versão impressa ISSN 1809-2950
Fisioter. Pesqui. vol.21 no.3 São Paulo jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.590/1809-2950/65021032014
O parto é a etapa conclusiva da gestação, podendo ser realizado por via vaginal ou procedimento cirúrgico na via transabdominal1. As morbidades podem ocorrer independentemente da via de parto, no entanto, a frequência dessas complicações é significativamente maior na cesárea. Dentre as morbidades desse tipo de parto, a dor no local da incisão cirúrgica é característica comum nos primeiros dias de pós-operatório.
A continuidade da dor pós-cesárea é decorrente das reações inflamatórias subsequentes envolvidas no processo traumático sofrido2. Isso influencia negativamente a mulher no puerpério, pois apresenta difícil recuperação, retarda a sua mobilidade precoce e contribui para que haja danos a ela e à sua relação inicial com o recém-nascido3, além de prejudicar o aleitamento pela inibição do hormônio ocitocina, e o próprio posicionamento para amamentar4.
A dor apresenta uma dimensão subjetiva e sócio-emocional e, em virtude disso, é relevante a busca de um atendimento integral e humanizado à mulher durante o puerpério pós-cesariana e condutas não farmacológicas no manejo da dor que minimizem possíveis riscos à sua saúde5 considerando os efeitos adversos que a medicação pode ocasionar6. A estimulação elétrica nervosa transcutânea (TENS) é o recurso não farmacológico mais utilizado na prática clínica fisioterapêutica para o manejo da dor. Trata-se de uma terapia segura, de baixo investimento, de fácil aplicação e relativamente confortável ao paciente. É indicada para o alívio imediato da dor sem produzir efeitos adversos, além de diminuir a utilização de fármacos, tempo de internação hospitalar e promover mobilidade precoce7 - 9.
Os mecanismos fisiológicos de analgesia da TENS ainda não estão completamente elucidados. Sabe-se que seus impulsos estimulam as fibras mielinizadas do tipo A, que excitam os interneurônios do corno posterior da medula espinal e inibem os impulsos nociceptivos das fibras A-delta e C. Este mecanismo proposto por Melzack e Wall em 1965 é classicamente conhecido como Teoria das Comportas. Outro mecanismo é a liberação de diferentes opioides endógenos, tanto na aplicação de alta (tipo δ) como na de baixa (tipo µ) frequência, que se ligam a receptores para bloquear a transmissão do estímulo nociceptivo7 , 10.
A efetividade da TENS tem sido estudada em diversas condições sintomatológicas, e a sua evidência parece depender das características da dor11, afecção e parâmetros de modulação da frequência de pulso7. Em relação à dor pós-operatória, via cesariana, a TENS convencional apresentou efeito analgésico significativo mesmo após uma hora de aplicação5. Hollinger12 avaliou 72 mulheres no pós-parto de cesariana e encontrou que o grupo que utilizou a TENS de alta frequência no puerpério imediato obteve redução significativa no consumo da medicação analgésica no pós-operatório em relação ao grupo controle. Apesar desses estudos confirmarem a efetividade da TENS convencional, pouca atenção tem sido dada para a modulação da frequência de pulso.
A utilização de frequências altas ou baixas implica em ações de diferentes mecanismos analgésicos, como a teoria das comportas e a liberação de opioides, respectivamente7 , 10. Como a dor pós-operatória via cesariana tem características necessariamente agudas, espera-se que a TENS de alta frequência apresente efeitos analgésicos superiores a TENS de baixa frequência. O presente estudo teve por objetivo avaliar o efeito analgésico da modulação da TENS em alta (100 Hz) e baixa (4 Hz) frequência na dor em puérperas pós-cesárea.
O tamanho da amostra foi calculado com base em estudos prévios, considerando-se uma mínima diferença clinicamente importante (10% a partir da avaliação inicial) (SD=2.2)9 na intensidade da dor entre as condições pré e pós-tratamento. A probabilidade de erro tipo 1 (α) ou tipo 2 (β) foram 0,05 e 0,20, respectivamente. Considerando possíveis perdas amostrais em 15%, o tamanho da amostra final foi estimado em 39 pacientes.
