versão impressa ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.30 no.3 Rio de Janeiro mar. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00117813
This article reports the results of a nutritional survey among Guarani indigenous children < 5 years of age in the States of Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil. Prevalence rates for malnutrition according to various anthropometric indices were 50.4% (low stature-for-age), 7.9% (low weight-for-age), and 0.8% (low weight-for-stature). Prevalence of stunting in Guarani children was 96% higher than for indigenous children in Brazil as a whole (25.7%) and 7.2 times that in children from the general population (7%). Prevalence of anemia was 65.2%, 3.1 times higher than in non-indigenous children (20.9%). The study highlights the high prevalence of chronic undernutrition and anemia in Guarani children and calls attention to serious inequalities in health and nutrition that affect indigenous children in Brazil.
Key words: Indigenous Population; Child Health; Nutrition Surveys; Nutritional Status
Este estudio presenta los resultados de una encuesta nutricional realizada entre niños indígenas Guaraní < 5 años de edad en los estados de Río de Janeiro y São Paulo, Brasil. La frecuencia de desnutrición, según varios índices antropométricos fue: 50,4% (baja talla-para-edad), 7,9% (bajo peso-para-edad) y 0,8% (bajo peso-para-talla). El retraso del crecimiento verificado en niños Guaraní fue un 96% mayor que lo que se observa entre los niños indígenas en Brasil (25,7%) y 7,2 veces a la de niños en la población general (7%). La prevalencia de anemia fue de un 65,2%; 3,1 veces la prevalencia correspondiente en niños no indígenas (20,9%). Este estudio destaca la alta prevalencia de desnutrición crónica y anemia en los niños Guaraní y pone en evidencia las graves desigualdades en salud y nutrición que afectan a los niños indígenas en el país.
Palabras-clave: Población Indígena; Salud del Niño; Encuestas Nutricionales; Estado Nutricional
O estado nutricional de crianças é determinado por fatores biológicos e socioeconômicos, sendo a desnutrição infantil considerada um indicador de desigualdade social 1. Recentemente, o I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas no Brasil2,3,4 reafirmou em escala nacional a importância da desnutrição no perfil de saúde da criança indígena no país, o que já vinha sendo sinalizado por diversos levantamentos que enfocaram etnias específicas 5,6,7. Tanto no Inquérito Nacional quanto nos estudos de comunidade são observadas elevadas prevalências de desnutrição crônica e anemia, comumente superando as magnitudes descritas para a população infantil brasileira geral.
Em relação ao povo indígena Guarani que vive no Brasil, estudos recentes têm evidenciado precárias condições de saúde. São elevadas as taxas de hospitalização e óbito de crianças por doenças respiratórias agudas (DRA) 8,9,10, assim como as prevalências de parasitoses intestinais e poliparasitismo 11. No Rio de Janeiro, foi reportado um aglomerado de casos de hanseníase, que incluiu caso multibacilar e em jovem < 15 anos 12. O perfil de saúde Guarani delineado pelos trabalhos existentes sugere fortemente que a população vive em condições de precariedade e tem limitações no acesso e na qualidade da atenção à saúde.
Tendo em vista a sociodiversidade dos povos indígenas no país e a disponibilidade, pela primeira vez, de dados sobre o estado nutricional indígena em âmbito nacional e regional, o objetivo deste artigo é descrever e comparar os resultados de um inquérito nutricional de crianças Guarani < 5 anos de idade, residentes em aldeias nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, conduzido por meio de metodologia padronizada, aos resultados do Inquérito Nacional 3.
Foi realizado um inquérito nutricional e de anemia em crianças indígenas Guarani < 5 anos, residentes em 5 aldeias no Estado do Rio de Janeiro (Sapukai, Parati-Mirim, Araponga, Sítio Rio Pequeno e Mamanguá) e 1 aldeia no litoral norte do Estado de São Paulo (Boa Vista).
Essas comunidades Guarani vivem em aldeias litorâneas próximas a cidades e mantêm contato intenso com a população do entorno 13. Em geral, consomem alimentos industrializados, oriundos de compras. Há também os recursos provenientes de partilha entre famílias, doações e, raramente, caça ou coleta 14.
O levantamento dos dados ocorreu de novembro de 2008 a março de 2009. O censo das aldeias foi obtido no Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) local, e atualizado por consulta ao cadastro de famílias dos agentes indígenas de saúde e aos espelhos dos cartões vacinais em posse das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena.
Os pesquisadores foram treinados e padronizados em antropometria em oficina, tendo sido utilizados instrumentos e técnicas recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 15.
