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Estágios iniciais da doença renal crônica produzem efeitos discretos sobre o desempenho cognitivo. Resultados da linha de base de uma coorte de 15.505 adultos brasileiros

Estágios iniciais da doença renal crônica produzem efeitos discretos sobre o desempenho cognitivo. Resultados da linha de base de uma coorte de 15.505 adultos brasileiros

Autores:

Valéria Maria de Azeredo Passos,
Roberto Marini Ladeira,
Cláudia Caciquinho Vieira de Souza,
Itamar de Souza Santos,
Sandhi Maria Barreto

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 26-Abr-2018

http://dx.doi.org/10.1590/1678-4685-jbn-3889

Introdução

A prevalência de demência e doença renal crônica (DRC) deve aumentar, e sua sobreposição deve se tornar mais comum devido ao envelhecimento da população. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, o envelhecimento populacional é afetado por dois fatores, a diminuição da mortalidade e o aumento da expectativa de vida, juntamente com o aumento da carga por doenças crônicas.1 O crescente número de pacientes com diabetes e doenças cardiovasculares, além da sobrevida prolongada de indivíduos com doença arterial coronariana e acidente vascular cerebral, são responsáveis por aumentar a prevalência de comprometimento cognitivo e DRC. Além disso, os pacientes com DRC agora podem alcançar uma longevidade substancial devido às melhorias atuais na conduta clínica.2

A DRC tem sido associada a um pior desempenho cognitivo.3-5 A prevalência de comprometimento cognitivo entre pacientes com doença renal em fase terminal varia de 16 a 38%, dependendo da amostra e da definição de comprometimento cognitivo.5 Entre as mulheres na menopausa, uma diminuição de 10 mL/min/1,73 m2 na taxa de filtração glomerular (TFG) resultou em um aumento de 15 a 25% no risco de comprometimento cognitivo.6

Como os fatores de risco cardiovascular são mais frequentes em pacientes com DRC do que na população em geral, a doença vascular provavelmente explica uma parcela considerável da associação entre danos nos rins e mau desempenho cognitivo.7-9 No entanto, um efeito prejudicial da insuficiência renal na função cognitiva pode ocorrer independentemente da doença cardiovascular e seus fatores de risco.10-12

Estudos longitudinais relataram pior função cognitiva desde os estágios iniciais da nefropatia, enquanto o agravamento da condição com aumento da gravidade da DRC sugere uma relação causal. Uma meta-análise de estudos transversais e longitudinais que incluíam 54.779 participantes, sugeriu que a DRC é um fator de risco significativo e independente para o desenvolvimento de declínio cognitivo. As complicações da DRC, como a retenção de água, o pior controle da pressão arterial, o aumento das citocinas inflamatórias, a anemia e a neurotoxicidade direta ou indiretamente relacionada ao acúmulo progressivo de toxinas urêmicas, podem ser possíveis mediadores desse efeito.13

A fim de estabelecer medidas preventivas para o desempenho cognitivo e funcional, é crucial compreender o papel do dano renal como um fator de risco independente para a deficiência cognitiva. Na medida em que os indivíduos mais idosos apresentam fatores de risco comuns tanto para doença renal quanto para deficiência cognitiva, muitos fatores de confusão devem ser considerados no desencadeamento da associação entre essas duas condições entre os idosos. Ao analisar adultos mais jovens, buscamos esclarecer a associação independente entre DRC e desempenho cognitivo.

Este estudo teve como objetivo investigar a associação entre deficiência da função renal e desempenho cognitivo, usando dados da linha de base do Estudo Longitudinal Brasileiro de Saúde do Adulto, uma coorte composta por adultos predominantemente jovens e de meia-idade.14 Nós hipotetizamos que uma pior função renal está associada ao desempenho cognitivo reduzido, independentemente de fatores sociais, demográficos ou clínicos.

