versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.4 Rio de Janeiro 2019 Epub 08-Abr-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00112718
La prevalencia de VIH entre mujeres transgénero es desproporcionada cuando la comparamos con la población general en varios países. El estigma y la discriminación, debido a la identidad de género, han sido comúnmente asociados a la vulnerabilidad al VIH/SIDA. El objetivo fue realizar una revisión sistemática de la literatura para analizar la relación entre el estigma y la discriminación, relacionados con la identidad de género de mujeres transgénero y su vulnerabilidad al VIH/SIDA. Se realizó una revisión sistemática de la literatura, que implicó etapas de identificación, registro, análisis e interpretación de resultados de estudios, a partir de una selección en cinco bases de datos: PubMed, Scopus, Web of Science, Science Direct y LILACS. No se estableció un período de tiempo a priori para esta revisión. Los estudios se evaluaron según criterios de inclusión y exclusión. Se incluyeron artículos en inglés, portugués o español, que relacionaban el estigma y la discriminación con la vulnerabilidad de mujeres transgénero al VIH. Se encontraron 41 artículos, mayoritariamente cualitativos, publicados durante el período entre 2004 a 2018, y categorizados en tres dimensiones del estigma: nivel individual, interpersonal y estructural. Los datos permitieron destacar que los efectos del estigma, relacionado con la identidad de género, como la violencia, la discriminación y la transfobia, son elementos estructuradores en el proceso de la vulnerabilidad de la población de mujeres transgénero al VIH/SIDA. Los estudios mostraron una relación entre estigma y discriminación con la vulnerabilidad de mujeres transgénero al VIH/SIDA y señalan la necesidad de políticas públicas que combatan esta discriminación en la sociedad.
Palabras-clave: Estigma Social; Discriminación Social; Personas Transgénero; VIH; Revisión Sistemática
A prevalência de HIV entre mulheres transgênero é desproporcional quando comparamos com a população geral 1,2,3. Um estudo de metanálise estimou uma prevalência de 19,1% para 15 países, que é 48,8 vezes maior quando comparada com aquela entre adultos em idade reprodutiva da população dos mesmos países 2.
Essa desproporcionalidade tem sido explicada em diversos trabalhos por uma diversidade de complexos fatores individuais que incluem: biológico (por exemplo: sexo anal desprotegido) e comportamentais (por exemplo: não utilização do preservativo, uso de substâncias psicoativas etc.), juntamente com fatores estruturais, tais como o estigma e a discriminação, que também têm um papel importante, podendo influenciar os comportamentos, práticas e atitudes em relação ao HIV, e que atuam limitando o acesso a recursos socioeconômicos, em especial educacionais, laborais, bem como o acesso a serviços de prevenção 2,3,4. Assim, pesquisadores, ativistas e profissionais de saúde têm considerado o estigma e a discriminação como dois dos principais fatores associados às altas prelavências de infecção pelo HIV 5,6,7,8,9.
As performances de gênero das mulheres transgênero são vistas como uma insubordinação ao poder estabelecido pela sociedade heteronormativa sobre os corpos e relações sociais 10,11. Como consequência, as mulheres transgênero enfrentam intensa estigmatização em função da expressão de suas identidades de gênero, em sociedades predominantemente patriarcais e machistas 3,10. Quando se comparam homens que fazem sexo com homens (HSH) e mulheres transgênero, observa-se que elas vivenciam mais estigma e discriminação 7, mais eventos psicossociais estressores do que os HSH, revelando a existência de discriminação mesmo dentro da comunidade LGBT 12. Também apresentam maiores prevalências de HIV do que os HSH 13.
O estigma e a discriminação em função da identidade de gênero estão relacionados comumente a um contexto social, econômico e psicológico desfavorável às mulheres transgênero 14, que implica muitas vezes o seu envolvimento com o sexo comercial, em geral em decorrência das opções limitadas do acesso ao mercado formal de trabalho 2,3,4,15. Apesar disso, a atual resposta à epidemia do HIV/aids tem enfatizado mais as medidas biomédicas do que as questões estruturais, o que inclui o papel dos ativistas e dos membros das populações mais afetadas pela epidemia 16. Desse modo, o presente artigo pretende realizar uma revisão sistemática da literatura para analisar a relação entre o estigma e a discriminação relacionados à identidade de gênero de mulheres transgênero e à vulnerabilidade ao HIV/aids.
Trata-se uma revisão sistemática da literatura sobre estigma, discriminação e vulnerabilidade de mulheres transgênero ao HIV/aids, que envolveu as etapas de identificação, fichamento, análise e interpretação de resultados de estudos selecionados. Essa revisão seguiu as recomendações da PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses), um guia que descreve as exigências específicas para estudos de revisões sistemáticas e metanálises 17.
Revisores independentes (L. M., M. P.-S.) realizaram a busca de trabalhos nas bases de dados PubMed, Scopus, Web of Science, Science Direct e LILACS, utilizando as seguintes combinações de palavras-chave: “discrimination”, “HIV”, “social stigma” ou “stigma” “transgender persons” ou “transgender” ou “travesti” (Material Suplementar, Tabela S1: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/site/public_site/arquivo/suppl-e00112718portugues_3826.pdf). Adicionalmente, foram examinadas as listas de referências bibliográficas dos estudos relevantes, a fim de identificar aqueles potencialmente elegíveis.
No Brasil e na América Latina, os termos “travesti” e “mulher transexual” são mais comumente usados pelas próprias comunidades do que “mulher transgênero”. Essas diferenças podem marcar identidades políticas e/ou subjetivas, que são fluidas a depender do contexto 18. Esses termos transmitem diferentes níveis de performances como mulher e reivindicam a legitimidade de sua identidade para além dos parâmetros binários masculino e feminino, adequação de sua imagem física e de seus corpos por meio de terapia hormonal, uso de silicone, dentre outras modificações corporais, e desejam ser tratadas no feminino e pelo nome com o qual elas se identificam. Destaca-se que há um trânsito entre essas identidades, não sendo categorias fixas ou isoladas, mas sempre em disputa, negociação, em constante interação e movimento 19,20,21. Neste trabalho, empregou-se o termo mulheres transgênero (transgender women) tendo em vista que boa parte da literatura contemplada na revisão foi publicada em inglês, e é um termo guarda-chuva usado para representar um amplo espectro de identidades transfemininas que borram as fronteiras de sexo-gênero, embora o termo travesti também tenha sido incluído como termo de estratégia de busca.