Foram calculados os índices antropométricos estatura para idade (E/I), peso para idade (P/I) e peso para estatura (P/E), baseando-se na população referência da OMS 15. Considerou-se desnutrição o escore z < -2 desvios-padrão (DP) para um dos três índices antropométricos, assim como risco nutricional o escore z ≥ -2DP e < -1DP. O sobrepeso foi definido pelo escore z ≥ +2DP para o índice P/E.
A hemoglobina (Hb) foi dosada em sangue da extremidade digital em crianças de 6 a 59 meses, com hemoglobinômetro portátil HemoCue (Ångelholm, Suécia), modelo Hb201+. Considerou-se anemia Hb < 11g/dL e anemia moderada Hb entre 7 e 9,9g/dL 16. As análises foram conduzidas no programa Stata, versão 9.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa/Ensp/Fiocruz (protocolo no 130/05), pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (protocolo no 154/2006), pela Fundação Nacional do Índio (no 23/CGEP/07), pelas lideranças indígenas e pelo responsável por cada criança.
A população alvo totalizava 143 crianças, mas 15 (10,5%) não foram avaliadas (13 por ausência e 2 por recusa). A antropometria foi realizada em 128 (89,5%) crianças e a dosagem de hemoglobina em 115 (89,8%).
As prevalências de desnutrição pelos índices E/I, P/I e P/E foram, respectivamente, 50,4% (M: 52,4%; F: 48,4%), 7,9% (M: 10,9%; F: 4,8%) e 0,8% (M: 0,0%; F: 1,6%). A prevalência de sobrepeso foi de 4,0% (M: 7,8%; F: 0,0%). As prevalências de distúrbios nutricionais segundo faixas etárias são apresentadas na Tabela 1.
Tabela 1 - Prevalências globais e por faixa etária de desnutrição, risco nutricional e sobrepeso segundo os índices estatura/idade (E/I), peso para idade (P/I) e peso para estatura (P/E).
Faixa etária (meses) | Guarani (2008/2009) | Inquérito indígena (2008/2009) 2 | PNDS 2006 17 | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | Déficit | Risco | Adequado | Excesso | Déficit | Excesso | Déficit | Excesso | ||
Prevalência escore z E/I | ||||||||||
0-11 | 20 | 45,0 | 25,0 | 30,0 | - | - | - | 4,8 | - | |
0-5 | 11 | 45,5 | 18,2 | 36,4 | - | 9,2 | - | - | - | |
6-11 | 9 | 44,4 | 33,3 | 22,2 | - | 14,9 | - | - | - | |
12-23 | 25 | 60,0 | 20,0 | 20,0 | - | 31,5 | - | 12,3 | - | |
24-35 | 26 | 53,8 | 42,3 | 3,8 | - | 32,7 | - | 7,1 | - | |
36-47 | 27 | 55,6 | 37,0 | 7,4 | - | 28,3 | - | 6,3 | - | |
48-59 | 27 | 37,0 | 55,6 | 7,4 | - | 25,2 | - | 4,7 | - | |
Total | 125 | 50,4 | 36,8 | 12,8 | - | 25,7 | - | 7,0 | - | |
Prevalência escore z P/I | ||||||||||
0-11 | 20 | 10,0 | 20,0 | 70,0 | - | - | - | 2,9 | - | |
0-5 | 11 | 9,1 | 18,2 | 72,7 | - | 4,0 | - | - | - | |
6-11 | 9 | 11,1 | 22,2 | 66,7 | - | 7,3 | - | - | - | |
12-23 | 25 | 16,0 | 48,0 | 36,0 | - | 7,5 | - | 2,2 | - | |
24-35 | 27 | 7,4 | 33,3 | 59,3 | - | 6,1 | - | 1,2 | - | |
36-47 | 28 | 3,6 | 28,6 | 67,9 | - | 5,1 | - | 1,5 | - | |
48-59 | 27 | 3,7 | 7,4 | 88,9 | - | 5,1 | - | 1,4 | - | |
Total | 127 | 7,9 | 27,6 | 64,6 | - | 5,9 | - | 1,9 | - | |
Prevalência escore z P/E | ||||||||||
0-11 | 20 | 5,0 | - | 85,0 | 10,0 | - | - | 2,9 | 6,9 | |
0-5 | 11 | 9,1 | - | 72,7 | 18,2 | 2,7 | - | - | - | |
6-11 | 9 | - | - | 100,0 | - | 2,6 | - | - | - | |
12-23 | 25 | - | 20,0 | 80,0 | - | 2,0 | - | 2,5 | 6,1 | |
24-35 | 26 | - | - | 100,0 | - | 0,4 | - | 0,1 | 7,1 | |
36-47 | 27 | - | - | 96,3 | 3,7 | 0,7 | - | 0,7 | 9,7 | |
48-59 | 27 | - | - | 92,6 | 7,4 | 0,6 | - | 0,9 | 6,4 | |
Total | 126 | 0,8 | 4,0 | 91,3 | 4,0 | 1,3 | - | 1,4 | 7,3 |
A prevalência de anemia foi de 65,2%, e 38.3% apresentaram anemia moderada. As prevalências anemia segundo sexo e faixas etárias são apresentadas na Tabela 2.
