versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.7 Rio de Janeiro jul. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.21152016
Para compreender a relação do ser humano com as substâncias psicoativas é necessário apreender a historicidade desta relação nos âmbitos social, econômico, político e cultural. Neste sentido, assim como a sociedade se transforma ao longo da história, as formas de consumir drogas também foram se modificando. O uso de substâncias psicoativas não é um fenômeno estritamente atual1-3. Seu caráter milenar está atrelado a um comportamento de aprendizado sobre o conhecimento e utilização de plantas e substratos de origens vegetal e animal para produzir alterações no estado de consciência4. A utilização do ópio e de bebidas alcoólicas, por exemplo, esteve associado a rituais festivos e religiosos presentes em diversas culturas2.
A partir do final do século XV, marcado pelas grandes navegações, inicia-se a formação de um sistema mundial de difusão comercial e cultural. Pode-se registrar, desde aquela época, o tráfico especializado de certos gêneros, dentre eles o ópio e o tabaco. A América e o Oriente, novos continentes, integram-se ao mundo moderno fornecendo tais insumos aos países europeus1.
As mudanças sociais da Revolução Industrial desde fins do século XVIII geram mudanças nos padrões de consumo das substâncias psicoativas. Surgem as drogas sintéticas, como por exemplo a cocaína. A oferta de novos psicoativos concomitante à ascensão do capitalismo como modo de produção hegemônico no século XX posiciona de forma estratégica o comércio de drogas. Centenas de milhões de dólares advêm como lucro da comercialização de substâncias ilegais e legais, como café, chás e fármacos. O álcool e o tabaco começam a ser produzidos em larga escala2. A difusão e a circulação desses produtos se tornou mais abundante com a expansão comercial e a produção em larga escala1.
Não obstante a relação perene do ser humano com as substâncias psicoativas, o padrão de consumo de álcool e outras drogas iniciado no século XX se diferencia dos modos de uso pretéritos. As drogas alcançaram status comercial e regulação econômica de âmbito estatal, com a distinção entre drogas ilícitas e lícitas obedecendo às conjunturas políticas, culturais e econômicas1. Juntamente com a maior disponibilidade e incentivo ao consumo das substâncias psicoativas por meio da propaganda, os problemas associados ao uso dessas substâncias atingiram abrangência populacional, relacionando-se com o aumento da criminalidade, do narcotráfico, da marginalização e de outros problemas sociossanitários5.
A meta de banimento das substâncias psicoativas tornadas ilícitas foi instituída como modo de lidar com os problemas advindos do uso por meio da “Guerra às Drogas”2. A I Conferência Internacional do Ópio, ocorrida em Haia no ano de 1912, foi um marco fundador da ordem proibicionista internacional, porém seu plano de ação foi abandonado no decorrer do entre-guerras. Em 1961, os Estados Unidos da América (EUA) e a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovam a Convenção Única sobre Entorpecentes, estabelecendo as bases para o paradigma vigente. O objetivo da Convenção é a aplicação de duras sanções penais a quem comercializa substâncias psicoativas proscritas. Esta abordagem orienta-se prioritariamente à redução da oferta, incentivando a escassez dos produtos, a veiculação de informações pautadas pelo amedrontamento e o apelo moral de slogans tais como “Diga Não às Drogas”5.
O insucesso do modelo proibicionista foi atestado pelo aumento mundial do tráfico e do consumo de drogas6. Nesse âmbito, compreende-se o usuário de drogas em termos de duas perspectivas: a moral/criminal e a da doença. O processo de estigmatização decorrente destas perspectivas cria barreiras para a inclusão social e também para o próprio tratamento, ao passo que o rótulo atrelado aos usuários de drogas dificulta, por exemplo, o acesso às instituições de saúde7.
Em 1926, na Inglaterra, é divulgado o Relatório Rolleston, recomendando aos médicos a prescrição de heroína e morfina como ato médico para pessoas que não reuniam condições de cessar o uso, sendo a primeira vez que se tem registro da indicação oficial de uma prática de redução de danos (RD). Havia administração monitorada dessas drogas com dosagens prescritas legalmente pelos médicos responsáveis, visando possibilitar uma vida mais estável e produtiva5. Porém, somente a partir da década de 1980 a RD passou a ser levada em conta como estratégia a ser adotada em sistemas de atenção à saúde. Sua viabilidade foi atestada pelas inovações e importantes resultados obtidos, inicialmente na prevenção da AIDS8.
