos e, assim, interferirem menos no aumento do risco cardiovascular por disfunção endotelial.28,29
A TARV tem como princípio o controle viral e estabilização da imunidade do indivíduo, resultando no aumento da expectativa de vida e na redução das infecções oportunistas.1 Pessoas com HIV têm alterações cardiovasculares decorrentes da exposição aos fatores de risco clássicos da DCV, infecção pelo vírus e cardiotoxicidade das drogas antirretrovirais.8 A população com HIV do presente estudo estava estável do ponto de vista imunológico. A maioria tinha CD4 acima de 200 células/mm3 e apenas sete pessoas tinham CV detectável. Não houve diferença significante entre os grupos com e sem IP quanto aos valores de CD4 e CV.
Estudos têm demonstrado que a aterosclerose em HIV + é mais prevalente e precoce que na população não infectada, e nosso estudo é concordante com esses achados.3-5
No presente estudo, a prevalência de hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia foi maior no grupo HIV + que usa IPs, o que pode estar relacionado, de alguma forma, com a utilização desse fármaco.
A alta prevalência do ITB > 1,3 em HIV + pode ser mediada pelo envolvimento da elasticidade vascular assim como pela formação de placas de ateroma.10 No presente estudo, não houve diferença significante do ITB entre os grupos de HIV + e controle, mas houve diferença quando comparado o grupo de HIV + sem IP e controle, o que pode ser explicado pelo comprometimento da elasticidade da parede do vaso. O ITB do grupo sem IP ainda estava dentro da faixa de normalidade.
Uma metanálise estudou o ITB em pacientes com HIV. As populações foram selecionadas com critérios variados e não houve consenso em relação aos fatores de risco responsáveis pelo ITB anormal. A prevalência de ITB aumentado foi mais alta do que na população geral. Na população com HIV, não está claro se a alta prevalência de ITB alterado está associada com maior incidência de eventos cardiovasculares.30
A medida da EMI em carótida comum continua a ser a referência quando comparada a outros locais, sobretudo porque estudos que correlacionam aumento do risco cardiovascular e infecção por HIV adotam a medida carotídea, a qual apresenta melhor acurácia. A medida da EMI em femoral comum e origem da subclávia direita também pode ser considerada e sugerida por alguns autores como marcador mais precoce de ateromatose, mas não concilia alta especificidade e sensibilidade, o que foi corroborado por nosso estudo.16,17,22
Quando comparada a medida da EMI da carótida comum com a da femoral, observou-se uma correlação positiva de Pearson, sugerindo uma fraca correlação direta entre as duas medidas. Acreditamos que estudos com maior número de pacientes sejam necessários para melhor esclarecimento dessa correlação. Um estudo demonstrou uma correlação (Pearson) entre artéria carótida comum e artéria subclávia direita, mas essa também não foi forte.17
Nesse estudo, foi utilizada a curva ROC para comparação de dois testes, sendo um a medida da EMI na artéria carótida comum (usada como referência) e o outro a medida na artéria femoral. A curva ROC permite comparar dois ou mais exames diagnósticos e isso é uma das suas maiores virtudes.31
Estabelecendo o ponto de corte da EMI ≥ 0,7 mm, foi testada a acurácia da EMI em femoral e carótidas em pessoas com HIV. Com base na sensibilidade, especificidade, VPP e VPN, o EMI na artéria femoral não poderia substituir a medida na artéria carótida e ser usada como referência nessa população.
As principais limitações desse estudo foram: definição empírica do tamanho amostral e o desenho do estudo que não permite estabelecimento de relação causa-efeito. Entretanto, deve ficar registrado que há estudos na literatura sobre o tema que apresentam população menor que a nossa. Poderíamos ainda debater se a não realização da velocidade de onda de pulso e a dilatação fluxo mediada da artéria braquial (DILA), que também são métodos não invasivos de diagnóstico de aterosclerose subclínica, seria ou não uma limitação. Contudo, existem dados mais consistentes sobre a EMI como preditor de risco cardiovascular.19,20
A maior EMI e maiores prevalências de EMI acima do percentil 75, EMI acima de 0,8 mm ou presença de placa aterosclerótica em HIV + sugerem ocorrência mais precoce da aterosclerose nessa população em comparação a controles saudáveis. Entretanto, não houve diferenças entre os grupos quanto à ocorrência de ITB anormal.
A prevalência de tabagismo foi maior em HIV + sem IPs, enquanto hipercolesterolemia, hipertrigliceridemia e DM no grupo com IP. O tempo de doença e o tempo de tratamento com TARV foi maior em HIV + com IPs.
A medida da EMI nas artérias carótidas comuns continua a ser a medida de referência na detecção de aterosclerose, pois na correlação com artéria femoral a sensibilidade foi moderada e especificidade baixa.