Tabela 2 - Prevalência de anemia global, por sexo e faixa etária, em crianças indígenas Guarani.
Faixa etária (meses) | Masculino | Feminino | Global | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |
6-11 | 4 | 100,0 | 5 | 80,0 | 9 | 88,9 |
12-23 | 9 | 66,7 | 15 | 80,0 | 24 | 75,0 |
24-35 | 12 | 83,3 | 15 | 53,3 | 27 | 66,7 |
36-47 | 16 | 62,5 | 11 | 36,4 | 27 | 51,9 |
48-59 | 19 | 68,4 | 8 | 37,5 | 27 | 59,3 |
Total | 60 | 71,7 | 54 | 57,4 | 115 | 65,2 |
As aldeias investigadas estão localizadas em estados do Sudeste, cujos Índices de Desenvolvimento Humano estão entre os maiores do país. Apesar disso, os resultados deste estudo evidenciam expressivas disparidades nos indicadores nutricionais e de anemia entre os indígenas e os não indígenas.
O déficit de estatura Guarani atinge mais da metade das crianças investigadas, sendo 7,2 e 9,0 vezes as prevalências correspondentes em crianças não indígenas no Brasil (7%) e no Sudeste (5,6%), respectivamente 17. O déficit estatural Guarani supera até mesmo o observado nas crianças não indígenas do Norte (14,7%), que registra a maior prevalência de desnutrição por este indicador no país 17.
A prevalência de déficit de P/I superou em mais de 4 vezes a prevalência nas crianças não indígenas no Brasil (1,9%), sendo 5,6 vezes a prevalência no Sudeste. Por outro lado, a prevalência de baixo P/E Guarani (0,8%) foi menor do que a observada nas crianças brasileiras não indígenas (1,4%), assim como o excesso de peso (Guarani: 4%; não indígena: 7,3%) 17.
A prevalência de anemia Guarani (65,2%) é considerada grave, superando 3,1 vezes a prevalência em crianças não indígenas no Brasil (20,9%) e em 6,3 a da Região Norte, que registra a maior prevalência nacional 17.
As iniquidades no perfil nutricional Guarani permanecem, mesmo quando são comparadas ao contexto indígena no Brasil 3,4. O déficit de estatura supera em 2 vezes a prevalência média correspondente nos indígenas no país (25,7%), sendo de 1,2 (Norte: 40,8%) a 3,6 (Nordeste: 13,9%) vezes as prevalências indígenas nas diferentes regiões 3. O déficit de P/I Guarani só foi superado pelo observado nos indígenas do Norte (11,4%), tendo sido 2 vezes a prevalência verificada nos indígenas do Sul/Sudeste, ao passo que a prevalência de baixo P/E Guarani foi inferior às prevalências médias nos indígenas de todas as regiões.
A prevalência de anemia Guarani também supera os valores médios para o conjunto das crianças indígenas no Brasil (51,2%) e para as residentes no Sul/Sudeste (48%), sendo próxima à reportada para as crianças indígenas do Norte (66,4%) 4.
A desnutrição tem sido associada ao risco de morte por algumas doenças infecciosas, sendo as principais delas as DRA e as diarreias 18. Esses agravos estão configurados como as principais causas de hospitalização e óbito de crianças Guarani < 5 anos no Sul e Sudeste do Brasil 8,9,10, sugerindo que esta população encontra-se em um círculo infecção-desnutrição.
As prevalências de desnutrição e anemia verificadas neste estudo são expressivas em comparação à situação indígena e não indígena no país. Os resultados reforçam a necessidade de investimentos na atenção materno-infantil entre os Guarani. Medidas de saneamento básico e estratégias de segurança alimentar e subsistência devem ser implementadas, com ampla discussão com as comunidades.