A partir da implantação da política de RD na Holanda, em 1984, vários países do continente europeu passaram a adotar estas práticas, como a Inglaterra, em 1985. Em seu primeiro momento, a RD focava o controle da epidemia de AIDS que assolava os usuários de drogas injetáveis. A maior parte dos projetos estava sendo norteada pela trocas de seringas e pela informação entre pares. Além das doenças sexualmente transmissíveis, registrava-se uma proliferação de casos de hepatite entre usuários e dependentes5.
Vale ressaltar o protagonismo dos junkie bonds na Holanda durante o processo de implantação dos programas, entidades auto-organizadas de usuários que ofereciam serviços de troca de seringas e informações à comunidade-alvo. Os programas foram sendo aprimorados com a prescrição de drogas injetáveis como heroína e cocaína com qualidade e dosagem controlada para indivíduos altamente dependentes, inclusão no trabalho e moradia, e tratamento para a dependência visando à desintoxicação3.
A RD não é só atraente no ponto de vista humano, mas também é menos custosa e mais eficiente quando comparada às abordagens tradicionais, tornando-se um movimento internacional3. Em alguns programas de RD são oferecidos serviços de aconselhamento e informação não somente para o usuário como para a família e cônjuges, além de grupos de ajuda mútua, assumindo uma dimensão comunitária. Campanhas de vacinação contra as Hepatites A e B, e ações de informação sobre direitos à saúde, são realizadas junto de pessoas em situação de vulnerabilidade como travestis, prostitutas, pessoas em situação de rua e homens que fazem sexo com outros homens, além dos usuários de drogas injetáveis5.
No Brasil, as primeiras iniciativas de RD datam do final da década de 1980 nas cidades de Santos, Rio de Janeiro e Salvador. Porém, a RD só passou a ser compreendida como uma estratégia no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) após o lançamento da Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (PAIUAD) do Ministério da Saúde em 2003. Essa Política preconiza ações preventivas e de redução de danos, bem como o entrelaçamento das iniciativas de RD com os serviços do SUS, principalmente com os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e nos serviços de atenção básica à saúde, como a Estratégia de Saúde da Família (ESF)5.
Um dos principais pontos dessa prática é partir da singularidade do sujeito e de seus direitos enquanto cidadão. Os programas de RD invocam em seu favor razões éticas e humanitárias, a promoção da saúde e os direitos humanos6. A promoção da saúde implica o protagonismo dos atores sociais em sua qualidade de vida e saúde, como um contraponto à medicalização da assistência, visando à autonomia e emancipação. Indivíduos e grupos devem constituir meios para identificar aspirações, necessidades e modificar favoravelmente suas condições de vida, saúde e trabalho. O conceito é fruto da Carta de Ottawa, oriunda da I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em 19866.
Repudia-se, assim, o abandono e a discriminação de pessoas que vivem problemas por fazerem uso de álcool e outras drogas, que passaram ou passam por fracassos quanto à impossibilidade de abstinência imediata, ou que ainda não se vêem em condições de aderir a um tratamento6. Em suma, dá-se maior visibilidade ao usuário como sujeito de direitos, colocando-se em discussão a responsabilidade individual e penal, a liberdade de escolha, o autocuidado, a diversificação das modalidades de atenção (pluralização terapêutica) etc. como elementos fundamentais da conquista de direitos humanos e de cidadania.
Busca-se qualificar a interface da saúde com a justiça, esporte, lazer, cultura e trabalho, atuando sobre os fatores que predispõem ao uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas, e inserindo a dinâmica social de forma ativa tanto no auxílio às pessoas que vivem problemas quanto nas ações preventivas. As práticas de prevenção propostas pela RD abrangem a adoção de medidas prévias ao surgimento e/ou agravamento da situação, visando eliminar ou diminuir a probabilidade de ocorrência de danos individuais e coletivos9.