Foram incluídas puérperas com idade ≥18 anos, dor presente no local da incisão cirúrgica ≥3 na Escala de Categoria Numérica (Number Rating Scale - NRS), alfabetizadas, orientadas quanto ao tempo e ao espaço, com raquianestesia antes do procedimento cirúrgico, incisão tipo Pfannestiel, ausência de patologia geniturinária, primíparas ou multíparas. Pacientes com alterações de sensibilidade, doenças desmielinizantes, traumatismo raquimedular, hemorragia, infecção, febre, complicações anestésicas, hipertensão arterial, intercorrências mamárias, irritação ou intolerância à aplicação da TENS foram excluídas do estudo. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética local e todas as voluntárias assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Ensaio clínico randomizado, simples cego, placebo-controlado, desenvolvido na Santa Casa de Misericórdia e no Hospital Estadual Dirceu Arcoverde (HEDA) no município de Parnaíba-PI. As pacientes foram distribuídas aleatoriamente, por meio de um software, em blocos de três grupos de tratamento: G100 (TENS 100 Hz; n=13); G4 (TENS 4 Hz; n=12); GP (TENS Placebo; n=9).
A aleatorização e alocação, ocultas em envelopes opacos e numerados, foram realizadas por um pesquisador não participante da pesquisa. O acesso aos envelopes pelo pesquisador responsável pela intervenção era permitido somente no momento da aplicação do protocolo, após o preenchimento dos critérios de elegibilidade e da concordância em participar do estudo. O fluxograma está apresentado na Figura 1. As características das voluntárias estão descritas na Tabela 1.
Variável | G100 (n=13) | G4 (n=12) |
GP (n=9) |
|||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |
Idade (anos) | ||||||
18–25 | 7 | 53,8 | 8 | 66,8 | 4 | 44,5 |
26–33 | 4 | 30,7 | 2 | 16,6 | 3 | 33,3 |
34–42 | 2 | 15,5 | 2 | 16,6 | 2 | 22,2 |
Estado civil | ||||||
Casada Solteira União Consensual |
7 4 2 |
53,8 30,7 15,5 |
4 6 2 |
33,3 50,0 16,7 |
2 7 0 |
22,2 77,8 0 |
Escolaridade Fundamental incompleto Fundamental completo Médio incompleto Médio completo Superior incompleto Superior completo |
6 2 3 1 0 1 |
46,1 15,4 23,1 7,7 0 7,7 |
2 2 1 6 1 0 |
16,7 16,7 8,3 50,0 8,3 0 |
1 1 4 2 1 0 |
11,1 11,1 44,4 22,2 11,1 0 |
Idade Gestacional Pré-termo A termo Paridade Primípara Multípara Número de abortos anteriores Nenhum Um ou dois abortos |
10 3 5 8 11 2 |
76,9 23,1 38,4 61,6 84,6 15,4 |
7 5 4 8 10 2 |
58,3 41,7 33,3 63,7 83,3 16,7 |
7 2 6 3 0 0 |
77,7 22,3 66,7 33,3 0 0 |
G100: TENS 100 Hz; G4: TENS 4 Hz; GP: Placebo
A avaliação inicial foi realizada respeitando um intervalo mínimo de oito horas após o parto para evitar interferências agudas da recuperação pós-anestésica. Todas as participantes foram esclarecidas sobre os procedimentos a serem realizados e em seguida, foram coletados os dados sócio-demográficos e obstétricos por meio de um questionário e dados contidos no prontuário hospitalar.
As participantes foram posicionadas em decúbito dorsal e permaneceram em repouso durante todo o experimento para que não houvesse intercorrências que interferissem nos resultados. A TENS foi aplicada utilizando-se o equipamento TENSYS (KLD(r) Biosistemas, São Paulo) por meio de dois canais, onde para cada participante eram destinados quatro eletrodos de borracha siliconada (5x3 cm) para uso individual, totalizando 136 eletrodos, que foram posicionados de modo cruzado, um centímetro acima e abaixo da incisão cirúrgica6. Para aumentar a aderência da pele à condução do estímulo elétrico foram utilizados gel e fitas hipoalergênicas.