As publicações foram gerenciadas no aplicativo Mendeley (https://www.mendeley.com/) para a remoção das duplicatas. A coleta de dados ocorreu entre outubro de 2016 e fevereiro de 2017, sendo atualizada em junho de 2018. Não houve estabelecimento de período de tempo a priori para esta revisão.
Adotou-se como critério de inclusão os estudos que abordavam a relação entre o estigma e a discriminação devido à identidade de gênero e à vulnerabilidade de mulheres transgênero ao HIV/aids. Não houve exclusão a priori de nenhuma abordagem metodológica, tendo sido incluídos tanto artigos qualitativos quanto quantitativos. O estudo incluiu artigos escritos em inglês, português e espanhol. Não foram excluídos artigos com base na localização geográfica e temporal, e nem no termo utilizado para a definição de mulheres transgênero (travesti, mulher transexual, aravanis, hijras, metis etc.).
Iniciou-se a seleção dos estudos por meio da leitura dos títulos e dos resumos, observando-se os critérios de inclusão. Os artigos selecionados foram lidos na íntegra. Após a avaliação, os trabalhos foram selecionados para integrar o corpus desta revisão. Foi estruturada uma planilha do Excel (https://products.office.com/) contendo os seguintes termos: autores, ano de publicação, país do estudo, desenho do estudo/metodologia, número de pessoas investigadas, objetivos, população estudada e principais resultados.
Em um segundo momento, a qualidade metodológica foi avaliada de acordo com a natureza do estudo. Nas pesquisas com abordagem quantitativa foi utilizada a escala do Research Triangle Institute Item Bank (RTI-Item Bank), que avalia o risco de viés 22. O RTI-Item Bank contém 29 itens para avaliação de estudos, dos quais seis foram aplicados aos trabalhos incluídos nesta revisão (Material Suplementar, Quadro S1: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/site/public_site/arquivo/suppl-e00112718portugues_3826.pdf): (i) critérios de inclusão e exclusão claramente definidos; (ii) uso de medidas válidas e confiáveis para avaliar critérios de inclusão e exclusão; (iii) estratégia padronizada de recrutamento de participantes do estudo em todos os grupos; (iv) seleção apropriada da amostra; (v) resultados avaliados usando medidas válidas e confiáveis, implementadas consistentemente a todos os participantes do estudo; (vi) variáveis de confundimento e modificadoras de efeito consideradas no desenho e/ou análise de dados 22. O risco de viés foi avaliado e classificado usando-se a resposta dos estudos aos itens descritos anteriormente e foram classificados da seguinte maneira: alto risco de viés - quando o trabalho teve uma ou mais respostas negativas aos itens; risco moderado de viés - quando um ou mais itens foram considerados “parcialmente” ou “não pode ser determinado”; baixo risco de viés - quando todos os itens da escala registraram uma resposta positiva 22.
Para a avaliação dos estudos qualitativos foi utilizado o instrumento proposto pelo Critical Appraisal Skills Programme (CASP), empregado na análise crítica de relatos de pesquisas qualitativas. Esse instrumento apresenta dez questões que conduzem o avaliador a pensar de forma sistemática sobre o rigor, credibilidade e relevância do estudo, considerando: (i) objetivo claro e justificado; (ii) desenho metodológico apropriado aos objetivos; (iii) procedimentos metodológicos apresentados e discutidos; (iv) seleção da amostra; (v) coleta de dados descrita, instrumentos e processo de saturação explicitados; (vi) explicitação da relação entre pesquisador e pesquisado; (vii) cuidados éticos; (viii) análise densa e fundamentada; (ix) resultados apresentados e discutidos, apontando o aspecto da credibilidade e uso da triangulação; (x) descrição sobre as contribuições e implicações do conhecimento gerado pela pesquisa, bem como suas limitações 23. Os estudos qualitativos foram classificados em duas categorias: na A foram classificados os trabalhos com alto rigor metodológico, uma vez que preencheram ao menos 9 dos 10 itens; na categoria B foram classificados aqueles com moderado rigor metodológico, quando pelo menos 5 dos 10 itens foram atendidos 23,24.
A análise foi norteada pelos referenciais teóricos dos conceitos de estigma, discriminação e vulnerabilidade. Foi utilizado o conceito de vulnerabilidade aplicado ao campo da saúde, especificamente à discussão sobre a epidemia de HIV/aids. Esse conceito pode ser compreendido pela análise de três componentes inter-relacionados: (i) vulnerabilidade individual - com o objetivo de identificar os fatores físicos, mentais ou comportamentais por meio de avaliações de risco e/ou de outras abordagens; (ii) vulnerabilidade social - analisa as dimensões da cultura, religião, moral, política, economia e os fatores institucionais, os quais podem determinar os meios de exposição a doenças e/ou agravos; (iii) vulnerabilidade programática - examina as formas pelas quais as políticas, os programas e os serviços interferem nas situações sociais e individuais das pessoas 25,26,27,28. A vulnerabilidade traz uma ênfase na responsabilidade das ações dos governos e das políticas públicas como parte integrante dos determinantes do processo de saúde/doença 25,26. Neste artigo, a compreensão teórico-conceitual desse constructo fez ampliar o escopo de análise dos artigos para além das questões comportamentais e individuais relacionadas ao risco, incluindo estudos que relacionavam o estigma e a discriminação com as barreiras de acesso aos serviços de saúde.
O estigma se refere a um atributo profundamente depreciativo de uma pessoa, que é percebido como tal por intermédio da interação social. A presença desse atributo pode confirmar ou reafirmar a “normalidade” de pessoas ou grupos específicos. O estigma destaca um traço específico do indivíduo e o sujeita à impossibilidade de atenção social para outros de seus atributos, imputando-lhes um grande descrédito 29. Recentemente, Hatzenbuehler & Link 30 enfatizaram a necessidade de se avançar na conceitualização e mensuração do estigma como um fenômeno social com raízes nas estruturas sociais. Esses autores definem o estigma estrutural como condições do nível social mais amplo, normas culturais e políticas institucionais que constroem as oportunidades, recursos e bem-estar de pessoas estigmatizadas. Os autores chamam a atenção para a intensa interação entre o nível microssocial, o lócus das relações interpessoais e o nível macroestrutural. As estruturas referidas não seriam unidirecionais e estáticas, mas sim moldadas pelas interações interpessoais e pelos fatores individuais.
