versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.105 no.1 São Paulo jul. 2015
https://doi.org/10.5935/abc.20150080
Com o envelhecimento populacional, a incidência de doenças cardiovasculares degenerativas tem aumentado progressivamente, destacando-se a Estenose Aórtica (EAo), presente em 3%-5% da população com mais de 75 anos1 , 2. Na última década, a EAo grave é caracterizada levando em consideração vários aspectos funcionais entre o ventrículo esquerdo e aorta, principalmente pelo ecocardiograma, tais como gradiente transvalvar médio maior que 40 mmHg, velocidade do jato transvalvar maior que 4 m/s e área valvar aórtica menor que 1 cm2, além de aspectos anatômicos como grau de calcificação da valva aórtica. Estudos da década de 19703 - 5 descrevendo os dados hemodinâmicos e a função ventricular caracterizavam o diagnóstico da EAo grave somente pelo gradiente transvalvar aórtico de pico maior que 50 mmHg pela hemodinâmica e maior que 70 mmHg pelo ecocardiograma. Na ocasião, questionavam o real benefício da cirurgia na correção da EAo grave e disfunção ventricular esquerda pelas dificuldades de esses exames serem capazes de distinguir os pacientes que poderiam se beneficiar de tal tratamento. Nos anos 1980 e 1990, ainda com as limitações na avaliação da função ventricular, a indicação da intervenção só era viável nos pacientes com EAo grave (gradiente transvalvar aórtico de pico maior que 70 mmHg pelo ecocardiograma) sem levar em conta o grau de disfunção do ventrículo esquerdo6 , 7. Ressalta-se que, nas últimas duas décadas, com a busca incessante de respostas para essas indagações e com o advento do ecocardiograma com estresse farmacológico, tem-se dado ênfase a essas formas peculiares de EAo, com particular evidência a EAo grave com baixo-fluxo baixo-gradiente e fração de ejeção reduzida, com ou sem reserva contrátil. Esta última tem sido alvo de grande interesse científico pela dificuldade de diagnosticá-la e avaliar o real benefício da intervenção cirúrgica.
EAo baixo-fluxo baixo-gradiente e fração de ejeção reduzida é encontrada em cerca de 5%-10% daqueles pacientes com EAo grave, e o diagnóstico ocorre na presença dos sintomas clássicos da EAo, como dispneia, dor torácica e/ou síncope, associado à área valvar aórtica ≤ 1,0 cm2 (ou ≤ 0,6 cm2/m2), gradiente VE-Ao médio ≤ 40 mmHg e fração de ejeção reduzida (≤ 40%)8 - 10. A disfunção ventricular, nesses casos, pode ser secundária à desadaptação ventricular consequente à pós-carga excessiva (afterload mismatch) - EAoverdadeiramente grave -, ou secundária a fenômeno miocárdico concomitante à valvopatia discreta/moderada - EAo anatomicamente não grave. Nesta última, a redução da força ventricular levaria à abertura valvar incompleta, justificando o baixo gradiente transvalvar aórtico10 , 11. A distinção entre esses dois grupos é de extrema importância, uma vez que portadores de EAo anatomicamente grave têm benefício com a correção do defeito valvar, ao passo que o tratamento para aqueles com EAo anatomicamente não grave deve ser direcionado para a causa da doença do miocárdio10 , 11. Assim sendo, a primeira questão que surge para o cardiologista clínico é: Como acompanhar e investigar o paciente com hipótese diagnóstica com EAo baixo-fluxo baixo-gradiente e fração de ejeção reduzida?
A avaliação inicial deve ser realizada através do ecocardiograma com estresse com dobutamina (até a dose de 20 mcg/kg/min), analisando a reserva contrátil do miocárdio que, quando presente, nos permite a definição da gravidade anatômica da EAo10 - 12. Caso o aumento da área valvar após estresse seja ≤ 0,3 cm2 e/ou essa se mantenha < 1,0 cm2 e/ou gradiente médio VE-Ao seja ≥ 40 mmHg, tem-se o diagnóstico de EAoanatomicamente grave. Por outro lado, aumentos maiores da área valvar estabelecem o diagnóstico de EAo anatomicamente não grave. Dentre as medidas descritas para definição de reserva contrátil durante o estresse com dobutamina, o Volume Sistólico é o índice mais utilizado11. Ausência de reserva contrátil é definida por um aumento do Volume Sistólico após estresse medicamentoso menor que 20%10 , 11, e tal situação gera nova dúvida para o cardiologista clínico: Há benefício no tratamento intervencionista daqueles que não possuem reserva contrátil miocárdica?