Não obstante, considera-se fundamental diferenciar política, programa e estratégia. As políticas consistem em princípios norteadores, são as diretrizes do sistema, apontando as concepções que o embasam. Os programas, por sua vez, têm o intuito de produzir novas tecnologias, operacionalizando as diretrizes propostas pelas políticas indicando, por exemplo, como se dará o acesso aos dispositivos e aos serviços assistenciais. As estratégias, finalmente, são as ações cotidianas que definem, orientam e operam as políticas, interpelando a atividade de trabalhadores, gestores e cidadãos8.
Ao se apreciar o panorama apresentado anteriormente, nota-se que a RD vem desfrutando de indiscutível consolidação, o que se reflete na produção de aportes teóricos e na divulgação de inovações no âmbito técnico-assistencial e de gestão. Porém, há dificuldades na transferência de conhecimento e/ou aprendizagem em políticas públicas, uma vez que os responsáveis pela sua elaboração recorrem a recursos escassos. É importante caracterizar os programas de RD quanto à situação política de implementação, financiamento, histórico, relações de trabalho, contexto legal, atividades desenvolvidas, parcerias e distribuição geográfica9. Nesta oportunidade são revisados relatos de experiências de RD a partir da produção científica indexada em bases de dados como meio para compreender os avanços e os entraves da implantação da RD no Brasil e no mundo.
A metassíntese possibilita investigar relações e interações humanas, sem desconsiderar as experiências singulares, e abarcando o sentido próprio de cada vivência10. É uma modalidade de pesquisa qualitativa que possibilita, por meio da análise e síntese de resultados, valorizar a evidência científica do processo de investigação qualitativa11.
Desenvolve-se em quatro etapas. A primeira diz respeito à definição da amostra que será pesquisada e ao delineamento de um objeto de estudo. Na fase subsequente, em que se realizam leituras minuciosas visando à produção dos fichamentos, são detalhados os estudos e os levantados dos primeiros resultados11. A terceira etapa, também conhecida como metanálise e metamétodo, consiste na elaboração de uma síntese inicial dos resultados, com estabelecimento de critérios de interpretação do conteúdo e classificação dos principais temas e subtemas. Por fim, na quarta etapa, de metateoria e metassíntese propriamente dita, o pesquisador irá descrever o fenômeno e redigir a síntese dos resultados11.
Foram incluídos relatos de experiência profissional e de gestão, de cunho quantitativo ou qualitativo, cujo conteúdo consistia na descrição de serviços de RD publicados de 2005 a 2015. Foram excluídos trabalhos que não estavam escritos em português ou inglês.
Os termos procurados em língua portuguesa foram: “redução de danos” com “estratégia”, “modelo”, “práticas”, “metodologia” ou outros equivalentes, e em língua inglesa: harm reduction com strategies, model e approach. A seleção dos artigos ocorreu em três etapas: seleção pelo título, seguida pela leitura do resumo e, finalmente, leitura do artigo na íntegra. A busca desses artigos se deu nas seguintes bases de indexação: Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline) e PsycINFO.
A segunda etapa consistiu na leitura minuciosa do material selecionado. Devido à grande quantidade de artigos, foi adotado um agrupamento inicial a fim de facilitar a leitura e propiciar a pré-análise e considerações preliminares. Nesse processo, os textos foram organizados segundo o seu país de origem. A Tabela 1 apresenta o número de artigos selecionados a partir das bases indexadas segundo a nacionalidade.
Tabela 1 Resultado das buscas realizadas nas bases de dados selecionadas, segundo a nacionalidade, entre 2005 e 2015.
País | Número de Artigos |
---|---|
Brasil | 13 |
Outros Países | 13 |
Europa | 9 |
EUA | 5 |
Irã | 4 |
Canadá | 3 |
Nacionalidade múltipla | 3 |
Índia | 2 |
Fontes: SciELO, Lilacs, Medline e PsycINFO.
Foram analisados os problemas, as estratégias e os conceitos abordados nas experiências relatadas, sistematizando as principais características de cada trabalho. Registraram-se as técnicas de RD utilizadas, a população-alvo e o local de atuação. Nesse terceiro momento (metamétodo e metanálise), visando identificar e interpretar as semelhanças e as diferenças entre os diferentes modelos de RD, a análise e a integração dos conteúdos se deu de forma mais direcionada, gerando a primeira síntese de resultados.