A discriminação pode ser entendida como um resultado prático do estigma, como definido por revisão conceitual 31 (p. 34): o estigma seria um profundo atributo de descrédito, uma “marca” ou “identidade desvalorizada socialmente”; a estigmatização estaria relacionada a um processo social que produz desvalorização por meio de rótulos e estereótipos; o rótulo seria um termo sancionado oficialmente e aplicado a condições, indivíduos, grupos, lugares, organizações, instituições ou outras entidades sociais, já o estereótipo estaria relacionado a atitudes e crenças negativas direcionadas às entidades sociais rotuladas; o preconceito como um endossamento de crenças e atitudes negativas relacionadas ao estereótipo; e a discriminação seriam as ações direcionadas ao endossamento e reforço dos estereótipos para trazer desvantagem às pessoas rotuladas. Desse modo, neste artigo consideramos os trabalhos sobre a discriminação e o estigma relacionados à identidade de gênero de mulheres transexuais. Como a literatura sobre esse tema não é consensual 32, usaremos “estigma e discriminação” ao longo do texto de maneira pouco rígida, mas entendendo que existem especificidades teórico-conceituais importantes 33.
A proposta da análise focada e constante foi usada para a metassíntese. Nesta análise, investigamos as questões metodológicas dos estudos analisados e também foram estabelecidos elementos-chave que constituíram unidades temáticas 34. Foram encontrados 65 elementos-chave com base na leitura dos artigos, e estes foram categorizados, com o auxílio de uma planilha no software Excel, de acordo com três unidades temáticas do conceito de estigma apontado por Hatzenbuehler & Link 30 e White-Hughto et al. 14: nível individual (questões psicológicas, como o autoestigma), interpessoal (a discriminação pessoa a pessoa) e estrutural (nível de políticas estatais que podem promover exclusão social).
Identificaram-se 791 artigos nas bases de dados, dos quais 41 foram incluídos na revisão. As estratégias de busca estão apresentadas na Figura 1. Os motivos para a exclusão dos artigos foram a ausência da análise sobre estigma, discriminação, vulnerabilidade e HIV (Material Suplementar, Quadro S2: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/site/public_site/arquivo/suppl-e00112718portugues_3826.pdf).
A maioria dos artigos usou exclusivamente métodos qualitativos (27/41) (Tabela 1), houve dois artigos com métodos mistos e 12 exclusivamente quantitativos (Tabela 2). Todos foram publicados entre 2004 e 2018. Observou-se um crescimento no número de publicações nos últimos anos, com um pico em 2016 (11/41). Os Estados Unidos foram o país com o maior número de publicações (13/41), seguidos por Índia (5/41), México (3/41) e Brasil (3/41).
Tabela 1 Características da produção de conhecimento em estudos qualitativos sobre a relação entre estigma, discriminação e vulnerabilidade de mulheres transgênero ao HIV/aids, 2004-2018.
Referência (ano) | País | Método/ Desenho do estudo | Abrangência do estudo | Objetivos | População estudada | Ano do estudo | Escore CASP |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Nemoto et al. 5 (2004) | Estados Unidos | Qualitativo/ Grupos focais | 48 mulheres transgênero | Explorar o contexto social do uso de drogas e os comportamentos sexuais que colocam mulheres transgênero em risco para a infecção pelo HIV | Mulheres transgênero | 1999-2000 | 9-A |
Melendez & Pinto 44 (2007) | Estados Unidos | Qualitativo/ Entrevista em profundidade | 20 mulheres transgênero | Examinar como o estigma e a discriminação interagem com papéis de gênero para colocar as mulheres transgênero em uma posição de risco de infecção pelo HIV | Mulheres transgênero | 2003 | 7-A |
Koken et al. 45 (2009) | Estados Unidos | Qualitativo/ Entrevista semiestruturada | 20 mulheres transgênero | Explorar as experiências das mulheres transgênero com seus pais e familiares próximos e a relação com sua identidade de gênero | Mulheres transgênero negras | 2007-2008 | 8-A |
Infante et al. 12 (2009) | México | Qualitativo/ Observação participante e entrevistas em profundidade | 13 travestis, mulheres transgênero e mulheres transexuais profissionais do sexo | Descrever o contexto social em que vivem as/os trabalhadoras/es do sexo, focalizando suas identidades sexuais, práticas sexuais e vulnerabilidade ao HIV | Travestis, mulheres transgênero, mulheres transexuais e HSH profissionais do sexo | 2006-2007 | 7-A |
Estrada-Montoya & García-Becerra 49 (2010) | Colômbia | Qualitativo/ Entrevista | 18 mulheres transgênero | Identificar as formas mais representativas para representar e imaginar a sexualidade dentro da comunidade transgênero | Mulheres transgênero | Não informa | 8-A |
Chakrapani et al. 57 (2011) | Índia | Qualitativo/ Grupos focais e entrevista | 17 mulheres transgênero (aravanis) | Identificar e entender as barreiras no acesso gratuito aos antirretrovirais e aos centros de tratamento governamentais | Mulheres transgênero (aravanis) e HSH | 2007 | 8-A |
Wilson et al. 50 (2011) | Nepal | Qualitativo/ Entrevista em profundidade | 14 mulheres transgênero (metis) | Explorar o contexto social de estigma entre metis no Nepal para melhor entender o risco de infecção por HIV | Mulheres transgênero (metis) | Não informa | 9-A |
Logie et al. 64 (2011) | Canadá | Qualitativo/ Grupos focais | 21 mulheres transgênero | Entender as estratégias de estigma e enfrentamento entre mulheres vivendo com HIV | Mulheres transgênero com HIV, mulheres cis lésbicas e bissexuais | 2009-2010 | 7-A |
