versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.26 no.2 São Carlos abr./jun. 2018
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1153
Sob a égide da Reabilitação Psicossocial, que preconiza a transformação da atenção dos serviços de saúde e da sociedade, propondo a facilitação do funcionamento de indivíduos por meio da minimização de incapacidades e desvantagens de pessoas com transtorno mental, diversas intervenções têm sido propostas. Um dos preceitos da Reabilitação Psicossocial é que os espaços de atendimento possibilitem a construção ou a reinvenção do cotidiano a partir de ações dialogadas e intersetoriais, com o envolvimento de profissionais, familiares e usuários propondo a desestigmatização e a educação da sociedade (AMORIM; OTANI, 2015; HIRDES; KANTORSKI, 2004).
A participação em associações sociorrepresentativas tem se mostrado um lócus de desenvolvimento de competências e habilidades de pessoas com transtorno mental. Ali se possibilita o compartilhamento de aprendizagens individuais e a construção de estruturas teóricas que respaldam e referenciam o grupo associado. Podemos ainda salientar que, segundo Rodrigues, Brognoli e Spricigo (2006, p. 242), essa vivência associativa possibilita uma interpretação da realidade que “organiza as relações do indivíduo com o mundo e orienta as suas condutas e comportamento no meio social”. Também de acordo com Nicolau (2015, p. 267) o trabalho em grupo “potencializa transformações nos fazeres cotidianos e nos modos como as pessoas se inter-relacionam”.
Notamos, em nossa prática profissional, como terapeutas ocupacionais tanto no Brasil como em Portugal, que as pessoas com transtornos mentais, nomeadamente as pessoas com esquizofrenia, apresentam limitações na execução de ações cotidianas, necessárias para o trabalho, o engajamento e a participação social, o que corrobora com os achados de Katz et al. (2007), Monteiro e Louzã (2007) e Ricci e Leal (2016). A necessidade de se compreenderem essas limitações se justifica no entendimento de que o homem e os contextos sociais estão relacionados, constituindo-se indivíduo e sociedade, dialogicamente, através da ação/atividade humana sobre a natureza (SIRGADO, 2000; VIGOTSKI, 2000; ZANELLA, 2004; TOASSA, 2016). Assim, entendemos que é provavelmente nesse diálogo que se significam e se organizam os afazeres nas famílias, nas comunidades, nos territórios, inclusive na (re)inserção, ou não, de indivíduos com limitações ocupacionais.
Estudos têm relatado que a disfunção executiva é um dos fatores atuantes nos déficits ocupacionais de pessoas com esquizofrenia, em casa e na comunidade, como também interfere na obtenção de resultados positivos nos processos de reinserção social (BARCH; CEASER, 2012; BAUM; KATZ, 2010; CLARK; WARMAN; LYSAKER, 2010; GREENWOOD et al., 2008; HADAS-LIDOR et al., 2001; KLUWE-SCHIAVON et al., 2013; LYSAKER; WHITNEY; DAVIS, 2006; SETER et al., 2011). As Funções Executivas (FE) são ações flexíveis e adaptativas do comportamento presentes na interação do indivíduo com o mundo, de maneira intencional. Esse conjunto de habilidades permite planejar, monitorar o comportamento, dirigir e sustentar a atenção numa tarefa (LAWS et al., 2008). Lezak et al. (2004) definem o funcionamento executivo por meio de quatro componentes básicos: a) volição, que envolve aptidões, como formular metas, intenção, motivação e autoconsciência; b) planejamento, que é a capacidade de formação conceitual, de abstração, de criar alternativas para a ação, de formulação dos passos e sequenciamento de uma atividade; c) ação intencional, que abrange as competências necessárias para transpor uma intenção ou plano de uma atividade produtiva em uma ação; d) desempenho efetivo, que inclui capacidades, como automonitoração, autodireção, autorregulação, relativas a intensidade, ritmo e outros aspectos qualitativos da ação.
O avanço das pesquisas em esquizofrenia trouxe abordagens de tratamentos eficazes na redução dos sintomas positivos da doença; porém, ainda se percebem limitações quando se trata da realização de tarefas complexas, como, por exemplo, as Atividades Instrumentais da Vida Diária (AIVD), que são atividades orientadas para interagir com o ambiente, apoiar a vida diária em casa e na comunidade, bem como conferir autonomia no desempenho dos papéis ocupacionais no contexto social em que os indivíduos estão inseridos (AMERICAN..., 2015; LIPSKAYA; JARUS; KOTLER, 2011). A realização das AIVD normalmente requer o manuseio de instrumentos ou ferramentas, exigindo habilidades, como planejamento, automonitoração e capacidade de resolução de problemas. Entretanto, os fatores que prejudicam o desempenho das pessoas com esquizofrenia nas AIVD ainda estão pouco compreendidos (LIPSKAYA; JARUS; KOTLER, 2011; NAKANISHI et al., 2007), sendo necessário explorar como essas disfunções ocupacionais estão relacionadas aos déficits nas funções executivas.