Nos grupos G100, G4 e GP foi aplicada TENS com modulação de frequência alta (100 Hz), baixa (4 Hz) e placebo (aparelho desligado) respectivamente. A duração de pulso foi padronizada a 100 µs e a intensidade de acordo com o limiar sensorial de cada paciente, caracterizado por uma forte parestesia, confortável com mínima ou ausência de atividade muscular. O tempo total da aplicação da TENS foi de 30 minutos para cada voluntária, sendo todo o protocolo realizado em uma única sessão. Para minimizar os efeitos da habituação sensorial, as voluntárias eram questionadas em intervalos regulares sobre a sensação de forte parestesia. Em caso de diminuição, o pesquisador responsável aumentava a amplitude da corrente conforme a tolerância das participantes.
A intensidade da dor foi avaliada por meio da NRS antes, imediatamente após e em intervalos de 20 minutos (20, 40 e 60') após o período de eletroestimulação. A NRS é uma escala unidimensional para avaliação da dor, de fácil aplicação e entendimento, onde o grau 0 significa ausência de dor e o grau 10 representa um grau de dor extremo5 , 13.
Pacientes que receberam prescrição de medicamento antiinflamatório ou analgésico foram submetidas aos protocolos de avaliação e intervenção após seis e oito horas, respectivamente, para minimizar possíveis interações entre os efeitos dos fármacos e da TENS. O pesquisador responsável pela avaliação, assim como as pacientes, desconhecia em qual protocolo de tratamento cada participante foi alocada.
A normalidade e a homocedasticidade dos dados foram verificadas pelos testes de Shapiro-Wilk e Levene, respectivamente. Realizou-se a análise descritiva dos dados para caracterização sócio-demográfica e obstétrica das voluntárias. Para identificar diferenças intragrupos entre os valores pré e pós-tratamento, foi utilizado o teste de Friedman para medidas repetidas. Para análise intergrupos, foi calculada a diferença entre os valores pré e pós-tratamento da NRS e posteriormente utilizado o teste de Mann-Whitney. Todos os dados foram analisados por meio do Software GraphPad Prism 5(r) e o nível de significância adotado foi de p<0,05.
A análise dos dados intragrupos demonstrou diminuição da NRS entre os valores pré e pós-tratamento somente para o grupo G100 (p<0,001) (Figura 2). Os resultados intergrupos mostraram uma diminuição significativa da NRS somente entre os grupos G100 - G4 e G100 - GP (p<0,05) (Figura 3). Em relação aos intervalos pós-tratamento, o grupo G100 apresentou diminuição significativa da NRS durante os intervalos de 20, 40 e 60' após o período de pré-tratamento (p<0,05). O grupo G4 apresentou diminuição significativa somente nos intervalos de 40 e 60'. Para o grupo GP, esta diferença ocorreu somente no intervalo de 60' (Figura 4). Não foram relatados efeitos adversos ou reações colaterais durante e após a aplicação dos protocolos de tratamento.
O objetivo dessa investigação foi avaliar o efeito analgésico da modulação da TENS em alta (100 Hz) e baixa (4 Hz) frequência na dor pós-cesárea. A diminuição na NRS apontou para uma menor percepção da dor pós-operatória, distinta da situação pré-tratamento, indicando que a dor aguda pós-cesárea pode ser atenuada pela eletroterapia convencional.
Os procedimentos cirúrgicos causam danos tissulares gerando um processo inflamatório, seguido de liberação dos mediadores químicos e dor14. No que diz respeito ao alívio da dor pós-parto, a TENS vem se mostrando eficaz15, sendo válida a sua indicação para a analgesia pós-operatória e redução no consumo de fármacos16, contribuindo, assim, para a humanização no período puerperal.
Neste estudo foram utilizados dois pares de eletrodos colocados acima e abaixo da incisão cirúrgica, técnica bipolar cruzada, onde se obtém uma concentração da corrente no local da dor5. Este fator foi relevante para obtenção dos bons resultados após a aplicação da TENS, já que o posicionamento dos eletrodos é importante para estimular as fibras Aβ que entram no mesmo segmento espinal que as fibras nociceptivas associadas com a origem da dor16 , 17. Nos grupos que receberam eletroestimulação (G100 e G4), a duração de pulso foi padronizada a 100 μs, o que pode ser observado em outros estudos18 - 20.