Beattie et al. 66 (2012) | Índia | Qualitativo/ Grupos focais | 6 mulheres transgênero (hijras) | Compreender as barreiras e identificar soluções para melhorar a utilização de serviços de HIV | Mulheres transgênero (hijras), mulheres cis profissionais do sexo e HSH (kothis e double-deckers) | 2008 | 5-B |
Cuadra-Hernández et al. 51 (2012) | México | Qualitativo/ Entrevista semiestruturada | 26 entrevistas com mulheres transgênero, gays e outras populações chave (não específicas) | Analisar uma intervenção para diminuir o estigma | Mulheres transgênero, gays e outras populações chave | 2009-2010 | 7-A |
Logie et al. 63 (2012) | Canadá | Qualitativo/ Grupos focais | 16 mulheres transgênero | Explorar desafios da vida cotidiana e experiências de acesso a serviços de cuidado ao HIV entre mulheres LGBT que vivem com HIV | Mulheres transgênero, mulheres cis lésbicas, gays e bissexuais | 2009-2010 | 8-A |
Boyce et al. 52 (2012) | Guatemala | Qualitativo/ Entrevista | 8 mulheres transgênero | Identificar barreiras para o acesso aos serviços de saúde sexual | Mulheres transgênero, HSH e outros | Não informa | 5-B |
Wilson et al. 53 (2013) | Estados Unidos | Qualitativo/ Entrevista em profundidade | 10 mulheres transgênero | Identificar barreiras e facilidades para o cuidado e suporte em serviços para mulheres transgênero afro-americanas | Mulheres transgênero afro-americanas que vivem com HIV | Não informa | 9-A |
Rhodes et al. 58 (2014) | Guatemala | Qualitativo/ Grupos focais e entrevista em profundidade | 20 mulheres transgênero | Explorar riscos para a saúde sexual e para a infecção pelo HIV | Mulheres transgênero, homens transexuais, gays e bissexuais | Não informa | 9-A |
Sevelius et al. 62 (2015) | Estados Unidos | Qualitativo/ Grupos focais e entrevista | 58 mulheres transgênero | Examinar as barreiras e facilidades para o engajamento e retenção em serviços de cuidado ao HIV | Mulheres transgênero que vivem com HIV | Não informa | 8- A |
Remien et al. 65 (2015) | Estados Unidos | Qualitativo/ Entrevista em profundidade | 20 mulheres transgênero | Analisar as barreiras e facilidades para o envolvimento nos cuidados ao HIV | Mulheres transgênero que vivem com HIV | Não informa | 4-A |
Kaplan et al. 56 (2015) | Líbano | Qualitativo/ Entrevista semiestruturada | 10 mulheres transgênero | Investigar comportamentos de risco de mulheres transgênero | Mulheres transgênero | 2011 | 6-A |
Palazzolo et al. 54 (2016) | Estados Unidos | Qualitativo/ Entrevista em profundidade | 8 mulheres transgênero | Explorar fatores contextuais que determinam ou mitigam a vulnerabilidade de mulheres transgênero latinas ao HIV | Mulheres transgênero latinas ou hispânicas | 2013 | 5-B |
Di Stefano et al. 68 (2016) | Japão | Qualitativo/ Etnografia com observação participante, pesquisa documental e entrevistas em profundidade | 3 mulheres transgênero | Identificar como o HIV se cruzou com outros problemas sociais e de saúde no Japão entre mulheres transgênero e HSH | Mulheres transgênero, HSH | Não informa | 8-A |
Pollock et al. 55 (2016) | Peru | Qualitativo/ Entrevista | 50 mulheres transgênero | Explorar a construção da identidade de gênero e os contextos pessoais e sociais de travestis para esclarecer o contexto social de vulnerabilidade ao HIV | Travestis | Não informa | 9-A |
Woodford et al. 59 (2016) | Índia | Qualitativo/ Grupos focais e entrevista com informantes-chave | 21 mulheres transgênero | Identificar barreiras e facilidades para o acesso à testagem de HIV entre comunidades em alto risco de infecção | Mulheres transgênero e outros | Não informa | 6-A |
Gibson et al. 46 (2016) | Malásia | Qualitativo/ Entrevista | 21 mulheres transgênero | Compreender como as identidades de trans profissionais do sexo influencia os padrões de utilização dos cuidados de saúde e comportamentos para redução de danos | Mulheres transgênero profissionais do sexo e outros | 2013-2014 | 9-A |
Barrington et al. 69 (2016) | Guatemala | Qualitativo/ Entrevista | 11 mulheres transgênero | Descrever fatores que determinam o momento do diagnóstico, o processo de ligação aos serviços e experiências de pessoas vivendo com HIV | Mulheres transgênero e outros | Não informa | 9-A |
Nemoto et al. 61 (2016) | Tailândia | Qualitativo/ Entrevista em profundidade e grupos focais | 24 mulheres transgênero | Descrever o contexto sociocultural dos comportamentos de risco para o HIV, explorando características das práticas de trabalho sexual, apoio social e o papel do karma | Mulheres transgênero | 2010-2011 | 9-A |
Ganju & Saggurti 48 (2017) | Índia | Qualitativo/ Entrevista | 68 mulheres transgênero | Descrever experiências de estigma e violência, e explorar estratégias de enfrentamento | Mulheres transgênero | Não informa | 7-A |
Li et al. 60 (2017) | Índia | Qualitativo/ Entrevista em profundidade e grupos focais. Quantitativo/ Estudo transversal | 11 hijras | Examinar as experiências de vitimização, assédio e violência entre HSH e hijras no estado de Maharashtra, especialmente após a reintegração do Código Penal Indiano (Seção 377) | HSH e hijras/ mulheres transgênero | 2013-2014 | 6-A |
Perez-Brumer et al. 15 (2017) | Peru | Qualitativo/ Entrevista em profundidade e grupos focais | 48 mulheres transgênero | Avaliar interseções entre marginalização social, multiníveis de estigma e vulnerabilidade ao HIV, bem como avaliar estratégias de resiliência comunitária empregadas pelas mulheres transgênero para acionar os apoios existentes e vincular as suas comunidades aos serviços de HIV | Mulheres transgênero | 2015 | 9-A |
CASP: Critical Appraisal Skills Programme; HSH: homens que fazem sexo com homens.