Métodos

Esta análise transversal utilizou dados da linha de base do ELSA-Brasil, uma coorte projetada para identificar fatores de risco e avaliar a história natural do diabetes e de doenças cardiovasculares. O ELSA-Brasil envolve 15.105 funcionários públicos de seis centros brasileiros (universidades ou instituições de pesquisa), com idades entre 35-74 anos na linha de base (2008-2010), principalmente jovens adultos (78% menores de 60 anos) e 54% de mulheres.14

O protocolo do estudo foi aprovado em todos os seis centros pelos seus comitês de ética em pesquisa. Depois de assinar um termo de consentimento informado, todos os participantes foram entrevistados e examinados. Os questionários incluíram uma ampla gama de itens sociais e biológicos, bem como uma seção de morbidade auto-referida. Os participantes trouxeram suas prescrições e embalagens de quaisquer medicamentos que haviam usado nas duas semanas anteriores.14

Uma amostra de urina de 12 horas e uma amostra de sangue em jejum de 12 horas foram coletadas para testes laboratoriais. As estratégias de coleta, processamento, transporte e controle de qualidade dos exames de sangue e urina no ELSA-Brasil estão detalhadas em outra publicação.15

A função cognitiva foi determinada por testes padronizados que avaliam a memória, a linguagem e as funções executivas visuais e espaciais. O aprendizado foi avaliado usando o Teste de Memória de Palavras (TM), que envolve lembrar dez palavras não relacionadas apresentadas três vezes, cada vez por 2 segundos e em uma ordem diferente. A retenção de memória foi avaliada 5 minutos depois por recordação livre. Os testes de fluência verbal (TFV) consistiram em pedir aos participantes que dissessem, em um minuto, tantos nomes de animais quanto possível (teste semântico) ou palavras iniciadas pela letra F (teste fonêmico). Para o grupo que fez o Teste de Trilhas, versão B, o participante foi instruído a desenhar linhas que conectassem letras e números em ordem alternativa, e em um padrão ascendente (1, A, 2, B, 3, C, etc.). O participante deveria desenhar o mais rápido possível, sem tirar a ponta do lápis do papel. O resultado final representa o tempo total para completar a tarefa, incluindo o tempo usado para fazer as correções.16

Excluímos 330 participantes que estavam usando medicamentos que potencialmente interferem com a cognição, como anticonvulsivantes, antipsicóticos, antiparkinsonianos e anti-colinesterásicos; 181 que relataram um acidente vascular cerebral anterior e 465 indivíduos sem valores de razão de albumina/creatinina. O TM foi feito por 14.454 (99,0%) participantes, já que 140 participantes, incluindo 21 analfabetos, não conseguiram ler. No que diz respeito ao TFV, 14.568 (99,8%) e 14.539 (99,6%) participantes realizaram as versões categóricas e fonêmicas, respectivamente. O Teste de Trilhas foi realizado por 13.658 participantes (90,4%); 13.160 (90,2%) conseguiram completar a tarefa em até cinco minutos.17

A doença renal foi definida com base em medidas séricas e urinárias. A creatinina foi medida em amostras de soro pelo método cinético Jaffe (Advia 1200 Siemens, EUA), após a aplicação de um fator de conversão derivado de amostras de calibração rastreáveis à espectrometria de massa por diluição de isótopos. Os valores séricos da creatinina foram empregados para estimar a TFG utilizando a equação da Colaboração Epidemiológica da Doença Crônica Renal (CKD-EPI). A razão de albumina/creatinina (RAC) foi calculada a partir das concentrações de albumina e creatinina encontradas nas amostras de urina de 12 horas. A creatinina urinária foi medida pelo método cinético Jaffe e pela albumina na urina pelo ensaio imunohistoquímico (BN II Nephelometer Siemens DadeBehring, EUA). A doença renal foi classificada através de três critérios: 1) um TFG estimado < 60 mL/min/1,73m2, 2) uma RAC > = 30 mg/g; ou 3) a combinação destes dois parâmetros.18