Assim, o objetivo deste estudo foi conhecer e analisar as potencialidades e dificuldades de pessoas com esquizofrenia frente às AIVD, especificamente os componentes relacionados à disfunção executiva mediante a percepção de pessoas com esquizofrenia, familiares e profissionais que participem de associações de apoio a pessoas e familiares com transtornos mentais.
Esse estudo foi realizado com a participação de pessoas envolvidas na Associação Arnaldo Gilberti (Brasil) e na Associação Nova Aurora (Portugal), parceiras da Universidade Federal do Paraná (Brasil) e da Universidade do Porto (Portugal), respectivamente, em diversas atividades/ações (estágio curricular, projetos de extensão e pesquisa) coordenadas pelos autores. A primeira apresenta como missão o favorecimento da autonomia de pessoas com transtornos mentais, apoiando-as em suas necessidades socioeconômicas, políticas e culturais, por meio de oficinas diversas, projeto de geração de renda, entre outras atividades oferecidas. Pretende assim contribuir para a diminuição do estigma e viabilizar o exercício da cidadania. A segunda apresenta como missão a promoção de qualidade de vida, funcionalidade e inserção social, com foco principal no combate ao estigma, por meio de programas de atividades que visam ao apoio socioeconômico e cultural com vistas a potencializar as oportunidades de participação e inserção social.
Para a obtenção de dados, os participantes foram alocados em três grupos: pessoas com esquizofrenia, profissionais e familiares de pessoas com esquizofrenia. O critério de inclusão comum a todos os grupos foi a participação em associação de apoio para pessoas com esquizofrenia.
Como critérios de inclusão específicos, foram elencados os seguintes: a) pessoas com esquizofrenia: possuir diagnóstico de esquizofrenia atestado por médico psiquiatra, ter mais de 18 anos idade e estar com medicação estável há pelo menos seis meses; b) familiares: ser parente em primeiro grau de pessoa com esquizofrenia e ter mais de 18 anos de idade; c) profissionais: ser profissional da saúde ou assistência social, com mínimo de dois anos de experiência na atenção a pessoas com esquizofrenia.
Todos os usuários das associações que cumpriam os critérios de inclusão foram convidados a integrar o estudo por meio de contato telefônico fornecido pelas secretarias das associações, ocasião em que eram expostos os objetivos e procedimentos dos grupos. Aqueles que se interessaram em participar foram chamados para integrar os grupos em data e hora previamente combinados.
Este estudo é parte do projeto de doutoramento da primeira autora, realizado na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, e está amparado pelo parecer n.º 673/2014 da Comissão de Ética da Escola Superior de Tecnologia da Saúde do Porto e pelo parecer n.º 638.793 do Comitê de Ética do Setor de Saúde da Universidade Federal do Paraná. Todos os integrantes selecionados participaram do estudo após concordância, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Informado.
Para conhecer o desempenho de pessoas com esquizofrenia nas AIVD, foram realizados Grupos Focais, um procedimento metodológico que oferece um modo de gerar dados a partir da interação qualitativa, explorando diferentes concepções sobre um tópico. Neste, os participantes expressam e clarificam seus pontos de vista sobre o tema proposto (MAZZA; MELO; CHIESA, 2009). O foco em aspectos subjetivos das narrativas dos participantes permitiu destacar a compreensão e a interpretação da realidade social vivenciada, além dos significados dados pelos atores às suas experiências vividas (GALHEIGO, 2003).
Nesse sentido, investigamos três questões norteadoras associadas ao desempenho ocupacional dessa população nas AIVD: a) “se” e “como” as realizam; b) dificuldades de realização e indicadores de disfunção executiva; c) estratégias utilizadas para transpor ou compensar as dificuldades.
Foram constituídos seis grupos focais (dois de cada grupo) em instituições que apoiam usuários com esquizofrenia, uma em Portugal e outra no Brasil. As duas associações comungam dos mesmos princípios de reinserção social e ocupacional, oferecendo aos usuários e familiares atividades voltadas para a reintegração de pessoas com experiência de doença mental nos contextos laboral e social.