Tabela 2 Características da produção de conhecimento em estudos quantitativos sobre a relação entre estigma, discriminação e vulnerabilidade de mulheres transgênero ao HIV/aids, 2005-2018.
Referência (ano) | País | Método/ Desenho do estudo | Abrangência do estudo | Objetivos | População estudada | Ano de realização do estudo | Risco de viés |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Bockting et al. 41 (2005) | Estados Unidos | Quantitativo/ Estudo de intervenção | 181 mulheres transgênero | Apresentar relatório sobre a implementação e avaliação do seminário All Gender Health e mostrar dados sobre medidas importantes de saúde sexual que podem ajudar a aumentar a compreensão do contexto de risco de mulheres transgênero ao HIV/IST | Mulheres transgênero | 1998-2002 | Alto |
Sugano et al. 8 (2006) | Estados Unidos | Quantitativo/ Estudo transversal | 332 mulheres transgênero negras | Examinar a relação entre a exposição à transfobia e o risco de se envolver em relações anais receptivas desprotegidas | Mulheres transgênero negras | Não informa | Alto |
Sanchez et al. 6 (2010) | Estados Unidos | Quantitativo/ Estudo transversal | 60 mulheres transgênero | Comparar características individuais e comportamentos de risco entre HSH e mulheres transgênero na comunidade de House Ball em Nova Iorque | Mulheres transgênero e HSH | 2004 | Baixo |
Operario et al. 40 (2011) | Estados Unidos | Quantitativo/ Estudo transversal | 174 mulheres transgênero | Identificar fatores associados ao sexo anal desprotegido com parceiro sexual primário | Mulheres transgênero | Não informa | Alto |
Newman et al. 39 (2012) | Tailândia | Quantitativo/ Estudo transversal | 41 mulheres transgênero | Examinar e comparar comportamentos sexuais de risco e dados demográficos | Mulheres transgênero e HSH | Não informa | Alto |
Martins et al. 42 (2013) | Brasil | Quantitativo/ Estudo transversal | 304 travestis | Descrever o perfil sociodemográfico e comportamentos de risco para HIV | Travestis | 2008 | Moderado |
Boivin 43 (2014) | México | Quantitativo e Qualitativo | 150 transgênero, travestis e mulheres transexuais | Descrever as formas, os atores, os lugares de discriminação e o estigma sofridos em várias regiões metropolitanas do México | Mulheres transgênero, travestis, transgêneros, lésbicas, bissexuais e gays | 2011 | NA |
Kaplan et al. 38 (2016) | Líbano | Quantitativo/ Estudo transversal | 53 mulheres transgênero | Mensurar e interpretar determinantes demográficos, prevalência de HIV e comportamentos de risco | Mulheres transgênero | 2012 | Moderado |
Logie et al. 9 (2016) | Jamaica | Quantitativo/ Estudo transversal | 137 mulheres transgênero | Examinar fatores associados à infecção pelo HIV e testagem para HIV | Mulheres transgênero | 2015 | Baixo |
Stahlman et al. 7 (2016) | Costa do Marfim, Togo e Burkina Faso | Quantitativo/ Estudo transversal | 453 mulheres transgênero | Analisar os fatores que influenciam comportamentos sexuais arriscados e a infecção pelo HIV | Mulheres transgênero e HSH | 2012-2015 | Baixo |
Pinheiro-Júnior et al. 37 (2016) | Brasil | Quantitativo/ Estudo transversal | 304 mulheres trans | Identificar os fatores de risco associados à resistência ao teste anti-HIV | Mulheres trans | 2008 | Alto |
Rood et al. 35 (2018) | Estados Unidos | Quantitativo/ Estudo transversal | 61 mulheres transgênero | Avaliar a associação entre estressores distais e proximais ao risco sexual e aos comportamentos de testagem para HIV | Pessoas transgênero em geral (homens e mulheres) | 2014-2015 | Alto |
Magno et al. 21 (2018) | Brasil | Qualitativo/ Entrevistas em profundidade e Quantitativo/ Estudo transversal | 127 travestis e mulheres transexuais | Verificar a associação entre discriminação baseada no gênero e sexo anal receptivo desprotegido com parceiros sexuais estáveis e explorar as experiências de discriminação | Travestis e mulheres transexuais | 2014-2016 | Baixo |
HSH: homens que fazem sexo com homens; IST: infecções sexualmente transmissíveis; NA: não aplicável.
Para identificar como os trabalhos lidaram com a construção da variável de estigma ou discriminação, foram analisados 12 artigos exclusivamente quantitativos e dois com métodos mistos. Identificamos que oito deles trataram o fenômeno como “discriminação” (experiência, percepção etc.) 21,35,36,37,38,39,40,41, três artigos analisaram “estigma” (experiência, percepção etc.) 6,7,9, um estudo tratou o fenômeno de “homofobia” 42, um como “transfobia” 8 e um dos artigos com métodos mistos não utilizou o método quantitativo para avaliar a discriminação e o estigma 43. Muitos desses trabalhos não trouxeram reflexão teórica sobre a diferenciação do conceito de estigma e discriminação.
No que se refere ao risco de viés, observou-se que a maioria dos estudos (54%) apresentou risco elevado de viés 8,35,37,39,40,41 e apenas 31% foram classificados como baixo risco de viés 6,7,9,21. A seleção da amostra inadequada e a avaliação do desfecho dos estudos com critérios válidos foram os itens que mais contribuíram para a pontuação de viés nos trabalhos analisados. Em um estudo não foi possível aplicar a escala de viés, pois não apresentou elementos metodológicos quantitativos para a avaliação 43 (Figura 2) (Marterial Suplementar, Tabela S2: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/site/public_site/arquivo/suppl-e00112718portugues_3826.pdf).