Na síntese final apresenta-se uma sistematização das técnicas adotadas, das peculiaridades dos locais de atuação e das características do público-alvo, exprimindo divergências, convergências e tendências das experiências de RD relatadas.
Na pesquisa realizada no SciELO utilizaram-se os descritores: “redução de danos”, “álcool e outras drogas”, “estratégias”, “políticas públicas”, “saúde coletiva”, “usuários de drogas”, “drogadição”, harm reduction, harm reduction – model, harm reduction approach, public heath – harm reduction e drug users. A Tabela 2 apresenta os resultados obtidos na busca.
Tabela 2 Resultado da busca realizada no SciELO entre 2005 e 2015.
Termos Pesquisados | Artigos encontrados | Artigos utilizados |
---|---|---|
Drug Users | 36 | 2 |
Harm Reduction | 24 | 2 |
Políticas Públicas/Drogas | 23 | 3 |
Redução de Danos | 19 | 4 |
Harm Reduction/Drugs | 17 | - |
Estratégias/Drogas | 12 | 1 |
Drogadição | 8 | - |
Saúde Coletiva | 5 | - |
Usuários de Drogas | 3 | 1 |
Álcool e Outras Drogas | 1 | - |
Total de Artigos | 148 | 13 |
Fonte: SciELO.
Foram utilizadas as opções de busca oferecidas pelo Lilacs, e selecionados os artigos em português e inglês que contemplassem os seguintes termos-chave: “redução de danos”, “abuso de substâncias por via intravenosa”, “infecções por HIV”, “programa de troca de agulhas”, “drogas ilícitas”, “álcool/política de saúde”, “usuário de drogas”, “saúde pública” e “política social”. A seleção totalizou 38 artigos, e seis cumpriram os critérios de inclusão. As mesmas opções de pesquisa foram utilizadas no Medline, retornando um total de 4.982 artigos, sendo incluídos 31 trabalhos no corpus.
Por fim, no PsycINFO, foram utilizadas combinações entre: harm reduction, drugs, human, journal, peer reviewed journal, governament policy, public health, empirical study e quantitative/qualitative study. Utilizando-se esses parâmetros, foram encontrados 120 artigos, sendo que 19 estavam em consonância com os objetivos da pesquisa. A síntese desses resultados encontra-se descrita na Tabela 3.
Tabela 3 Resultado das buscas realizadas nas bases de dados selecionadas entre 2005 e 2015.
Bases Indexadas | Artigos encontrados | Artigos utilizados |
---|---|---|
Medline | 4.982 | 31 |
SciELO | 148 | 13 |
PsycINFO | 120 | 19 |
Lilacs | 38 | 6 |
Total | 5.288 | 69 |
Fontes: SciELO, Lilacs, Medline e PsycINFO.
Após essa primeira seleção de artigos, foi realizada uma análise individual. Nesse momento, orientando-se pelos critérios de inclusão anteriormente citados, sete artigos foram excluídos por não se enquadrarem, oito não foram localizados, e três eram repetidos. Assim, 51 artigos seguiram aptos para a próxima etapa da pesquisa.
Posteriormente à leitura individual, realizou-se nova análise comparativa. Foram estabelecidos critérios que possibilitaram agrupamento desse material, respeitando os elementos-chave e a metodologia da metassíntese. A partir da síntese do material analisado, três aspectos principais sobressaltaram: (1) as técnicas adotadas, (2) o local de atuação e (3) a população-alvo.
Os programas de RD são sensíveis ao contexto social, econômico e político nos quais estão inseridos. Essas singularidades propiciam diferenças na forma de abordagem, na formação dos profissionais, na configuração das equipes e nos serviços e produtos oferecidos12-15.