As sessões foram gravadas em áudio e vídeo, no período de janeiro a julho de 2015, e cada grupo focal durou aproximadamente 90 minutos, sendo conduzido sob a orientação de um guia pré-estabelecido, comum a todos os grupos. O guia foi composto por cinco domínios facilitadores sobre o tema: 1) abertura (apresentação e objetivos); 2) introdução ao tópico (sensibilização, atividades cotidianas e pessoas com esquizofrenia); 3) transição ao tópico (contextualização das AIVD); 4) questões-chave (como, por quê, dificuldades), e 5) finalização.
Após a realização de cada grupo, os dados foram transcritos e analisados através da Análise Fenomenológica Interpretativa (AFI), que prevê as seguintes etapas: várias leituras da transcrição, identificação de temas iniciais, agrupamento e definição dos temas principais. Esse método de análise possibilita a compreensão da experiência subjetiva, bem como as cognições e emoções que fundamentam as opiniões sobre assuntos específicos, de maneira descritiva e profunda (BIGGERSTAFF; THOMPSON, 2008).
Participaram do estudo, 40 pessoas. As características sociodemográficas específicas de cada grupo - profissionais, pessoas com esquizofrenia e familiares ‒ estão descritas a seguir, nas Tabelas 1, 2 e 3, respectivamente.
Tabela 1 Dados sociodemográficos dos participantes ‒ profissionais.
Portugal (n=6) |
Brasil (n=6) |
|
---|---|---|
Profissão | ||
Terapeuta ocupacional | 3 | 2 |
Psicóloga | 3 | 2 |
Assistente social | 0 | 2 |
Idade [M (SD)] | 31,5 (3,9) | 52 (13,3) |
Grau Acadêmico | ||
Doutorado | 2 | 1 |
Mestrado | 2 | 2 |
Graduação | 2 | 3 |
Anos de Experiência [M(SD)] | 7,6 (4,4) | 17 (9,2) |
Tabela 2 Dados sociodemográficos dos participantes - pessoas com esquizofrenia.
Portugal | Brasil | |
---|---|---|
(n=9) | (n=7) | |
Gênero | ||
Masculino | 7 | 4 |
Feminino | 2 | 3 |
Idade (anos) [M (SD)] | 40,33 (6,0) | 44,8 (12,6) |
Nível educacional (anos) [M (SD)] | 12,3 (3,2) | 11,5 (2,8) |
Estado civil | ||
Solteiro | 9 | 5 |
Casado | 0 | 1 |
Divorciado | 0 | 1 |
Viúvo | 0 | 0 |
Tempo de doença (anos) [M (SD)] | 13,11 (9,4) | 20,4 (8,9) |
Mora com | ||
Família | 5 | 6 |
Sozinho | 3 | 1 |
Instituição | 1 | 0 |
Tabela 3 Dados sociodemográficos dos participantes - familiares de pessoas com esquizofrenia.
Portugal | Brasil | |
---|---|---|
(n=6) | (n=6) | |
Gênero | ||
Masculino | 3 | 3 |
Feminino | 3 | 3 |
Idade (anos) [M (SD)] | 59,6 (11,9) | 55,3 (19,2) |
Nível educacional (anos) [M (SD)] | 11,8 (1,8) | 12,1 (1,6) |
Estado civil | ||
Solteiro | 0 | 1 |
Casado | 4 | 5 |
Viúvo | 2 | 0 |
A Análise Fenomenológica Interpretativa (AFI) resultou em três temas principais, os quais, desmembrados em seus respectivos subtemas, estão apresentados na Tabela 4. Os subtemas dos temas principais “(Não) Fazer em sua essência” e “Limitações” foram relacionados às prováveis funções executivas afetadas dos participantes. Os subtemas do tema “Fatores ambientais” emerge como reação do ambiente frente às dificuldades apresentadas, podendo ser fator de apoio ou barreira.
Tabela 4 Temas e subtemas identificados na AFI.