As variáveis relacionadas ao estigma e à discriminação foram construídas com base em itens de escalas não validadas para a população de mulheres transgênero, algumas inspiradas em escalas anteriores de discriminação racial 40, percepção de estigma entre HSH 6 e homofobia 8,9, e outras foram criadas baseando-se em estudos anteriores com esta população ou valendo-se de revisão da literatura 7,21,35,36,41. Poucos estudos utilizaram apenas uma ou duas perguntas de percepção de discriminação 37,39 e um não detalhou 42. Entre os trabalhos que usaram itens para avaliar a discriminação ou o estigma, a maioria utilizou o coeficiente alfa de Cronbach para estimar o grau de confiabilidade do questionário 6,8,9,40, um utilizou o coeficiente de Kuder-Richardson 41, um usou análise fatorial confirmatória 9, um utilizou análise fatorial exploratória 7 e outro, a análise de classes latentes 21. Alguns não realizaram nenhuma dessas análises 35,36,38.
As técnicas de produção e análise de dados utilizadas nas pesquisas qualitativas foram variadas. As entrevistas (semiestruturada ou em profundidade) foram as mais empregadas 44,45,46,47,48,49,50,51,52,53,54,55,56, seguidas pela combinação de grupos focais com entrevistas 15,57,58,59,60,61,62. Predominou a utilização da análise temática como técnica de análise de dados qualitativos 5,15,44,46,48,50,52,55,62,63,64,65 (Tabela 1).
A avaliação do rigor metodológico, segundo os critérios CASP, foi classificada como B (moderado rigor metodológico) em quatro estudos 52,54,65,66. A análise de dados não rigorosa, os procedimentos éticos em pesquisa não explicitados na metodologia do estudo e a ausência de explicitação da interação entre pesquisador e os participantes em campo formam os itens que pontuaram negativamente e contribuíram para o moderado rigor metodológico (Tabela 1).
Observou-se com base na revisão que o estigma produz discriminação e violência em diferentes níveis: estrutural, interpessoal e individual, que podem ter um papel no quadro de vulnerabilidade individual, social e programática das mulheres transgênero ao HIV (Figura 3).
O estigma estrutural promove um contexto social completamente desfavorável às mulheres transgênero por meio da transfobia e discriminação 5,42,44,55,56,63,64. Em alguns países, principalmente naqueles com forte tradição religiosa, a transexualidade e a homossexualidade ainda são legalmente criminalizadas, como exemplificado em dois estudos: um conduzido na Malásia 46 e outro na Índia 60. Na Índia, a seção 377 do Código Penal indiano, conhecida como “Lei da Sodomia”, que criminaliza pessoas que fazem sexo com penetração não vaginal, foi reativada pela suprema corte em 2013, mas revogada em setembro de 2018 60,67. Nesse país, o casamento e a procriação, considerados critérios-chave para alcançar o respeito e a normatização heterossexual, parecem justificar o estigma e a violência contra grupos que não se conformam às identidades de gênero hegemônicas 48. No Líbano, o encarceramento policial por conta da identidade ou expressão de gênero também tem sido relatado 38.
Mesmo em países liberais do ponto de vista legal como: os Estados Unidos 41,44,53,54, o México 51, o Japão 68 e o Brasil 42, as mulheres transgênero ainda sofrem discriminação em espaços públicos, e possuem muita dificuldade em readequar o nome em consonância com a sua identidade de gênero 12,54,63.
O estigma familiar e social foi encontrado associado ao trabalho sexual 7. E também reportado como uma barreira importante para o acesso das mulheres transgênero à escolaridade 43,51,56 e ao emprego formal 5,12,43,46,56,63, que as direciona muitas vezes a uma situação de marginalização socioeconômica 36,61,69 e entrada no mercado do trabalho sexual 43,46,56.
No que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde, diversos trabalhos têm documentado que o estigma e a discriminação podem representar severas barreiras para as mulheres transgênero 12,39,43,46,48,53,54,57,58,59,62,63,64,66,69,70. Muitas delas evitam a ida aos serviços de saúde por antecipar a discriminação 59,65 e outras têm o acesso negado mesmo em serviços públicos 46,52. Estudos que analisam o uso do sistema público de saúde em alguns países indicam que elas preferem rejeitar este cuidado e pagar por serviços privados ou se automedicar, por conta do estigma 43,48,49. A ausência de acesso a hormônios 12,46,54 e procedimentos cirúrgicos para a modificação corporal e adequação de gênero 49 também é identificada na literatura como barreira para uma vida saudável.
O estigma e a discriminação também promovem barreiras no acesso aos serviços de cuidado e prevenção de HIV/aids, fazendo com que muitas mulheres transgênero evitem os serviços públicos de saúde por conta de experiências anteriores de discriminação e de maus-tratos 46. Nessa perspectiva, muitos estudos relatam as dificuldades das mulheres transgênero no acesso a serviços de testagem e aconselhamento de HIV 46,59, falta de acesso às informações de prevenção 58,63, falta de confidencialidade dos resultados dos testes de HIV em serviços públicos de saúde 12,46 e pouco acesso ao preservativo 56. A autopercepção de discriminação foi associada no Brasil com a resistência à testagem para HIV 37,61. E mesmo aquelas já testadas para HIV enfrentaram mais estigma ao acessar os serviços de testagem e manejo do HIV, quando comparadas àquelas que nunca foram testadas. A estigmatização também pode dificultar a retenção das mulheres transgênero nos serviços de cuidado ao HIV 9,69.
A experiência das mulheres transgênero tem sido marcada por um contexto de violência e exclusão social em várias regiões do mundo. As violências física 9,12,38,41,43,44,45,48,49,55,56,58, verbal 12,41,43,44,45,48,55,56, simbólica 43,45,64, emocional 12 e sexual 9,36,38,41,48,50,53,54,56,63,66,68 têm sido vastamente documentadas. Além disso, assassinatos de mulheres transgênero em vias públicas são documentados na literatura como efeito do estigma 43.
A experiência de exclusão e violência geralmente inicia no seio da família por meio da rejeição familiar 12,36,38,43,45,48,49,50,55,56,57,58,61,63,65,66, agressão física e sexual por membros da família 55,68, e expulsão de casa 45,48,56,58, fazendo com que algumas delas terminem morando nas ruas 36,48. Os abusos físico e sexual têm sido relatados como fatores associados ao risco de HIV entre mulheres transgênero 9.
A exclusão social vivenciada por conta do contexto de estigma pode provocar intenso deslocamento geográfico 54 e o ingresso no trabalho sexual 5,48,50,51,53,54,56,57,58,62,63. O trabalho sexual em condições precárias e a troca de sexo desprotegido por mais dinheiro são relatados na literatura como uma das motivações para o sexo anal desprotegido 56.