Além das diferenças culturais e socioeconômicas, a abrangência da cobertura também propicia heterogeneidade entre os programas de RD, podendo ser baixa ou alta. Os programas de baixa cobertura atingem um número reduzido de usuários e, em sua maioria, encontram-se em fase de implantação, como se pode observar em relatos do Nepal16, Camboja13, Brasil17 e Tailândia18. Os programas de alta cobertura, por sua vez, assistem grandes extensões territoriais e contemplam maior contingente de pessoas, como são os casos do Reino Unido12, Alemanha19 e Austrália20. Em países com alta cobertura a RD é uma estratégia consolidada há mais tempo12.
No que tange ao financiamento, várias experiências relatadas recorrem ao orçamento público, vinculando as políticas de RD às políticas públicas de saúde, assistência social e segurança. Este modelo de financiamento ocorreu em relatos do Brasil4,9,21,22, Canadá14, EUA (estado de Utah)23, Suiça24 e Espanha25,26, oportunizando avanços na arena legislativa12,22,27,28.
A presença de organizações não governamentais (ONGs) é comum, principalmente nos países em que as estratégias de RD têm baixa cobertura. As ONGs podem estar articuladas à política pública ou não, caso em que recorrem ao financiamento privado. A presença da participação privada e modelos mistos ocorreram na Índia29, Brasil9, Espanha25, Canadá30 e em alguns países asiátiacos28. Os recursos advindos de empresas, fundações e corporações propiciam que esses serviços mantenham-se ativos16,29,31-33. Organizações internacionais multilaterais, como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas (ONU), também subsidiam a implantação e manutenção de alguns desses programas28,31.
Os Agentes Redutores de Danos (ARD) e suas condições de trabalho também são ressaltados em vários relatos4,6,9,17,21,22,34-37. Parte importante desses trabalhadores mantém um vínculo informal, sendo, em sua maioria, voluntários, enquanto outros são lideranças locais e ex-usuários, o que se observa em relatos do Brasil4,6,9,17,21,34,37, EUA36 e Inglaterra35. A precariedade e instabilidade dos vínculos de trabalho dificulta o desenvolvimento profissional e a perenidade dos programas de RD, relatada de forma explícita nas experiências brasileiras6,9,17.
Relata-se sobrecarga dos ARDs no cumprimento de sua atividade assistencial35. Dificuldades relacionadas ao planejamento dessas atividades geram prejuízos ao serviço36. Além disso, lacunas na capacitação interferem na qualidade da oferta assistencial aos usuários de álcool e outras drogas9,17,36. A proximidade das atividades de RD com o tráfico de drogas ilícitas também é indicada como um desafio a ser enfrentado cotidianamente6.
A multiplicidade de saberes e de práticas tem possibilitado a adaptação de modelos consolidados, bem como o desenvolvimento de inovações, que propõem intervenções mais adequadas aos contextos locais17. Porém, não obstante à singularidade das experiências, observa-se que as técnicas descritas a seguir têm sido mais comumente adotadas, devido às características de custo-benefício, custo-efetividade e benefícios às pessoas atendidas.
A troca ou fornecimento de seringas continua sendo uma das práticas de RD mais amplamente adotadas, e utilizada em diversos países, como Brasil9,12,17,34, Bangladesh12, China12,38, Ucrania12, Rúsia12,33, Bielorússia12, Camboja13, EUA14,39, Tailândia18, Índia29, Espanha25 , Canadá14, Tanzânia32 e no continente asiático28. Isso se dá pelo seu baixo custo em relação a outros dispositivos, além da comprovada eficácia.
O acesso a esse serviço ocorre de maneira diferenciada, respeitando as características locais12,17. As seringas podem ser trocadas ou distribuídas em serviços de saúde como ocorre na Ásia e China28,38; nas próprias cenas de uso, como descrito na experiência canadense14; em unidades volantes ou em farmácias cadastradas nos programas de RD, como é o caso das experiências da Tailândia e Espanha18,25. As seringas são insumos incluídos nos kits de RD na experiência tailandesa32.
A oferta desses materiais tem levado a resultados positivos em termos de RD14,25. Os estudos comprovam que essa oferta não aumenta a incidência de novos usuários e, não obstante, reduz o consumo17. O serviço de troca de seringas está associado a uma gama maior de atividades junto dos usuários, tais como ações informativas, aconselhamento e testagem para o vírus HIV, dentre outros9,12-14,17,18,25,28,29,32-34,38,39.