Temas principais | Subtemas | Excertos dos relatos | Função Executiva relacionada (LEZAK et al., 2004) |
---|---|---|---|
O (não) fazer em sua essência | Falta de significado | [...] fica sempre aquela impressão que você não deve e não precisa fazer as coisas por si... tem que ficar fazendo as coisas pelos outros (UB3). [...] ela não liga se a casa estiver revirada (FB4). [...] mas se tu não disseres este tipo de coisas (a necessidade de organizar a cozinha e o quarto) não tem grandes cuidados… Parecem preguiçosos, mas não são, não conseguem mesmo fazer as coisas (FP3). |
Volição |
Insatisfação | [...]. Minha mãe dá uma ajuda em termos de arrumação... não tenho grandes aspirações de ter uma casa modelo, mas é tão organizada quanto eu preciso (UP7). [...]. Há uma distância grande entre o que está bem feito para eles e o que a família exige minimamente, então (os familiares) preferem que nem façam... (PP3). ” [...] na cabeça dela ela não tem dificuldade de fazer nada dentro de casa, mas ela faz tudo muito superficial... (FB1). |
Desempenho efetivo | |
Falta de autonomia | [...] sim, ele faz tudo isso, qualquer uma dessas atividades, mas precisa mandar... (FB2). [...] tem que sempre estar dando esse espaço, essa oportunidade dos meus familiares me falarem o que eu tenho que fazer, como fazer, como se eu fosse uma marionete, a gente fica meio chateado com isso (UB3). [...] Precisa dizer o que tem que fazer. (FP3). |
Ação intencional | |
Limitações | Diminuição da volição | [...] eu vivo sozinho... há vezes em que não há vontade de cuidar de mim... por exemplo ir às compras (UP2). [...] eu sei ir, qual ônibus pegar, mas se eu não programei um dia antes, não pensei em tudo com antecedência, eu não tenho ânimo, não vou (UB2). |
Volição |
Inflexibilidade de pensamento e ação | [...] A impressão que eu tenho é que o problema é a rigidez, falta de flexibilidade e capacidade de adaptação. (FB2). [...]. É como aquele bonequinho que você dá corda, ele vai andando em linha reta, bateu num obstáculo ele fica ali tentando infinitamente (FB1). [...] disse tantas vezes, já demonstrei que está errado, e continua a errar, errar, já vi que não é propositado... (FP3). |
Ação intencional | |
Dificuldade de planejar e organizar rotinas e tarefas | [...] aquilo é uma desorganização completa, mas ela sabe onde estão as coisas, vive naquela confusão... o maior problema é a desorganização, é desorganizada completa em casa. (FP4). [...] uma grande dificuldade para lidar com eles é a questão do planejamento, eles não conseguem organizar uma atividade (PP1). [...] eu me sinto culpada... não cuido bem da casa, cuido, mas não como eu queria, bem organizado (UB1). |
Desempenho efetivo | |
Fatores ambientais (facilitadores e barreiras) | Família | [...] meus pais têm que ficar falando pra eu fazer, senão fico prostrado (UB3). [...] eu sei fazer algumas coisas, mas a minha mãe prefere fazer (UP8). [...] muitos têm suas competências trabalhadas, mas as famílias não permitem que eles façam as tarefas em casa (PP3). |
|
Fóruns e Associações | [...] a associação foi a luz no fim do túnel (UP3). [...] preciso que me incentivem, senão não faço, aqui (Associação) pelo menos me sinto menos diferente (UB4). [...] ela melhorou muito depois que veio para cá (FP1). [...] uma coisa que entusiasma ele é vir na associação (FB3). |
||
Profissionais da Saúde e Assistência Social | [...] E, portanto, a área da funcionalidade das AIVD faz muito sentido porque eles têm muitos défices, são tarefas muito mais complexas, que eu penso que exigem treino mais diferenciado e que muitas vezes nós não conseguimos que eles tenham o resultado pretendido. (PP4.) [...] existem programas que são mais laboratoriais, e que depois não passam para a vida real... nós temos um treino de compras no computador... Nós fizemos um estudo preliminar e não encontramos assim resultados com diferenças muito significativas entre a avaliação final e inicial. (PP1). [...] Persistência e ficar muito perto... Há uns anos atrás, comecei a trabalhar com a terapia cognitiva, e é isso que funciona com eles. Trabalhar cada situação... (PB1) [...]. Mas leva muito tempo... em alguns não conseguimos mudar determinados comportamentos, mas já aprenderam a fazer café, foi valorizado... (PB2) |
As siglas utilizadas para denominar cada participante seguem o seguinte princípio: 1.º caractere: U= usuário, P= profissional, F= familiar; 2.º caractere: P= Portugal, B= Brasil; 3.º caractere: número do participante. Exemplo: FB3: Grupo Familiar, Brasil, participante 3.