Em nossa pesquisa, os resultados obtidos pela NRS no G100 mostraram redução significativa da dor após a intervenção imediata. O mesmo foi ratificado por Melo et al. 9, que avaliou 15 puérperas pós-cesariana submetidas à TENS de alta frequência (100 Hz e 50 μs) e 15 ao tratamento placebo (aparelho desligado) por 50 min, sendo verificada uma redução significativa da dor apenas no grupo de 100 Hz. Smith et al.21 também avaliaram 18 mulheres no pós-parto de cesariana, divididas em dois grupos, um experimental com TENS de alta frequência (85 Hz e 80 μs) e um placebo. Seus achados demonstraram redução significativa da dor superficial e ao redor da sutura cirúrgica apenas no grupo experimental.
Pitangui et al.22 avaliaram a resposta da TENS de alta frequência (100 Hz e 75 μs) após o parto vaginal com episiotomia e obtiveram resultados positivos para o grupo que utilizou a eletroestimulação no tratamento imediato e uma hora após a sua aplicação em comparação ao grupo controle. Outra pesquisa23 obteve resposta positiva com o uso da TENS de alta frequência (90 Hz; 90 μs) no controle da dor durante o trabalho de parto, sugerindo que sua aplicação desse recurso em suas fases iniciais retarda a necessidade de técnicas adicionais de analgesia.
Em relação a outros procedimentos cirúrgicos, DeSantana et al. 24 observaram analgesia satisfatória em pacientes submetidos à herniorrafias inguinais que utilizaram a TENS (100 Hz; 50 µs) durante 60 minutos no pós-operatório. Segundo esses autores, a analgesia proporcionada pela TENS de alta frequência não advém apenas pela Teoria das Comportas, mas também pela ativação do sistema descendente de analgesia (ativação dos receptores opioides do tipo δ), o que explicaria, em nossa pesquisa, a analgesia prolongada após o término de aplicação da TENS nos intervalos 20, 40 e 60'.
Na literatura, são escassos estudos com a TENS de baixa frequência em puérperas pós-cesárea, o que pode ser explicado pelas características agudas da dor, prevalecendo o uso da TENS de alta frequencia, mas em nossos resultados no G4 houve redução significativa da dor após 40 e 60' da aplicação da TENS demonstrando que a ação analgésica nesse grupo não foi imediata, porém perdurou por um período de tempo. A estimulação elétrica produzida pela TENS de baixa frequência pode atuar na ativação da substância cinzenta periventricular, a qual faz parte do sistema hormonal que ativa neurônios inibitórios liberadores de endorfina, e esse efeito pode perdurar por horas após o término da estimulação25 , 26. Nos 20' pós-tratamento não houve redução significativa da dor. Talvez a concentração de opioides (tipo μ) nos intervalos de tempo analisados não tenha sido suficiente para saturar seus receptores e bloquear a transmissão nociceptiva.
Os resultados obtidos pela NRS no GP mostraram redução significativa da dor após a quarta avaliação (60'), o que pode ser explicado pela formação e liberação de endorfinas pelo córtex cerebral devido à expectativa da puérpera pelo tratamento2. Como o puerpério é um momento onde a mulher encontra-se fragilizada, a redução da dor pode ter ocorrido devido à atenção que foi dada à sua queixa durante todo o período de avaliação e à alternativa de resolvê-la sem prejuízos a ela e ao recém-nascido, interferindo na sua percepção dolorosa27 , 28.
Não houve dificuldade na aplicação e entendimento da NRS, apresentando-se assim com boa aceitação como escala unidimensional, o que também foi observado em outra pesquisa13. Ao final do experimento, todas as participantes do grupo placebo receberam tratamento com TENS de 100 ou 4 Hz.
A dor pós-parto apresenta-se como fator limitante à mobilidade da puérpera, ao autocuidado e à atenção ao recém-nascido. A humanização nesse período visa reduzir os riscos no processo de sua recuperação funcional. Como a TENS vem se mostrando benéfica no alívio desta dor, observa-se a importância da implementação deste recurso no tratamento da puérpera pós-parto cesárea.
O efeito analgésico da TENS no pós-operatório de cesariana depende da parametrização de escolha. A modulação de alta frequência, e não de baixa, é eficaz no tratamento da dor pós-cesárea.