Alguns estudos apontaram aspectos negativos, como a distância dos pontos de troca com os locais de uso, demandando grandes deslocamentos dos usuários para a realização da troca de suas seringas e agulhas ou entrega nos pontos de descarte, como ocorreu na Tailândia18. Outro fator inconveniente ao acesso a práticas de RD é o assédio da polícia próximo a esses ambientes, gerando medo e desconforto, conflitos descritos nos relatos oriundos do Brasil12, Canadá14, Tailândia18 e Espanha25.
As salas de uso protegido são, também, uma alternativa para o consumo, reduzindo fatores de risco comuns nas cenas de uso. Esses locais propiciam ambientes assépticos e seguros, diminuindo o risco de contaminação e dispensando o policiamento ostensivo, disponibilizados em experiências do Canadá14, Tailândia18, Espanha25 e nos países europeus com alta cobertura20. Outra vantagem é que não há o compartilhamento de seringas devido à disponibilidade de material e informações.
Serviços de informação e aconselhamento são parte integrante da maioria das estratégias de RD. As informações podem ser repassadas verbalmente aos usuários do serviço, bem como em grupos de ajuda mútua. Irã15,40, EUA23, Tailândia18, Suiça24, Índia29 Inglaterra35,41, Tanzânia32 e China38 adotaram intervenções informativas associadas a outros serviços de RD. As informações preventivas também são difundidas por meio de materiais impressos que acompanham, usualmente, os insumos fornecidos, como é o caso das seringas, cachimbos e os kits de RD ofertados em experiências no Brasil4,21,32 e na Tanzânia42.
A informação entre pares, ou seja, entre usuários e ex-usuários, continua sendo indicada como a forma mais eficiente de se oportunizar troca de conhecimentos9,21,29,34,35,37. Sua eficácia decorre tanto por ser realizada entre os pares quanto pelo caráter informal35. A oferta e a troca de informações sobre as drogas bem como a respeito de formas de uso seguro previne riscos evitáveis. Momentos informativos também possibilitam intervenções voltadas à autoestima e ao autocuidado, proporcionando, consequentemente, o reconhecimento de necessidades de saúde negligenciadas43.
A oferta de informações também contempla familiares e comunidade, visando superar ou pelo menos minimizar o estigma em torno do usuário de drogas e das propostas de RD, como indicado em relatos dos EUA23, Suiça24 e Indonésia31. Ao receberem informações apropriadas sobre o uso prejudicial de drogas, família e comunidade podem protagonizar a oferta de cuidados e de ações preventivas43.
Serviços de aconselhamento beneficiam tanto usuários quanto familiares e podem ser aliados ao apoio psicológico. No Brasil, o atendimento psicológico tem sido comumente utilizado9,34,43,44. Além das experiências brasileiras, Irã15,40 , Tanzânia32 e China38 também o adotam como estratégia de intervenção. A testagem do vírus HIV, serviço que compõe estratégias de RD, também é acompanhada de aconselhamento38.
Os kits são uma oferta abrangente no que tange aos cuidados de saúde do usuário, podendo ter composições distintas de acordo com o público assistido. Comumente, os kits são compostos de: folhetos informativos, materiais para o tratamento de feridas, água destilada, preservativos e lubrificantes. Agulhas, seringas e cachimbos também são inclusos em alguns kits. A distribuição desses materiais ocorre das mais variadas maneiras: em espaços de cuidado com a saúde, nas cenas de uso por ARD ou em grupos de ajuda mútua e aconselhamento, sendo relatada nas experiências do Brasil4,21,42 e Tanzânia32.
As Terapias de Substituição possuem uma longa trajetória como estratégia de RD. Inicialmente, a técnica se restringia à prescrição controlada de heroína e morfina, ocorrendo principalmente no continente europeu20,24. Com os avanços farmacológicos, novas substâncias começaram a fazer parte do rol de drogas de substituição, como é o caso da metadona e do composto buprenorfina-naloxona, utilizadas no tratamento para a dependência de opiáceos, estratégia adotada em diversos países tais como EUA45, Nepal16, Índia46, Tailândia18, Indonésia31, Irã47,48, Brasil8, China38 e Malásia49.