Dois aspectos direcionaram e sistematizaram a discussão dos resultados. O primeiro refere-se à perspectiva subjetiva aplicada no estudo, com a análise da escuta dos participantes sob três pontos de vista ‒ usuários, familiares e profissionais -, que nos conduziu a adotar como padrões de referência de realização das AIVD aqueles inerentes à cultura na qual os participantes estão inseridos ‒ Brasil e Portugal ‒, descritos, principalmente, no discurso dos familiares e profissionais. Essa opção baseia-se na concepção de Vigotsky (REY, 1993), que declara ser cada pessoa o reflexo da totalidade das relações sociais, pois todas estão inseridas em formas de organização cotidiana que se concretizam nos valores, nas práticas sociais, nos modos de ser característicos de uma cultura. O segundo aspecto refere-se ao fato de não haver diferenças nos resultados apresentados pelos participantes portugueses e brasileiros, no que tange aos tipos de dificuldades na realização nas AIVD, bem como seus facilitadores e barreiras, o que nos permitiu optar por discutir o conjunto de resultados como um todo.
O conjunto dos relatos dos três grupos revela que o desempenho ocupacional de pessoas com esquizofrenia nas AIVD está prejudicado no que diz respeito ao fazer em si (conteúdo) e ao como fazer (forma). Os limites entre esses temas/subtemas são sutis, entrelaçam-se em suas causalidades e consequências, e sugerem, eventualmente, alguma sobreposição, como, por exemplo, entre a falta de significado e a volição. No entanto, revelaram-se tão explícitos nos discursos dos participantes que optamos por abordar cada um separadamente.
O primeiro tema evidencia dificuldades que caracterizam a funcionalidade de pessoas com esquizofrenia, através de elementos subjetivos sobre o sentido do fazer em si ou do não fazer. Ao aprofundarmos a análise do (não) fazer na sua essência, encontramos subtemas relacionados a falta de significado, insatisfação e falta de autonomia para a ação, os quais, por sua vez, estão também associados a outras áreas de desempenho ocupacional das pessoas com esquizofrenia, como trabalho e lazer (MOTIZUKI; MARIOTTI, 2014).
Nesse subtema, percebe-se uma aparente ausência de significação para as pessoas com esquizofrenia, ao realizarem as AIVD. Tomando, como referencial teórico, a perspectiva vigotskyana para a compreensão desse tópico, significação refere-se a “o que as coisas querem dizer”. O significado está relacionado à apropriação da atividade em si, envolvendo o “saber-fazer”, o “compreender” e a dinâmica da relação instrumentos-ações-objetivos (ZANELLA, 2004). Assim, a partir dessa concepção, entendemos que, para esses participantes, a realização das AIVD parece “pouco dizer” às pessoas com esquizofrenia, nomeadamente no que se refere à compreensão dos objetivos das tarefas requeridas, o que, por norma, antecede à ação, isto é, “eu ajo consoante ao que desejo realizar”.
Na análise desses relatos, percebemos que a dinâmica do fazer das pessoas com esquizofrenia e seus respectivos objetivos não condizem com os padrões culturais esperados nos seus países. Destacamos que a não significação do fazer, aparentemente não está relacionada à questão do não saber fazer, mas ao não significado do “por quê” realizar as AIVD cotidianamente. O não fazer atividades que são esperadas, e, sobretudo, importantes no cotidiano das pessoas, pode acarretar reações e consequências negativas, como, por exemplo, reiteradas reclamações por parte de seus familiares. O mesmo comportamento foi observado nos participantes do Brasil e de Portugal.
O subtema insatisfação diz respeito aos níveis de satisfação e aceitação do resultado das tarefas realizadas por pessoas com esquizofrenia, por parte dos familiares e profissionais. Balizamos essa discussão a partir do referencial de parâmetros de satisfação descritos pela teoria da discrepância2, cujos níveis são calculados a partir da diferença do resultado esperado e da percepção da experiência vivenciada (ESPERIDIÃO; TRAD, 2006).
A partir dessa compreensão, os resultados obtidos revelam a insatisfação dos familiares e profissionais participantes, visto que, quando as atividades são realizadas pelas pessoas com esquizofrenia, não estão no padrão por eles esperado/estabelecido/desejado. No entanto, contraditoriamente, para a maioria dos participantes com esquizofrenia, as tarefas são realizadas a contento, demonstrando uma dificuldade de automonitoramento na execução dessas atividades. Nesse conjunto de participantes, podemos deduzir que a funcionalidade e a percepção de desempenho de pessoas com esquizofrenia nas AIVD estão abaixo do esperado e não correspondem às expectativas dos seus familiares e profissionais. Alterações no desempenho podem também gerar sobrecarga para os cuidadores, que, muitas vezes, precisam refazer as tarefas, conforme relatado pelos participantes familiares. Inferimos que o sentido e o significado da realização das AIVD para os grupos de familiares e profissionais têm valor social relativo a autonomia e independência, e apresentam-se semelhantes nos dois grupos. No entanto, para o grupo de usuários, sugerimos que o sentido e o significado parecem estar relacionados a valores subjetivos, vinculados à baixa percepção dos valores sociais.