Tais pacientes apresentam alta mortalidade cirúrgica (22%-33%); contudo, essa taxa é ainda menor que a mortalidade dos portadores de EAo importante que permanecem em tratamento clínico10 , 11 , 13. Dessa forma, procedimentos alternativos, como o Implante Transcateter de Bioprótese Aórtica (TAVI - Transcatheter Aortic Valve Implantation), podem ser indicados com menor morbimortalidade13 , 14. Entretanto, como o ecocardiograma com estresse pode apresentar grandes limitações na identificação dos pacientes com EAo verdadeiramente severa na ausência de reserva contrátil, como devemos avaliar e quais métodos podem ajudar nas informações sobre a gravidade anatômica e prognóstico, auxiliando na indicação da intervenção valvar no paciente sintomático?
A calcificação valvar é o principal marcador de gravidade anatômica na EAo. A avaliação ecocardiográfica, através do escore de Rosenhek 15, define como calcificação importante aqueles com grau 3 (múltiplos depósitos de cálcio) e grau 4 (calcificação extensa de todas as cúspides)16. Na avaliação pela tomografia computadorizada, o escore de cálcio maior que 1650 unidades Agatston (u.A.) também indica calcificação severa16. Entretanto, estudos em andamento sugerem que o impacto hemodinâmico da EAo pode depender não somente da quantidade de cálcio na valva aórtica, mas também da topografia da calcificação valvar, demonstrando que valores de escore de cálcio significantemente menores podem gerar gradientes elevados caso a calcificação seja predominantemente nas comissuras valvares, sendo tal dado auxiliar para diagnóstico da EAo anatomicamente grave 17. Devemos ressaltar que, apesar de infrequente, a calcificação valvar aórtica pode estender-se até o anel valvar mitral, comprometendo sua funcionalidade e, como consequência, gerando uma insuficiência mitral com moderada a importante expressão, o que pode atrapalhar a avaliação da gravidade da EAo pela redução da pressão intraventricular esquerda. Adicionalmente, dentro de nossa experiência, com a comprovação da EAo grave, o tratamento somente da valva aórtica pode minimizar o efeito sobre o aparato mitral.
Em relação ao prognóstico operatório, a presença de gradiente VE-Ao médio ≤ 20 mmHg pelo ecocardiograma e a dosagem sérica de peptídeo natriurético cerebral (BNP) em níveis elevados estão associados a desfechos desfavoráveis. Pacientes com EAo baixo-fluxo baixo-gradiente e fração de ejeção reduzida com níveis menores que 550 pg/mL de BNP, independentemente da reserva contrátil, têm melhor prognóstico cirúrgico13 , 18 , 19. A presença de lesões coronarianas com indicação de intervenção na cineangiocoronariografia, usualmente realizada como parte dos exames pré-operatórios em pacientes com mais de 40 anos ou com fatores de risco para aterosclerose, também é fator prognóstico, uma vez que a cirurgia combinada de revascularização miocárdica e implante de bioprótese aórtica aumenta a mortalidade quando comparada à troca valvar isolada (53% vs. 10%, p = 0,007)13. Nishimura e cols.20 demonstraram a utilização do estudo hemodinâmico com estresse com dobutamina para avaliação de reserva contrátil de forma semelhante ao ecocardiograma; contudo, fizeram uso de altas doses desse fármaco (40 mcg/kg/min), o que pode aumentar a probabilidade de complicações e efeitos adversos durante o teste, como arritmias graves, hipertensão ou hipotensão arterial e outros sintomas de intolerância à dobutamina.
Concluindo, o ecocardiograma com estresse com dobutamina é um exame fundamental na avaliação de portadores de EAo baixo-fluxo baixo-gradiente e fração de ejeção reduzida, por distinguir os portadores de EAo anatomicamente grave daqueles com EAo anatomicamente não grave. Entretanto, quando o exame não é diagnóstico, ou seja, o paciente não tem reserva contrátil, outros parâmetros para avaliar a gravidade anatômica e prognóstico podem ser úteis (Figura 1). Muitas são as variáveis que podem contribuir para tal avaliação no paciente com EAo baixo-fluxo baixo-gradiente e fração de ejeção reduzida sem reserva contrátil; entretanto, nenhuma delas isoladamente deve contraindicar o procedimento cirúrgico. Deve-se, acima de tudo, individualizar a avaliação desse subgrupo e, naqueles em que o risco operatório demonstra-se inaceitável, a proposta de TAVI é mandatória.