Um dos empecilhos apontados na utilização da Terapia de Substituição da heroína por metadona é o seu alto custo8. Além disso, os usuários do serviço apontam que o tratamento é demorado e, muitas vezes, as doses padronizadas oferecidas são insuficientes. Esses aspectos dificultam a adesão ao tratamento46,49. Em uma experiência iraniana de RD, o alto custo da metodona foi contornado pela prescrição da naloxona, que também minimiza os riscos de overdose por opiáceos48. A disponibilização de medicamentos e as orientações para seu uso têm sido uma forma de prevenir o risco de intoxicações agudas. Nesse sentido, permanece uma alternativa a ser considerada para cessar o consumo, obter estabilidade no uso ou prevenir as doenças relacionadas46.
Novas opções vêm surgindo com o intuito de reduzir os danos causados pelas formas de administração das drogas. Na República Tcheca50, cápsulas de gelatina contendo a quantidade desejada de metanfetamina são dispensadas para consumo via oral. Em experiências chinesas ofereceu-se heroína fumada como possibilidade para a diminuição do consumo ou para usuários com veias danificadas, reduzindo também o risco de overdose51.
Algumas experiências envolveram a implantação de programas multidisciplinares e intersetoriais visando o acesso a cuidados de saúde e a serviços de assistência social, considerando a relevância da atenção integral em face de situações de vulnerabilidade. Além das informações sobre drogas e o fornecimento de cachimbos, seringas, potes de diluição e outros materiais para o consumo de drogas, os cuidados básicos também são foco dessas intervenções. Nesse sentido essas propostas oferecem alimentação, higiene e/ou repouso.
Aspectos sociais também são trabalhados através de oficinas de capacitação, rodas de conversa e escuta terapêutica. Ressalta-se também o acesso aos cuidados biomédicos por meio de serviços ambulatoriais e hospitalares. Essas ações inserem o sujeito em uma rede de cuidados, buscando abarcar também lazer, cultura e educação. Este tipo de estratégia pauta as experiências brasileiras9,21,22,34,37,44, porém países como Tânzania32, Canadá14 e EUA39 também utilizam tais recursos.
O mapeamento do território é uma importante etapa dos programas de RD, que comumente é feita pelos ARDs. Por meio do mapeamento, realizado em experiências da China12, Brasil4,22,34,37 e continente asiático28, é possível delimitar a população-alvo e as cenas de uso, assim como as substâncias cujo consumo é mais frequente. Esse processo permite o desenvolvimento de atividades consistentes com a realidade local e condizentes com a demanda dos assistidos, delimitando as melhores estratégias e locais para a atuação dos ARDs12,28.
A maioria das estratégias teve como população-alvo pessoas em situação de vulnerabilidade social e que sofrem com a estigmatização socioespacial39. As pessoas em situação de rua, os profissionais do sexo, os homens que fazem sexo com outros homens e os moradores de áreas com infraestrutura urbana precária são a população mais frequentemente assistida. Os cônjuges e os parceiros sexuais dos usuários são também incluídos nos programas de RD, bem como crianças e adolescentes em situação de exploração sexual4,9,15,29,39.
Os locais de atuação variam de acordo com o serviço prestado e o público que se deseja atingir. As farmácias, como pontos de troca de agulhas e seringas e oferta de materiais esterilizados, foram utilizadas por programas da Tailândia18 e Espanha25.
Programas situados em instituições fechadas, como é o caso das prisões, requerem a atuação de ARDs. Nesse caso, o agente realiza atividades de cunho informativo para o detento e funcionários do estabelecimento, oferecendo também terapias de substituição. Nos presídios do Irã40 e da Malásia49 recorreu-se às terapias de substituição. Há extensa variação e amplitude das atividades propostas, variando de acordo com as características e necessidades locais. A parceria com ONGs é relatada em experiências brasileiras9,21,22,34, havendo também propostas de atividades de RD em instituições fechadas dos EUA14, Tailândia18, Suiça24, Índia29, Indonésia31 e Espanha26.