Essas experiências também se estendem a outras relações interpessoais ao longo da vida de mulheres transgênero, como, por exemplo, a exclusão da comunidade de gays 12,63,68, a rejeição de amigos 63, a agressão de parceiros 48,55,62, a agressão policial 12,43,48,55,59 e a agressão por parte de vizinhos 55.
A experiência de discriminação relacionada ao gênero tem sido associada a comportamentos sexuais de risco para a infecção pelo HIV nessa população 35, tais como o sexo anal receptivo desprotegido 8,21. Além disso, muitos estudos relatam a discriminação das mulheres transgênero por profissionais de serviços de saúde 15,39,43,46,48,52,53,57,58,59,62,63,64,66, que geralmente não utilizam o nome social feminino 4,37,51,55,57,59,62 ou o pronome feminino 15 e as deixam esperar por longos períodos pelo atendimento 43,52.
A conjunção do estigma interpessoal e estrutural pode provocar diversos desfechos negativos na vida das mulheres transgênero, como, por exemplo, o isolamento social 48,65 e o medo da discriminação 44,52,53,57,59,62,64,66. A expectativa de rejeição relacionada ao gênero foi associada a comportamentos sexuais de risco para infecção pelo HIV 35.
As experiências de discriminação são relatadas como elementos importantes para a internalização do estigma, o que pode provocar uma diversidade de estresse psicossocial 48, como a baixa autoestima 48,56,68, e comprometer a saúde mental com ocorrência de depressão 6,41,46,58,68, ideação suicida 48,56 e tentativa de suicídio 41,46,56.
O uso de álcool 9,41,57,58,62,68 e outras drogas 5,9,41,58,62 é relatado em contextos em que mulheres transgênero vivenciam altos níveis de discriminação. E o uso dessas substâncias antes das relações sexuais 9, como uma prática que aumenta o risco de infecção pelo HIV, principalmente por meio do sexo anal desprotegido 6,40,46.
O estigma e a discriminação são identificados como fatores que podem influenciar a vulnerabilidade ao HIV. Um estudo mostrou que o estigma relacionado à identidade transgênero foi maior entre as mulheres transgênero vivendo com HIV do que entre as não infectadas 9. A relação entre estigma, discriminação e infecção pelo HIV pode ser explicada pela baixa capacidade de negociação do preservativo e o consequente sexo anal desprotegido 5,6,12,21,48. Além disso, baixa autoestima e depressão, provocadas pela intensa estigmatização das identidades transgênero, têm sido relatadas como importantes motivos para o sexo desprotegido 56.
Alguns trabalhos sugerem que o sexo anal desprotegido é praticado para a validação do status feminino diante do parceiro homem 5,46, principalmente quando se trata de parceiros fixos, como namorados ou maridos 21. Um estudo qualitativo na Colômbia mostrou que apesar de as mulheres transgênero falarem que usam preservativo em todas as relações, o sexo desprotegido significava realização e sucesso diante de seus parceiros estáveis ou maridos. Nesse contexto, o risco seria ainda maior nas relações estáveis, por conta do papel sexual “ativo” (sexo anal insertivo) desempenhado pelo parceiro, muitas vezes idealizado por algumas das mulheres transgênero naquele país 49.
O exame dos artigos analisados permite destacar que o estigma relacionado à identidade de gênero, bem como a discriminação, a violência e a transfobia, têm sido apontados como elementos estruturantes da vulnerabilidade ao HIV/aids entre mulheres transgênero. O estigma e a discriminação foram observados em todos os lugares em que as pesquisas foram realizadas, tanto nos países de média e baixa rendas quanto nos países de alta renda. Apesar desse quadro, alguns trabalhos documentaram formas de resistência das mulheres transgênero por meio do ativismo social, participação em grupos de apoio e resiliência 48,56,70.
Na última década, a produção científica sobre o estigma e discriminação cresceu de maneira exponencial, englobando diversas áreas de investigação, tornando-se cada vez mais específica e complexa 31. No que diz respeito às abordagens metodológicas dos estudos encontrados, percebe-se que a maioria foi de abordagem qualitativa. Uma hipótese plausível para esse fato é a complexidade de operacionalização do conceito de estigma em estudos quantitativos, em função da diversidade de definições de estigma. Os estudos quantitativos aqui revisados tentaram resolver esse problema usando: escores de variáveis relacionadas à discriminação pela identidade de gênero (no trabalho, nos serviços de saúde, dificuldade em conseguir habitação) 8,36, por análise fatorial 7 ou por análise de classes latentes por intermédio da inclusão de variáveis específicas de discriminação (na família, com amigos, com vizinhos, nos serviços de saúde, agressão verbal), pela adaptação de escalas direcionadas à aferição de homofobia 9 ou diretamente pela autopercepção de discriminação 37.
Os estudos com abordagem quantitativa foram marcados pela ênfase na relação entre experiências de estigmatização e risco para infecção pelo HIV. Vale a pena relembrar que as compreensões iniciais a respeito da epidemia de aids (1981-1984) foram marcadas principalmente pelo enfoque biomédico, epidemiológico e comportamentalista 26, o que promoveu a identificação e estigmatização de subgrupos populacionais que apresentavam uma maior probabilidade de ter pessoas com a doença, em comparação com a população em geral 71. Todavia, os estudos epidemiológicos aqui revisados parecem ir além de uma relação meramente comportamental, pois, ao partir de uma reflexão em torno do conceito de estigma, colocam em xeque questões estruturais e relacionais que afetam dimensões analíticas do conceito de vulnerabilidade, fazendo um deslocamento das questões exclusivamente individuais, tais como comportamentos, atitudes e práticas de risco, para a atenção aos aspectos sociais 26.
Os estudos qualitativos de cunho sociocultural destacaram-se por trazer contribuições significativas à análise do estigma e da vulnerabilidade ao HIV, pois não se restringiram à dimensão dos comportamentos individuais, mas ampliaram o leque analítico para questões relacionadas aos processos de rotulagem, distinção e exclusão, que promovem a sustentação do estigma como atributo profundamente depreciativo. Além disso, baseando-se em análise de narrativas e relações sociais cotidianas esses estudos puderam relacionar o processo de estigmatização à vulnerabilidade social e programática de mulheres transgênero ao HIV.
