versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.3 São Paulo mar. 2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190047
Desde 1980, as sociedades médicas americanas American College of Cardiology (ACC) e American Heart Association (AHA) vem incorporando e adaptando, por meio de métodos sistemáticos, evidências científicas em recomendações práticas para aprimorar condutas na prevenção e tratamento de doenças cardiovasculares. Essas diretrizes se tornaram a base atual das condutas em cardiologia e utilizadas por muitas sociedades, que as adaptam de acordo com suas realidades regionais.1
Em 2006, as AHA/ACC, em conjunto com a Heart Rhythm Society (HRS), publicaram a primeira diretriz para o manejo de pacientes com arritmias ventriculares e para prevenção da morte súbita (MS). Em 2017, as mesmas sociedades se reuniram para atualizar o documento inicial, publicado em outubro de 2018.2,3
Apesar dos inúmeros avanços no conhecimento para estratificação do risco, prevenção e tratamento das patologias que levama a MS, muitas lacunas em seu entendimento ainda permanecem. Dentre as várias questões levantadas pelo grupo de estudo da última revisão, duas foram tratadas por um comitê independente e publicadas recentemente em um documento adicional.4
Uma das questões revisadas e motivo desse editorial refere-se ao papel do estudo eletrofisiológico (EEF) na estratificação de risco de pacientes assintomáticos com síndrome de Brugada (SBr).
A SBr foi descrita em 1992 em indivíduos com o coração estruturalmente normal que foram recuperados de parada cardíaca por fibrilação ventricular e que apresentavam aspectos eletrocardiográficos singulares, caracterizados por distúrbio de condução pelo ramo direito e elevação persistente do segmento ST nas derivações V1 - V3.5
Ao longo dos últimos 25 anos, inúmeros estudos clínicos revelaram que a SBr é uma doença geneticamente determinada, que ocorre em 1 entre 2.000 a 10.000 indivíduos com coração aparentemente normal. O risco de MS é reconhecidamente alto nos pacientes que já apresentaram síncope arrítmica ou foram recuperados de parada cardíaca. Existe consenso de que o implante do cardioversor e desfibrilador automático (ICD) é o método mais efetivo para evitar a MS nesses pacientes.6
Por outro lado, o risco de MS é aparentemente baixo nos indivíduos com SBr assintomáticos, o que torna difícil, na prática clínica, a tomada de decisão de indicação do implante do CDI nesses indivíduos. Além disso, a maioria desses pacientes são jovens e em risco de recebem choques inapropriados, terem problemas técnicos com os geradores e eletrodos ao longo dos anos.7
Vários aspectos clínicos, familiares, eletrofisiológicos e genéticos têm sido estudados tentando determinar o risco de MS nos indivíduos assintomáticos com SBr e que poderiam se beneficiar com o implante precoce do CDI. No entanto, a capacidade discriminatória desses métodos permanece controversa.6,8
A indução de taquicardia ventricular sustentada (TVS) pela estimulação ventricular programada (EP) tem sido utilizada por vários anos para identificar os pacientes em risco de ocorrência espontânea de TVS/fibrilação ventricular (FV) em pacientes com cardiopatias estruturais, nos quais haveria justificativa para o implante profilático do CDI.2,3 Essa conduta baseou-se na eficácia do método em reproduzir TVS clínicas no ambiente do laboratório de eletrofisiologia.9
Observações clínicas revelaram que a capacidade EP em reproduzir arritmias ventriculares, em particular a TVS, é muito alta na fase crônica do infarto do miocárdio, menor nas cardiopatias não isquêmicas, e praticamente nula nas canalopatias.2,3,9 Esse comportamento distinto deve-se às características do substrato arritmogênico das arritmias ventriculares sustentadas, que nas cardiopatias estruturais depende de reentradas em substratos anatômicos estáveis, na maioria representados por cicatrizes provocadas pelas doenças. Condições que provoquem cicatrizes miocárdicas densas, entremeadas por canais de tecido miocárdico viável, favorecem a ocorrência de TVS reprodutíveis; ao contrário, a EP apresenta baixa reprodutibilidade nas condições em que essas características não estão presentes.9
Assim, a sugestão inicial do uso da EP para estratificação de risco de MS em indivíduos com SBr causou surpresa aos eletrofisiologistas tradicionais,10 uma vez que a síndrome era considerada até então uma canalopatia que não apresentava substrato anatômico nas avaliações pela ressonância nuclear magnética com gadolíneo e realce tardio. Estudos posteriores, revelaram que os pacientes com SBr apresentam substrato arritmogênico caracterizado, no mapeamento eletrofisiológico invasivo, por potenciais elétricos tardios, identificados predominantemente nas fibras miocárdicas subepicárdicas da via de saída do ventrículo direito.11
Em alguns casos, foi possível relacionar essas características elétricas com alterações anatômicas persistentes,12 mas na sua maioria, as alterações eletrofisiológicas são transitórias, moduladas ou induzidas por condições hormonais, autonômicas, metabólicas e medicamentosas.6
Isso poderia explicar por que indivíduos com SBr tipo 1 espontâneo e persistente apresentam maior risco de eventos em comparação com aqueles em que o padrão de SBr ocorre ocasionalmente.5 A justificativa seria que nos primeiros, o substrato arritmogênico mais extenso e estável, perceptível até pelo ECG, seria mais propenso a sustentar TVS e FV frente a modulações externas; na segunda condição, o substrato seria muito discreto, com menor probabilidade de sustentação de arritmias malignas que ocorreriam apenas em condições muito especiais. Nessa condição, a presença do substrato poderia ser identificada apenas pela análise dos eletrogramas obtidos diretamente na superfície epicárdica ou com infusão de potentes bloqueadores dos canais de sódio.