A hipertensão foi definida como o uso de medicamentos hipertensivos, pressão arterial sistólica ≥ 140 mmHg ou pressão arterial diastólica ≥ 90 mmHg. O diabetes foi definido pela história clínica, o uso de fármacos antidiabéticos, níveis de glicose em jejum ≥ 126 mg/dl, hemoglobina glicada (HbA1C) ≥ 6,5% ou exame de tolerância à glicose oral de 2 horas ≥ 200 mg/dL.14 O consumo moderado de álcool foi definido como consumo semanal de álcool acima de 210 gramas e 140 gramas para homens e mulheres, respectivamente.14 A anemia foi definida como hemoglobina inferior a 13,0 g/dL ou 12,0 g/dL para homens e mulheres, respectivamente.19

A análise estatística foi feita usando o software STATA ™, versão 12.0.20 As variáveis contínuas são descritas por medianas, médias e desvios-padrão. As variáveis categóricas são descritas por porcentagens.

Utilizamos regressões logísticas múltiplas para determinar a associação entre DRC e desempenho cognitivo reduzido. Obtivemos um escore z composto adicionando os escores z de testes de memória e de fluência verbal, e subtraindo os escores z do Teste B. Dada a influência da idade e da educação sobre o desempenho nos testes cognitivos, os participantes foram estratificados em três faixas etárias (35-44, 45-64 e 65+ anos) e em quatro níveis de educação (< 8, 8-10, 11-14 e 14 anos de escolaridade). Para cada estrato, calculou-se o desvio padrão médio (DP) dos escores z combinados da função cognitiva, e o desempenho cognitivo global reduzido foi definido como um ou mais DP abaixo da média em cada faixa etária e estrato de educação.17 A mesma estratégia foi utilizada para se obter o desempenho cognitivo reduzido em cada teste.

Além disso, utilizamos análise de regressão linear múltipla para determinar a associação entre a disfunção renal (de acordo com as três definições acima mencionadas) e os escores brutos de cada teste cognitivo. O escore bruto do Teste de Trilhas B foi transformado em log devido à sua distribuição de probabilidade anormal, antes de realizar a regressão linear.

As análises multivariadas de regressão logística foram ajustadas sequencialmente pelos seguintes fatores de confusão: 1) sociodemográficos: gênero, idade, cor da pele e escolaridade; 2) comportamento: consumo de álcool, tabagismo; e 3) clínica: hipertensão, diabetes e anemia.

Resultados

Os participantes deste estudo apresentavam características semelhantes àqueles da coorte original, após a aplicação dos critérios de exclusão21. Dada a natureza da amostra, houve uma pequena predominância de mulheres (54,8%), a maioria foi de adultos de meia idade (média = 51,6 + 9,0 anos), e com um nível de ensino superior ao da população brasileira (mais de metade dos participantes tinha diploma universitário). 53,5 % se declararam brancos. Tabagismo atual e consumo de álcool foram relatados em 12,8 e 70,9% dos participantes. A frequência de hipertensão, diabetes e anemia na amostra foi de 34,2, 18,6 e 5,2%, respectivamente. O desempenho cognitivo reduzido foi detectado entre 15,8% dos participantes, e os valores médios da TFG foram ligeiramente maiores entre os que apresentaram desempenho cognitivo normal, comparado com menor desempenho cognitivo (86 + 15 mL/min/1,73 m2 vs. 85 + 16 mL/min/1,73 m2, p < 0,01). Mais de 90% dos participantes não apresentaram DRC, mesmo considerando redução da TFG ou RAC aumentada, simultaneamente.

Na análise bivariada, o desempenho cognitivo reduzido foi mais prevalente entre participantes mais velhos, fumantes e aqueles com cor da pele parda e negra. A prevalência de desempenho cognitivo reduzido também foi maior entre os participantes com hipertensão, diabetes e DRC; independentemente da definição adotada (Tabela 1).