Segundo Link & Phelan 72, o estigma existe quando um conjunto de componentes inter-relacionados converge. O primeiro deles se refere ao fato de que as pessoas distinguem e rotulam as diferenças humanas por meio de uma substancial simplificação das diferenças, como se não houvesse uma gradação entre as diversas categorias. Nesse sentido, geralmente o dualismo entre as categorias prevalece: cis/trans, gay/hetero, negro/branco etc. Uma importante característica desse componente é que os atributos considerados proeminentes diferem drasticamente de acordo com o tempo e o lugar. O segundo componente envolve a associação das diferenças humanas - que são rotuladas - com características negativas; a conexão entre estas duas propriedades conforma o que os autores denominam de estereótipo. O terceiro componente do estigma ocorre quando os rótulos sociais promovem a separação entre duas categorias de pessoas: “nós” e “eles”.
Desse modo, observamos que a estigmatização das mulheres transgênero produz discriminação, que se materializa pela exclusão social e das mais variadas formas de violência. Os efeitos do estigma podem estar relacionados com desfechos psiquiátricos (como ideias suicidas e depressão) e uso de substâncias psicoativas. Além disso, a exclusão social pode estar relacionada com a baixa escolaridade e com as barreiras no acesso ao mercado de trabalho, que, por sua vez, podem influenciar a entrada dessas pessoas no mercado sexual e a adoção de comportamentos arriscados, como, por exemplo, o uso de substâncias injetáveis sem orientações médicas e o sexo anal desprotegido com parceiros sexuais fixos, casuais ou clientes.
Verificamos também que, no nível individual, as mulheres transgênero enfrentam um grande isolamento social, agravado pelo medo da rejeição e pelo desconforto ou insegurança vivenciada nos espaços públicos, produzindo altos níveis de depressão e suicídio, como observado em outros estudos 4,73,74. O uso de substâncias psicoativas também está muito relacionado aos comportamentos de risco para a infecção pelo HIV 1,75. Um estudo realizado em Nova Iorque, Estados Unidos, produziu fortes evidências de que a discriminação baseada no gênero, entre as jovens mulheres transgênero, aumentava o risco de depressão e de comportamentos sexuais arriscados, os quais, por sua vez, elevavam a probabilidade de infecção por HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis 74.
No nível estrutural, os trabalhos mostram que o estigma, por intermédio da discriminação, pode afetar o acesso das mulheres transgênero aos serviços de saúde, bem como aos serviços de testagem e cuidado ao HIV/aids, fato que é corroborado por outros estudos que não focam especificamente na relação HIV e estigma 76,77. Na Argentina, um estudo realizado observou que 40,7% das mulheres transgênero relataram evitar o uso dos serviços de saúde por causa de sua identidade de gênero. Esse estudo verificou que fatores relacionados ao processo de estigmatização estavam associados com esse fenômeno, como, por exemplo, o relato de ter tido experiência de discriminação no serviço de saúde por parte dos profissionais ou por outros pacientes, e ter sido agredida pela polícia 78.
A diversidade de medidas de estigma e de discriminação nos estudos quantitativos pode dificultar a produção de futuras metanálises acerca do impacto do estigma sobre o risco de infecção pelo HIV. Outra questão importante é a diversidade de uso do conceito de estigma e de discriminação nesse campo de estudos. Desse modo, sugerimos a construção, padronização e validação de escalas que meçam o estigma, em suas diversas faces (individual, interpessoal e estrutural), e a discriminação (como ação ou efeito do estigma) em estudos quantitativos. Já no que diz respeito aos estudos qualitativos, observamos que esta metodologia pode melhor se adequar para análises que pretendam abordar a relação entre as categorias de estigma, discriminação e a vulnerabilidade ao HIV. Para os estudos quantitativos, deve-se também considerar os processos de amostragem, tendo em vista que a seleção por procedimentos não propabilísticos constitui um dos elementos responsáveis pelo risco de viés elevado dentre os trabalhos analisados. Portanto, sugerimos que em estudos futuros sobre a temática, o tamanho da amostra e a seleção dos participantes devam ser adequados para a comparação entre os grupos e controle de confundimentos.
Nos estudos qualitativos, o aprofundamento e o rigor analítico são procedimentos que apresentaram limitações nos trabalhos analisados. Nas pesquisas qualitativas, sugerimos o maior aprofundamento analítico e adoção de diferentes métodos de compreensão do estigma e da vulnerabilidade, a exemplo da triangulação de métodos.
Este estudo apresenta limitações. A primeira refere-se a não realização de metanálise com dados dos estudos quantitativos, tendo em vista a heterogeneidade das variáveis utilizadas nos mesmos. Além disso, há a dificuldade em sintetizar os resultados de trabalhos com diferentes adordagens metodológicas, haja vista que a maioria das diretrizes de condução de revisão sistemática não considera a integração de estudos qualitativos e quantitativos em um mesmo trabalho. Esta revisão não incluiu também a totalidade da literatura cinzenta proveniente de um conjunto relevante de produção científica de organismos internacionais publicado virtualmente, fora da abrangência dos periódicos científicos com revisão por pares. Apesar de tais limitações, adotamos os procedimentos metodológicos consistentes, realizados por revisores independentes, e avaliamos os estudos que atenderam aos critérios de elegibilidade, no intuito de reduzir a possibilidade de viés na presente revisão.
Por intermédio deste estudo, observamos que o estigma e a discriminação estão relacionados de diversas maneiras à vulnerabilidade - individual, social ou programática - ao HIV/aids. Faz-se necessário entender como o estigma e a discriminação são operados na sociedade para produzir e reproduzir iniquidades sociais e de saúde. A compreensão da história do estigma e de suas consequências para os indivíduos e comunidades afetadas, como a discriminação, pode nos ajudar a desenvolver melhor medidas para combatê-lo ou reduzir os seus efeitos 79. Desse modo, sugere-se que ações de saúde e de prevenção ao HIV não se limitem aos aspectos comportamentais e de práticas de risco, mas que avancem na promoção de uma cultura de não-discriminação e respeito às diferenças de gênero.