Contudo, identificamos ainda outra perspectiva de insatisfação, observada no discurso das pessoas com esquizofrenia, ao referenciarem a cobrança que lhes é imposta sobre a qualidade na realização das tarefas. Sob seu ponto de vista, esperam que seu comportamento/desempenho seja aceito, quando, ao contrário, estes são frequentemente percebidos como insatisfatórios. Há aqui um espaço de divergência que pode estar relacionado a limitações na capacidade de automonitorar e autorregular os elementos qualitativos na realização da atividade, bem como à baixa tolerância e ao limiar de frustração, que está relacionado com o componente desempenho efetivo das FE. A disfunção executiva pode se apresentar em dificuldades práticas, como também em respostas vinculadas ao comportamento, como, por exemplo, labilidade motivacional, inibição de resposta ou, ainda, o lidar com tarefas que variam em grau de relevância e prioridade (SABOYA et al., 2007).
A autonomia está relacionada com a capacidade de autorregulação diante de uma situação. Essa qualidade convoca a responsabilidade de agir diante de uma decisão tomada, ou seja, exige a ponderação entre diversas alternativas, a possibilidade de escolher a adequada e a colocar em ação (ZATTI, 2007). A partir desse referencial, os resultados, nesse grupo de participantes, evidenciam apatia frente às atitudes requeridas no dia a dia. Parece notório que, apesar de aparentemente haver a capacidade de realização, de serem independentes para a ação, as pessoas com esquizofrenia precisam ser orientadas ou mesmo instadas a realizarem as atividades cotidianas, o que revela a falta de autonomia, ou seja, a dificuldade de tomar a decisão e iniciar a atividade. O comportamento desses indivíduos, no que diz respeito às AIVD, parece demonstrar a necessidade de serem constantemente orientados, refletindo assim a falta de iniciativa frente às demandas do cotidiano.
A efetivação de um objetivo que gera uma ação ‒ ou a iniciação, a manutenção, a modificação ou ainda a interrupção de uma atividade ‒ está correlacionada à autonomia, à expressão funcional do elemento das FE, isto é, à ação intencional. Assim, a falta de autonomia descrita no discurso desses participantes pode ser explicada por uma disfunção executiva, nomeadamente no subconjunto da ação intencional (LEZAK et al., 2004; POWELL; VOELLER, 2004).
O segundo tema central traz a nominação objetiva de três dificuldades predominantes na realização das AIVD: diminuição da volição, inflexibilidade de pensamento e ação, e dificuldade de planejar e organizar rotinas e tarefas, o que, conforme o referencial de FE, proposto por Lezak et al. (2004), permite-nos associar as dificuldades apresentadas aos elementos da disfunção executiva.
Volição ou vontade refere-se ao processo pelo qual as pessoas estão motivadas e escolhem o que fazer. O conceito de volição admite que todos os seres humanos têm o desejo de se envolver em ocupações e que este desejo é moldado continuamente através das experiências vividas, ou seja, em como as tarefas são realizadas (FORSYTH; KIELHOFNER, 2011). A vontade compreende pensamentos e sentimentos que ocorrem num ciclo: pensar nas possibilidades do que fazer, escolher o que fazer, vivenciar o fazer e, posteriormente, interpretar a experiência. Diferente da motivação, que tem a direção do ambiente para o sujeito (e.g. recompensa), a volição é intrínseca ‒ do sujeito para o ambiente (e.g. preferências, identidade) e, por isso, pode minimizar obstáculos encontrados na realização, bem como facilitar o início das ações e potencializar a atenção durante a execução. Considerando-se a existência de um limiar de intenção para a ação, quando o desejo está abaixo desse limiar, podemos determinar que é a motivação que impele o fazer. Outrossim, quando o desejo cruza um limiar de intenção de nível apenas motivacional, alcança-se a volição (SHAH; GARDNER, 2008).
A avolia, que é descrita como um dos sintomas negativos da esquizofrenia (FERREIRA JUNIOR et al., 2010; MONTEIRO; LOUZÃ, 2007; NAKANISHI et al., 2007), além de ser referida como um dos elementos da disfunção executiva (NEILL; ROSSELL, 2013; ORELLANA; SLACHEVSKY, 2013), foi retratada nos relatos dos participantes. A procrastinação também pode ser uma manifestação da avolia e pode estar relacionada a um menor grau de atenção e a recompensa de longo prazo. Esse resultado pode confirmar o que propusemos anteriormente sobre dificuldades no desempenho ocupacional nas AIVD não estarem vinculadas à falta de competência em si, mas ser um aspecto associado à disfunção executiva (CAHN-WEINER; BOYLE; MALLOY, 2002; ORELLANA; SLACHEVSKY, 2013).