Tabela 1 Características dos participantes da linha de base da coorte (n = 13.658) 

Desempenho cognitivo o
Normal
Idade, ano (média, DP) 51,4 (8,9) 52,8 (9,2) **
Gênero (feminino, %) 56,0 45,8 *
Raça/Cor da pele (%)
Branco 55,0 45,1
Negro 14,4 18,6 **
Parda 27,4 31,5 **
Asiático 2,5 3,2 **
Índio 0,8 1,6 **
TFGe (DRC-EPI) - mL/min/1,73m2 (%)
TFGe > 90 41,3 38,3
TFGe 60-89 54,6 55,5
TFGe 45-59 3,6 5,2 **
TFGe 30-44 0,4 0,7*
TFGe < 30 0,1 0,3
Albuminúria (RAC > = 30%) 4,5 5,8**
DRC (TFG < 60 e/ouRAC > = 30) (%) 7,9 1.
Tabagismo (%) 12,0 1
Ingestão de álcool (%) 71,0 1.
Moderada 64,0 58,3
Excessiva 6,9
Anemia (%) 5,2
Hipertensão (%) 33,2 39,3 **
Diabetes (%) 17,7 23,2 **
Escores do teste cognitivo (mediana, IQR)
Memória imediata 22 (20-25) 17 (15-19)
Memória Tardia 8 (6-9) 5 (4-6)
TFV fonêmico 13 (11-16) 9 (7-12)
TFV Semântico 19 (16-23) 15 (12-17)
Teste de Trilhas B 92 (71-127) 143. (99-228)

TFGe: Taxa estimada de filtração glomerular, DRC: doença renal crônica, RAC: razão albumina/creatinina; DP: desvio padrão, IQR: intervalo interquartil, TFV: Teste de fluência verbal; Análise multivariada:

*p < 0,05;

**p < 0,01.

Após o ajuste para fatores de confusão, não houve associação entre desempenho cognitivo reduzido e DRC. Além disso, a disfunção renal associou-se a um aumento muito pequeno na possibilidade de desempenho cognitivo reduzido nesta população, com modificações insignificantes após o ajuste para variáveis ​​demográficas, comportamentais e clínicas (Tabela 2). A função renal reduzida e o desempenho cognitivo reduzido não foram associados ao comparar cada teste separadamente (dados não apresentados).

Tabela 2 Análise por regressão logística múltipla do desempenho cognitivo geral segundo a função renal. ELSA-Brasil estudo de coorte, 13.658 participantes, 2008-2010 

Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3
OR (CI 95%) OR (CI 95%) OR (CI 95%)
Taxa de Filtração Glomerular
≥ 60 mL/min/1.73m2 1,0 1,0 1,0
< 60 mL/min/1.73m2 1,23 (1,00-1,52) 1,22 (0,99-1,51) 1,20 (0,97-1,49)
Razão albumina/creatinina
< 30 mg/g 1,0 1,0 1,0
≥ 30 mg/g 1,10 (0,89-1,36) 1,09 (0,88-1,35) 1,05 (0,85-1,31)
TFG+RACa
Não 1,0 1,0 1,0
Sim 1,16 (0,99-1,37) 1,15 (0,98-1,36) 1,13 (0,95-1,33)

• TFG: taxa de filtração glomerular + RAC: razão albumina/creatinina; Modelo 1: ajustado para variáveis sociodemográficas (gênero, idade, raça); Modelo 2: ajustado para variáveis sociodemográficas comportamentais e (tabagismo e etilismo); Modelo 3: ajustado para variáveis sociodemográficas, comportamentais e clínicas (hipertensão, diabetes e anemia).

A Tabela 3 mostra a associação de DRC com as escores brutos de cada teste cognitivo após os ajustes. O Teste de fluência verbal (TFV) semântico não foi associado a qualquer classificação de DRC. As pontuações no teste de memória imediata diminuíram quando a proteinúria foi detectada. As pontuações no teste de memória tardia e TFV fonêmico diminuíram quando a TFG era inferior a 60 mL/min/1,73m2 (Tabela 3). Conforme esperado, a combinação de redução na TFG e/ou RAC aumentada foi associada a um desempenho reduzido nos mesmos domínios observados para os dois critérios isolados (dados não apresentados). Os coeficientes de determinação (R2) foram muito semelhantes para os modelos, incluindo todas as variáveis, exceto DRC, para todos os domínios cognitivos (Tabela 3). Quando a análise foi feita por estratos de idade (35-44, 45-64 e 65 + anos), não encontramos associação entre cognição e DRC (dados não apresentados).