Corroborando essa hipótese, estudos recentes de ablação com radiofrequência (RF) do substrato subepicárdico da SBr indicam que indução de TVS ou FV é frequente nos pacientes com padrão tipo 1 espontâneo, com perda da indução dessas arritmias após a ablação do substrato arritmogênico, com desaparecimento do padrão típico.11,13 A extensão do substrato da SBr no momento do EEF poderia então explicar as diferenças nos resultados encontrados nos diversos estudos clínicos e motivo da controvérsia atual.14
Assim, pacientes com SBr recuperados de parada cardíaca ou com padrão tipo 1 persistente no ECG teriam maior taxa de indução de arritmias ventriculares quando comparados com aqueles sem manifestação no ECG no momento do EEF. Entretanto, não há, até o momento, informações claras de qual era a apresentação do ECG no momento de realização do EEF para tal análise.15
O estudo inicial que deu origem à utilização da estimulação ventricular programada na seleção de pacientes assintomáticos com SBr para implante de CDI envolveu 252 pacientes; desses, 116 já haviam apresentado sincope ou tinham sido recuperados de parada cardíaca e 136 eram assintomáticos no momento do diagnóstico. Taquicardia ventricular polimórfica ou FV foram induzidas em 130 (51%) pacientes. A indução de arritmias ventriculares foi mais frequente (73%) nos pacientes sintomáticos do que nos assintomáticos (33%) (p = 0.0001). Evento arrítmico espontâneo ocorreu em 52 indivíduos (21%) em seguimento médio de 34 +/- 40 meses; 45 (39%) dos 116 sintomáticos e 7 (5%) dos 136 pacientes assintomáticos. Por outro lado, apenas 1 paciente em 91 (1,1%) do grupo assintomático apresentou evento arrítmico espontâneo quando a estimulação ventricular foi negativa.15
Esses dados foram corroborados por um segundo estudo do mesmo grupo com seguimento dos pacientes por um período de até 20 anos. A indução de TVS/VF no EEF apresentou sensibilidade de 75,0%, especificidade de 91,3% para ocorrência espontânea de arritmias malignas nos pacientes assintomáticos. Embora o valor preditivo positivo tenha sido baixo (18,2%), o valor preditivo negativo foi de 98,3%.16
Estudos clínicos realizados por outros investigadores não reproduziram esses achados, levando a um debate que se mantém nos dias atuais. O PRELUDE foi um registro prospectivo e multicêntrico, que incluiu 273 pacientes assintomáticos. Durante o seguimento clínico, com mediana de 34 meses, não houve diferença significativa nas taxas de eventos entre pacientes com arritmias ventriculares induzidas ou não no EEF.17 No registro FINGER de pacientes com SBr, que envolveu 654 pacientes assintomáticos, seguidos por 31,9 (14 a 54,4) meses, houve baixa taxa de eventos (0,5%). Embora essa taxa tenha sido mais alta naqueles com arritmia ventricular induzida no EEF, não houve significância estatística na análise multivariada.18
Na metanálise elaborada por Kusumoto et al.,2 organizada pela AHA/ACC/HRS, foram selecionados seis estudos envolvendo pacientes com SBr a partir de 236 títulos identificados nas bases de dados tradicionais. Para minimizar a sobreposição de pacientes, a análise primária incluiu os pacientes de cinco dos seis estudos selecionados, excluindo-se um estudo da mesma instituição. Dos 1138 pacientes incluídos, TVS ou FV sustentada foram induzidas em 390 (34,3%), com ocorrência de eventos arrítmicos maiores (TVS e FV, MS cardíaca ou terapia com CDI) em 13 (3,3%), em comparação à ocorrência de 12 eventos (1,6%) nos 748 pacientes sem indução de arritmias, resultando em uma razão de chance (OR) de 2,3 (95% CI: 0,63-8,66; p = 0,2).
Em uma segunda análise foram incluídos todos os seis estudos, com possível duplicação dados. Dos 1401 pacientes, 481 (34,3%) tiveram TV ou FV sustentadas induzidas no EEF. Nos pacientes com TVS/FV induzidas ocorreram 24 eventos arrítmicos (5,0%) e entre os pacientes sem indução ocorreram 14 eventos (1,5%), resultando em um OR de 3,3 (95% CI: 1,03-10,4; p = 0,04).
Frente a essas informações, a diretriz da AHA/ACC/HRS 2017 emitiu a recomendação 2B com nível de evidência B para a indicação do EEF em pacientes assintomáticos com SBr, sugerindo que a estimulação ventricular, quando realizada, deva ser feita de modo menos agressivo (até dois extra-estímulos).2
Em resumo, os dados atuais ainda não esclarecem o real papel preditivo da indução de TV/FV em pacientes assintomáticos com SBr, provavelmente pela falta de homogeneidade das amostras e metodologias utilizadas nas investigações. Os dados apontam para a necessidade de trabalhos prospectivos, multicêntricos, envolvendo um número mais expressivos de pacientes.