Uma das características relatadas sobre a atitude de pessoas com esquizofrenia é a perseveração comportamental na realização de tarefas e no enfrentamento de situações do cotidiano (FERREIRA JUNIOR et al., 2010; MONTEIRO; LOUZÃ, 2007; ORELLANA; SLACHEVSKY, 2013). Neste estudo, os relatos que concretizam esse conceito estão presentes, majoritariamente, no discurso de familiares e profissionais. Há uma intuição, percebida nesses dois grupos, de que as pessoas com esquizofrenia, apesar de potencialmente habilitadas para o desempenho das tarefas cotidianas, estão limitadas na capacidade de superar eventuais exigências fora do previsto. Isto também é descrito em questões como horário, local ou materiais, demonstrando uma diminuição de flexibilidade mental.
A inflexibilidade ou perseveração de pensamento e, consequentemente, nas ações, portanto, assim como a avolia, está relacionada à disfunção executiva, conforme já descrita, e também a limitações no desempenho social e ocupacional dessa população.
O planejamento é uma etapa fundamental para alcançar sucesso na realização de um objetivo. Definido como a capacidade de pensar no futuro, consiste em escolher as estratégias mais eficientes, determinar os passos e organizá-los em sequência, a fim de concluir uma tarefa com êxito (SETER et al., 2011). Uma condição intrínseca, tanto para o planejamento quanto para a execução das atividades, é a organização. Esta se relaciona com a forma como se dispõe das informações ou de um sistema para atingir resultados pretendidos. A organização e o planejamento são elementos das FE, e estão diretamente relacionados ao desempenho ocupacional esperado nas tarefas do dia a dia (LAWS; PATEL; TYSON, 2008).
A dificuldade no planejamento de atividades pode ser um dos fatores que expliquem a supervisão sistemática sobre os usuários, encontrada nos relatos dos familiares e profissionais investigados. Ainda foi observado que estes realizam as tarefas antecipadamente, para evitar transtornos e frustrações para ambas as partes.
No intuito de sistematizar os achados nessa discussão até aqui, apresentamos, na Figura 1, a relação entre as dificuldades listadas e a presença de disfunção executiva.
Figura 1 Relação entre os componentes das funções executivas e as dificuldades relatadas neste estudo.
Assim, os resultados apresentados corroboram com diversos estudos (HADAS-LIDOR et al., 2001; KLUWE-SCHIAVON et al., 2013; LAWS; PATEL; TYSON, 2008; LIPSKAYA; JARUS; KOTLER, 2011; SETER et al., 2011), no que diz respeito à relação entre FE e funcionalidade, ou seja, que problemas no funcionamento executivo incidem diretamente no padrão de execução de atividades cotidianas, como também estão associados a qualidade de vida e autonomia de pessoas com esquizofrenia (EVANS et al., 2004).
O desafio de vivenciar e enfrentar as dificuldades apresentadas no dia a dia de pessoas com esquizofrenia foi o terceiro tema principal emergente neste estudo, que demonstra as estratégias adotadas pelos usuários, familiares e profissionais no enfrentamento dos obstáculos encontrados na realização das AIVD. Fundamentalmente, encontramos três recursos utilizados, descritos a seguir.
A substituição do modelo hospitalocênctrico pelo da Reabilitação Psicossocial coloca a família como rede de apoio central na reorganização das redes sociais dos indivíduos com esquizofrenia, outorgando-lhe uma incumbência que demanda preparação e dedicação (CASAGRANDE; MARIOTTI; CARDOSO, 2015; SANTOS; CAPOCCI, 2003). Assim, esse subtema demonstra o ajustamento do conjunto dos participantes dos dois países aos novos modelos de reabilitação preconizados pelas políticas públicas de saúde mental do Brasil e de Portugal, quanto à proposição da família como parceira na superação de dificuldades. Ressalta-se que, nos dois países, comungam-se os preceitos da Reabilitação Psicossocial como norteadores dos cuidados em saúde mental, nomeadamente a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no Brasil, e a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados - Saúde Mental (RNCCI-CCISM), em Portugal (BRASIL, 2011; PORTUGAL, 2011).