Tabela 3 Análise de regressão linear múltipla dos testes de desempenho cognitivo por disfunção renal - ELSA-Brasil estudo de coorte, 13.658 participantes, 2008-2010 

DOENÇA RENAL CRÔNICA
TFG mais baixa RAC alta TFG mais baixa +RAC alta
Beta*
(95% IC)
R2 Beta*
(95% IC)
R2 Beta* R2
Desempenho cognitivo geral -0,07
(-0,1; -0,02)
0,40 -0,04
(-0,08; 0,002)
0,40 -0,05
(-0,09; -0,02)
0,40
Memória imediata -0.29
(-0,59; 0,01)
0,18 -0.30
(-0,59;-0,01)
0,18 -0,27
(-049; -0,15)
0,18
Memória tardia -0,22
(-0,38; -0,07)
0,16 -0,06
(-0,21; 0,08)
0,16 -0,15
(-0,27; -0,04)
0,16
TFV semântico -0,20
(-0,60; 0,19)
0,19 0,11
(-0,26; 0,50)
0,19 -0,05
(-00,35; 0,24)
0,19
TFV fonêmico -0,54
(-0,89; -020)
0,13 -0,12
(-0,46; 0,21)
0,13 -0,33
(-0,60; -0,07)
0,13
Teste de Trilhas 0,78
(-3,40; 4,97)
0,40 4,16
(0,08; 8,24)
0,40 2,17
(-0,99; 5,33)
0,40

*Após ajuste para gênero, idade, raça, educação, tabagismo, etilismo e a presença de hipertensão, diabetes ou anemia; TFV: Testes de Fluência Verbal

A análise multivariada por estratos de idade (35-44, 45-64 e 65 + anos) mostrou associação entre menor TFG e menor desempenho cognitivo global entre os meia-idade (OR = 1.60, 95% CI 1.22-2.09), mas não entre os idosos. A combinação de menor TFG e RAC aumentada foi associada ao desempenho cognitivo global reduzido entre idosos de meia idade e idoso, mas o limite inferior do intervalo de confiança esteve próximo a 1,0 (tabela 4). Encontramos resultados semelhantes ao analisar dados de testes cognitivos específicos (os dados não foram apresentados).

Tabela 4 Análise de regressão logística múltipla do desempenho cognitivo geral, de acordo com a função renal, por faixa etária 

35-44 anos
N = 3166
45-64 anos
N = 9003
65-74 anos
N = 1267
OR (CI 95%) OR (CI 95%) OR (CI 95%)
TFG*
≥ 60 ml/min/1,73m2 1,0 1,0 1,0
< 60 ml/min/1,73m2 0,74 (0,21-2,61) 1,60 (1,22-2,09) 1,24(0,85-1,79)
RAC*
< 30 mg/g 1,0 1,0 1,0
≥ 30 mg/g 0,94 (053-1,68) 1,01 (0,77-1,32) 1,54(0,94-2,52)
TFG+RAC*
Não 1,0 1,0 1,0
Sim 0,86 (0,50-1,49) 1,23 (1,00-1,51) 1,49(1,05-2,10)

*Após ajustar para gênero, raça, tabagismo, etilismo, hipertensão, diabetes e anemia.

Discussão

Nossos resultados sugerem que o desempenho cognitivo é mantido até que a função renal atinja piora significativa. Utilizamos duas abordagens diferentes para investigar a associação da DRC com o desempenho cognitivo. Em primeiro lugar, considerando a alta influência da educação sobre o desempenho dos testes nessa população brasileira, utilizamos escores z padronizados para controlar o efeito da idade e da educação nos escores dos testes e definimos um baixo desempenho cognitivo como um DP abaixo da média.17,22 Esta análise não demonstrou a associação de DRC com desempenho cognitivo global reduzido ou desempenho cognitivo reduzido em cada teste cognitivo, após ajuste para fatores de risco bem estabelecidos para desempenho cognitivo e DRC. A segunda estratégia analisou a influência de cada definição de DRC em escores brutos de cada teste cognitivo, e encontramos um impacto modesto da DRC sobre o desempenho cognitivo.

