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Estratégias, expertise e experiências de ouvir vozes: entrevista com Cristina Contini

Estratégias, expertise e experiências de ouvir vozes: entrevista com Cristina Contini

Autores:

Luciane Prado Kantorski,
Ana Paula Müller de Andrade,
Mario Cardano

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.21 no.63 Botucatu out./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0031

retirada do filme: “Il canto delle sirene”, de Donato Robustella 

O MOVIMENTO DOS OUVIDORES DE VOZES

O movimento de ouvidores de vozes começou na Holanda no fim dos anos 1980, resultante do encontro do psiquiatra Marius Romme e sua paciente Patsy Hage, diagnosticada como esquizofrênica, com risco de suicídio, em uso de antipsicóticos e ouvidora de vozes. Patsy estava em busca de formas de conviver com as vozes quando encontrou o livro em que Julian Jaynes 1 argumenta que até 400 a.C. a mente era concebida como sendo dividida em duas partes (os dois hemisférios cerebrais) que se comunicavam, uma parte de Deus (onde estavam as vozes) e outra humana. Somente a partir desta época que tais vozes começaram a ser consideradas anormais, saindo da ordem do divino. Essa leitura foi muito importante para Patsy passar a conviver com as vozes. O psiquiatra Marius Romme sugeriu a ela que buscasse outras pessoas que ouvissem vozes para compartilhar sua experiência. Então eles participaram de um programa popular da televisão holandesa e convidaram pessoas que ouviam vozes a entrar em contato com a emissora. Cerca de setecentas pessoas fizeram contato e, destas, aproximadamente 150 relataram que haviam encontrado formas de controlar as vozes. Assim, em Utrecht (Holanda), eles organizaram um workshop e, em seguida, grupos de mútua ajuda 2-5 .

Em 1987, nasceu o Movimento dos ouvidores de vozes – The Hearing Voices Movement –, fundado por Marius Romme e Sandra Escher. Para divulgação das experiências, foi criada uma organização formal que oferece apoio administrativo e coordena uma ampla variedade de iniciativas em diversos países, denominada Intervoice (The International Network for Training, Education and Research into Hearing Voices). Em 1989, em Manchester (Reino Unido), foi criada a The Hearing Voices Network, integrada por ouvidores de vozes, familiares e profissionais de saúde de diversos países, uma importante associação de suporte mútuo de ouvidores de vozes 2-5 .

Na Itália, a rede Noi e le Voci (d) é a rede que integra a informação dos congressos, formação, grupos de ajuda mútua de ouvidores de vozes e se articula com outros países e com a rede internacional Intervoice. A rede italiana tem Cristina Contini como vice-presidente e foi fundada em 2011 após a realização de três congressos nacionais – que ocorreram em Reggio Emilia (2008 e 2009) e em Milão (2010) – e um congresso internacional que aconteceu em 2011, em Savona. Em 2005, Cristina Contini havia participado da associação Noi e le voci como vice-presidente e em 2013 criou a associação Sentire le voce (e) , a qual preside até hoje.

Cientes da importância da experiência de Cristina Contini 6,7 tanto para o movimento de ouvidores de vozes na Itália e no mundo quanto para as transformações que esta tem produzido no âmbito do cuidado a pessoas que ouvem vozes, identificamos na sua entrevista uma oportunidade privilegiada de compreender os efeitos de sua experiência singular na construção de estratégias terapêuticas para o enfrentamento da experiência de ouvir vozes.

O ENCONTRO

Esta entrevista faz parte de uma etnografia realizada por uma das autoras, entre março de 2015 e janeiro de 2016 na Itália, acompanhando ouvidores de vozes. O trabalho de campo iniciou-se com o acompanhamento de alguns ouvidores de vozes que frequentavam o grupo no Centro de Saúde Mental de Settimo Torinese, experiência acompanhada e divulgada em livro 8 pelo professor Mario Cardano, da Universidade de Turim, supervisor deste estudo etnográfico. O trabalho de campo incluiu, além do acompanhamento no grupo em Settimo Torinese, a entrevista com Cristina Contini, a realização de seminários formativos em Reggio Emilia e Bologna, o seguimento de reuniões de um grupo de ouvidores de vozes em Savona – coordenado pelo psiquiatra Marcello Macario – e a participação do 7 o Congresso Mundial de Intervoice, em Alcalà de Henares – Madri, Espanha. Nesse percurso etnográfico se deu o encontro com Cristina Contini, uma expert por experiência 9 . Essa mulher, uma ouvidora de vozes que tinha uma preciosa história, fez do dom de ouvir vozes um ofício (em italiano, um mistiere ) e, em seu percurso de vida, não foi capturada pela psiquiatria. A entrevista ocorreu em Reggio Emilia, em 17 de setembro de 2015, e é Cristina Contini que fala de sua experiência pessoal, do seu percurso e de suas descobertas.