Notadamente, são os familiares que continuamente estimulam os usuários a serem ativos e executarem as atividades do dia a dia. Contudo, contraditoriamente, por vezes, também são agentes de obstrução do fazer, quando não facilitam ou não orientam o realizar das tarefas. Como parte importante do processo de reabilitação, evidenciou-se, neste estudo, que as famílias de pessoas com esquizofrenia devem ser integradas nos programas de tratamento, no sentido de orientá-las acerca de estratégias que potencializem as capacidades, bem como proporcionar ambientes profícuos para otimizar e ressignificar o fazer dos seus membros afetados pela patologia.
O segundo subtema relativo ao tema Fatores ambientais (facilitadores e barreiras) também está francamente associado à reforma psiquiátrica e aos novos equipamentos que desta emergiram. A modalidade de convivência em associações foi apontada como um dispositivo eficiente no que diz respeito à melhora de diversos aspectos da vida das pessoas com esquizofrenia, nomeadamente na motivação para o fazer cotidiano. As redes de apoio social contribuem no enfrentamento dos problemas vivenciados, proporcionando suporte e proteção ao indivíduo (BRUSAMARELLO et al., 2011; FERRO et al., 2012).
Tanto para os usuários, quanto para as suas famílias, esse espaço é relatado como um local de alívio do estigma e fortalecimento das potencialidades. Esses dispositivos sociais permitem uma vivência igualitária, favorecendo o desenvolvimento ou o resgate de capacidades e habilidades através de diversas formas do fazer, firmando-se como um recurso eficaz na reabilitação psicossocial das pessoas com esquizofrenia.
Apesar das diferenças de técnicas utilizadas pelas profissionais participantes dos dois países estudados, o efeito produzido parece ser equivalente. Em Portugal, as profissionais relataram procedimentos específicos para o treino das AIVD em contexto laboratorial, por meio de simulação de atividades nas dependências da Associação, e em contexto real, quando as atividades eram treinadas/realizadas nas visitas domiciliares ou em supermercado, shopping, etc., bem como técnicas de abordagens para a disfunção cognitiva através de programas de reabilitação cognitiva computacionais.
De outra forma, as profissionais brasileiras relataram que o tratamento da disfunção ocupacional é realizado através de terapia cognitiva, atendimento familiar e treino de competências em contexto laboratorial. Não foram relatadas abordagens específicas para os déficits cognitivos ou para a melhora do desempenho ocupacional das AIVD.
Percebemos que, não obstante os diferentes tratamentos dados às dificuldades de realização das AIVD por pessoas com esquizofrenia, os dois grupos de profissionais relataram observar melhora do desempenho ocupacional dos usuários nessas atividades específicas (DOMINGO et al., 2015; SAVLA et al., 2012).
Os resultados deste estudo enfatizaram a insuficiência dos participantes com esquizofrenia no desempenho ocupacional nas AIVD. Os relatos dos participantes sugerem limitações no funcionamento das FE quando trazem ilustrações concretas de prejuízo em seus elementos, as quais impactam negativamente na realização das atividades cotidianas.
Todavia, neste estudo, não foram encontradas ações que enfoquem diretamente a reabilitação das FE. Por outro lado, apesar de transcender nossos objetivos, percebemos que os Fatores Ambientais apontados para enfrentar as dificuldades evidenciadas são consoantes aos preceitos da Reabilitação Psicossocial, bem como revelam que essa população está inserida e usufruindo dos dispositivos disponíveis. Apontamos, contudo, que o número de participantes deste estudo é fator de limitação para a generalização dos resultados.
A reflexão sobre as determinações da vida cotidiana contribui para os movimentos de sua ressignificação. Para as pessoas com esquizofrenia, isso se revela na dinâmica de autodeterminação frente às mudanças advindas em suas vidas. Assim, para além da nomeação e compreensão obtidas sobre os fatores multidimensionais envolvidos nessa investigação, buscamos também contribuir com elementos norteadores para a construção de programas de tratamento e reabilitação, não só no que concerne a habilidades e competências, mas também aos contextos mais favoráveis para sua real efetivação.
Por fim, a maior contribuição deste estudo foi identificar, por meio de relatos dos participantes, as dificuldades relacionadas à disfunção executiva e seu impacto no cotidiano de pessoas com esquizofrenia. Isso evidencia a relevância de programas de reabilitação específicos para essa população, visando a melhorias cognitivas e funcionais, indicando ser esta uma área a ter seu conhecimento aprofundado por novos estudos, em novos contextos, e ser, ainda, uma área profícua para a atuação do terapeuta ocupacional.