A idade relativamente jovem dos participantes do ELSA-Brasil pode explicar a falta de associação entre a DRC e o desempenho cognitivo reduzido. Um estudo que compreende 4.095 participantes, incluindo também jovens (de 35 a 82 anos), não encontrou associação de TFG com função cognitiva, embora a albuminúria elevada tenha sido associada a uma pior função cognitiva, somente entre os jovens em análise prospectiva. A menor TFG foi significativamente associada à menor função cognitiva quando a análise foi limitada aos idosos (65 + anos) com alto risco cardiovascular.23 A DRC moderada (TFG < 50 mL/min por 1,73 m2) foi associada a uma prevalência aumentada de comprometimento cognitivo, independente dos fatores de confusão, ao analisar 23.405 indivíduos mais velhos (idade média 64,9 ± 9,6 anos) e com maior prevalência (11%) do que os nossos participantes.24

A baixa prevalência de DRC moderada a grave entre os participantes do ELSA-Brasil também pode contribuir para a modesta associação entre DRC e desempenho cognitivo. A gravidade da DRC parece influenciar a existência e o grau de associação entre a função renal e o desempenho cognitivo. Um estudo com 4.849 indivíduos jovens saudáveis (20-59 anos) mostrou associação entre a DRC no estágio 3 e a função cognitiva inferior, independentemente dos fatores confundentes.25 Outro estudo transversal que incluiu 825 adultos com DRC (55 anos e mais) mostrou que o risco de comprometimento na cognição global e na maioria dos domínios cognitivos é maior abaixo do limiar de TFG de 30 mL/min/1,73 m2, relatado como duas vezes maior do que aquele observado em indivíduos com TFG entre 45 e 60 mL/min/1,73 m2.26 Além disso, uma meta-análise de sete estudos transversais revelou que a gravidade da DRC foi significativamente associada a um desempenho cognitivo reduzido em uma relação dose-resposta. Um odds ratio maior foi observado para DRC grave quando comparado à DRC moderada ou discreta.13 Quadro de dez estudos longitudinais não mostraram um risco aumentado de declínio cognitivo com TFG < 60 mL/min/1,73 m2 e uma associação foi detectada apenas na presença de DRC moderada a grave em outros 2 estudos.13 As diferenças metodológicas em relação a gênero, idade, métodos de definição de DRC e escolha de testes cognitivos certamente representam a variabilidade nos resultados dos estudos.13

Embora modestamente, a TFG foi significativamente associada com um pior desempenho cognitivo na memória tardia e TFV fonêmica, enquanto que a proteinúria estava associada à aprendizagem da memória. A albuminúria e baixa TFG parecem ser complementares, mas não fatores de risco aditivos para comprometimento cognitivo incidente.27 Neste estudo, a associação de domínios cognitivos distintos com níveis prejudicados de TFG ou proteinúria reforça essa hipótese.

Os principais pontos fortes deste estudo foram a metodologia rigorosa, o grande número de participantes e da ampla faixa etária, mas o desenho transversal e a falta de casos graves de DRC limitaram a análise.

Conclusão

Nossos resultados sugerem que o desempenho cognitivo é mantido até ocorrer uma deterioração significativa da função renal. Estudos transversais mostram resultados conflitantes na associação entre deficiência cognitiva e disfunção renal, mas a maioria das associações significativas só ocorre já nos estágios finais da disfunção renal. Como a DRC resulta de muitos problemas de saúde que danificam o rim, geralmente por progressão e cronicidade, estratégias preventivas e terapêuticas podem retardar a perda de função renal e consequentemente proteger a função cognitiva. O seguimento do ELSA-Brasil investiga preditores de disfunção cognitiva entre adultos com níveis iniciais de DRC visando contribuir para obtenção.

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