EXPERIÊNCIA PESSOAL: SILÊNCIO E DESCOBERTAS

Pessoalmente, comecei a ouvir vozes aos vinte anos, depois do coma. Para mim, foi fácil associar um trauma físico ao evento que gerou as vozes. As vozes nunca foram um problema para mim, a não ser pelo fato que davam voz aos significados que eu não conhecia. Significados profundos, essenciais e vitais. Eu as chamava de minha biblioteca viva. Então eu, dos vinte aos 23 anos, estive em silêncio. Um silêncio aparente, somente externo, porque era um silêncio involutivo, implosivo. Uma confusão que eu busquei não administrar e sofri sozinha, sem buscar uma compreensão. Assim, fiquei no silêncio. Não expus para ninguém aquilo que, para mim, naquele momento, era um problema. Continuei trabalhando com muito cansaço, já que continuava a dormir apenas aquele pouco que conseguia.

Estive, sobretudo, calada. A única coisa certa que eu fiz. Isto é, a única coisa que reconheço depois de tantos anos que fiz certo é ter ficado em silêncio com meus irmãos e os meus pais. Eu reconheci que eles eram ótimos educadores, mas não podiam me educar sobre as vozes. Porém, o fato de eu ficar em silêncio fez com que a minha “panela de pressão” pudesse explodir a qualquer momento, porque eu estava cheia. Eu tinha consciência que se fosse ao médico, ou se tivesse falado com meu irmão que era muito intolerante e católico, a alternativa teria sido o psiquiatra. Ou seja, eu não sabia há vinte, trinta anos atrás a diferença entre um psicólogo e um psiquiatra, mas sabia que se fosse a um médico, ele teria me dado remédios.

Depois, aos 23 anos, tomei uma decisão. A decisão de falar com as vozes, encarando-as. Essa decisão coincidiu com a escolha de viver. Ou seja, eu, aos vinte e poucos anos, tinha a síndrome de sobrevivente (denominada no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) como transtorno de estresse pós-traumático). Ninguém me celebrava, mas ainda estava viva. Ou não me sentia viva ou me sentia mais viva que os outros, e via todos os outros mortos. Mortos espiritualmente e em todas as suas manifestações. No momento em que eu decidi viver, eu disse: “OK, decido tomar conta da minha vida, mas vocês, vozes, precisam me ajudar”. Isso coincidiu com o meu casamento. Meu marido permitiu que todas as noites eu me comunicasse, escrevendo aquilo que as vozes me diziam. Desta forma, eu abri um canal – isto tendo em mente que há trinta anos não havia internet, não existia o Google, não se falava de espiritualidade, não existia a new age , não tinha livros, nem seções específicas em livrarias, enfim, não existia nada. Eu havia encontrado apenas um livro sobre o coma em que, em 250 páginas, havia apenas duas linhas dizendo que quem tivesse estado em coma era possível que ouvisse vozes. Isso foi a única confirmação, ou seja, a única possibilidade de confirmação do que estava acontecendo comigo.

A minha grande descoberta foi encontrar uma correspondência nas vozes para significados em uma profundidade que eu não possuía em mim. Um mundo que comecei a definir espiritualmente, que me ensinou muito e que me ajudou a permanecer em equilíbrio.

Eu nasci em Carpi, uma cidade na província de Modena, com uma educação cristã, que celebrava os sacramentos. Depois do coma, todas aquelas caixinhas que eu havia aprendido caíram. Expressões como “estado de graça” e “espiritualismo” não faziam parte nem da minha linguagem, nem da minha educação. Para mim, não existiam; não existiam sequer em livros. Então, para mim, foi uma descoberta junto às vozes, a qual até então eu não queria saber ou não conseguia entender quem eram e tampouco que fossem a melhor parte de mim.

Assim, fiz 12 anos de silêncio, de crescimento pessoal com as vozes. Os ensinamentos que obtive das vozes, ou seja, aquilo que aprendia, eu metabolizava e aplicava. Para mim, foi um devir. Eu comecei a ver as pessoas por aquilo que eram e por aquilo que poderiam vir a ser e o meu sentir foi totalmente modificado. Isto é, havia tomado conta da minha vida e buscava não um sentido de Cristina com as vozes, mas um sentido que nunca havia me dado antes.

ESPIRITUALIDADE, CIENTIFICIDADE E O DESENVOLVIMENTO DE UM SENTIDO

Encontrei-me com Igor Sibaldi (f) e fizemos alguns exercícios juntos, porque logicamente a extra sensorialidade havia aumentado muito. Muitos ouvidores de vozes também apresentam fenômenos de clarividência que não tem nada que ver com espiritualismo e, por isso, de início devem dar-se conta de que é uma telepatia normal, de que é uma clarividência verdadeira e de que é uma sensibilidade.

Para mim, aconteceu que, depois de 12 anos, decidi colocar-me a serviço, isto é, fui até um centro de estudos e experimentação em Roma, para que me certificassem e para que eu pudesse tomar consciência de verdades totalmente desconhecidas para mim. A minha profissão é, de toda maneira, no âmbito financeiro e econômico; por isso, muito objetiva, muito racional. Sentia-me uma grande matemática, uma grande filósofa.