No caso das intervenções voltadas para cenas de uso e áreas com precária infraestrutura urbana é central a construção do vínculo do ARD com o usuário. O serviço pode ser oferecido em unidades volantes e por meio de visitas aos domicílios e locais de uso. No Irã15, Espanha25, EUA39, Brasil4,9,22,37 e Canadá30 recorreu-se a espaços públicos comunitários para a oferta de ações de RD. Nessa estratégia, a aproximação do ARD com a realidade do uso é mais estreita, porém, é preciso considerar os riscos da proximidade com o tráfico em seu planejamento e desenvolvimento6.
No que tange aos serviços de prevenção, recorre-se a espaços formais ou informais de educação. Neles, é possível fazer intervenções de cunho educativo e preventivo, e atividades visando à oferta de informações apropriadas sobre os programas de RD, além de criar oportunidades de formação para os profissionais da saúde e educação. A preocupação com a capacitação dos profissionais é descrita em um relato da Indonésia31 e em experiências brasileiras22,52.
As estratégias de RD analisadas colaboraram para a melhoria das condições de vida e saúde e a sobrevivência, visando manter os dependentes de drogas inseridos na rede de atenção à saúde e de assistência social, evitando a marginalização. Buscam propiciar oportunidades de inclusão social e oferecer condições para que o sujeito possa repensar sua relação com as drogas. Tais medidas destacam a multiplicidade de caminhos possíveis para alterar a relação problemática que as pessoas podem ter com as drogas.
A RD ressalta a necessidade de reconhecer, em seu público-alvo, a singularidade da relação que as pessoas têm com suas drogas de preferência. Ao considerá-las a partir desta perspectiva, torna-se possível traçar estratégias juntamente do dependente de drogas que visem promover a saúde, assegurando-lhe respeito à sua dignidade. A oferta de tratamento, então, ocorre como uma perspectiva de ganhos em termos de liberdade e autonomia, enfatizando a corresponsabilização do sujeito pelo seu próprio tratamento21.
Por maior que seja o rigor metodológico, a metassíntese encontra-se sujeita aos vieses dos pesquisadores em virtude de se tratar de síntese e interpretação de resultados. No entanto, entende-se ter sido possível verificar que a RD vem se consolidando como estratégia de saúde no cenário internacional, sendo ainda tímidas as iniciativas de governo em âmbito nacional. Apesar das especificidades devido às distintas realidades socioeconômicas e culturais, os princípios éticos subjacentes às experiências de RD analisadas apontam para a garantia dos direitos humanos e a inclusão social dos usuários de drogas, ao passo que programas e estratégias logram resultados sanitários dignos da atenção dos policy makers.
Apesar dos bons resultados, muitas barreiras ainda são encontradas em sua implantação. Esses impedimentos estão atrelados às opções políticas e aos valores morais tanto dos gestores quanto dos próprios técnicos e profissionais responsáveis por ações de cuidado. Várias experiências analisadas registram tais dificuldades e manifestam a carência de apoio comunitário e político na implantação das propostas de RD. Outro fator é a própria capacitação dos profissionais da área, que é avaliada como insuficiente, assim como o número de publicações referentes ao tema.
Não obstante, além do caráter assistencial stricto sensu das estratégias de RD de baixa abrangência, nota-se nos relatos revisados que os programas de RD que receberam financiamento público e têm alta abrangência conquistaram institucionalização legal. Sem desconsiderar a importância da dimensão sociocultural na mudança das práticas de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, a institucionalização das ações de RD é fundamental para assegurar a pluralização da oferta terapêutica a essas pessoas nos marcos da atenção integral3,8.
Vários trabalhos pontuam as dificuldades de mensuração dos resultados, abrangência e eficácia das estratégias de RD, apontando a necessidade de avaliações que supram essa lacuna18,22,28. O presente estudo não incluiu uma caracterização mais apurada das políticas e programas que presidiram a proposição das estratégias adotadas, o que seria fundamental em estudos avaliativos. Um acompanhamento mais detalhado da implantação desses serviços e pesquisas avaliativas que investiguem o impacto sanitário das estratégias e técnicas utilizadas são perspectivas que devem ser consideradas em estudos futuros.