Nunca havia lido nada e resolvi buscar neste centro algumas respostas. Depois de longas entrevistas, disseram-me: “Olha, te colocamos à disposição os instrumentos para que tu te conheças, porém, eles são muito limitados a um poder mental, a uma força mental que tu tens, talvez, mais que outros”. Assim, me avaliaram dizendo que o meu sentir ia além. E, então, ali os meus caminhos foram divididos, isto é, eu deveria escolher se seguia um caminho científico ou um caminho espiritual, e eu não conhecia nenhum dos dois.

O universo me levou adiante em perspectivas cientificas “além do oceano”, isto é, a perspectiva de usar pessoas como nós para encontrar tesouros escondidos no oceano. E, então, uma série de questionários eram feitos em algumas cidadezinhas onde havia muito suicídio. Quanto mais vinha prospectado o percurso científico, mais sentia que aquilo não me pertencia. Por isso, segui um conselho de Igor Sibaldi: “tenta te experimentar no âmbito espiritual”.

O meu ponto de vista era totalmente diferente. Eu fiz a semana italiana, isto é, uma semana do ano dedicada a certos tipos de pessoas, somente italianas. Durante a semana trabalhávamos das nove da manhã até às dez da noite, de modo que me vi envolvida, sob pressão mental e espiritual. O resultado é que, se fizesse um trabalho mental, depois de duas horas estava cansadíssima. Então me dava conta dos meus limites e da minha força pessoal. No trabalho espiritual, íamos até a meia-noite e pela manhã estávamos renovados. Ali tive uma das grandes confirmações. Ali aprendi a dormir, a me disciplinar e comecei a dar um sentido, porque, de certa maneira, tudo começou a se encadear. Ali eu comecei a colocar-me à disposição de pessoas que tinham necessidade de comunicar-se com as vozes que eu ouvia.

No período dessa dezena de anos, até colocar-me à disposição, encontrava as pessoas desequilibradas, isto é, vinham até mim neste centro espiritual pessoas que paradoxalmente não tinham ainda sido engolidas pela psiquiatria, buscando um percurso intermediário. Assim, encontravam-se no único âmbito que a Itália oferece: paradoxal à psiquiatria, o espiritual. Ali eu não sabia como mover-me, porque, obviamente, sim, podia ver o campo áurico das pessoas, podia perceber, mas não sabia como ajudar a disciplinar. Por isso, comecei a fazer contatos com os psiquiatras, ainda que na realidade, enquanto eu pensava isso, tenha sido a psiquiatria que me contatou, porque, nesse ínterim, eu tinha os grupos com pessoas que queriam lidar com as vozes.

PRIVACIDADE E SENTIDO DE VIDA

Lá onde há um sofrimento e queremos ajudar, onde há uma doença, sempre se pensa: além da vida, além da morte, existe uma vida, não? Contudo, eu aprendi a perguntar-me: existe vida antes da morte? Então, o meu ajudar é pelo meu sentido. O meu sentido se transformou em ajudar os outros a encontrar o próprio sentido, em plena liberdade, sem criar dependência de ninguém, nem dos fármacos, nem dos profissionais. É algo que vai além da empatia, que vai além da consciência. Trata-se de reconhecer como a pessoa está a cada momento, por que está bem, por que está mal, “hoje estou bem”, “amanhã estou muito mal”, “hoje não estou bem como ontem”, isto é, começar a olhar-se e ser crítico, ser pretensioso consigo e, sobretudo, confrontar-se com as técnicas. Isto é, não é a lição, não é o livro que muda a tua vida, é desafiar-se, enfim, experimentar.

De toda maneira, as minhas vozes se transformaram em professoras porque eu era livre para viver minha vida. Pensei por muitos anos que, de certa forma, não havia nenhuma pessoa que conseguisse e/ou que pudesse me ajudar. Então, quando eu decidi viver, disse “OK” para a vida, e então me abri para o mundo. Busco ser serena. Sou uma sobrevivente de um coma, portanto, decidi: farei uma vida, vou me casar, ter filhos e, para isso, pedi ajuda às vozes. Ou seja, as vozes são o problema? Vejamos então se são também a solução.

Quando eu cheguei na psiquiatria, o enfrentamento para mim era a palavra mágica: enfrenta teus medos, isto é, enfrenta as coisas que as vozes te dizem. Eu sempre uso o exemplo do Alberto, um ouvidor de vozes.

Alberto parou de ir para a universidade, estava aterrorizado de tal maneira que não movia sequer o pescoço, depois de dois meses ouvindo as vozes. Então, todas as manhãs às seis, uma voz interna o acordava e dizia: “Alberto! És um deficiente, és um estúpido, és um cretino. Vai para a universidade”. Ele então parou de ir para a universidade, porque esta voz o ofendia continuamente. No momento em que o vi pela primeira vez, lhe perguntei: “Alberto, perguntaste para a voz porque ela te chama de estúpido?” Ele me respondeu: “Não, pergunta tu”. Isto é, pedia que eu enfrentasse as vozes. E aí, eu perguntei para as vozes: “Por que dizem isso a Alberto, toda manhã?” E as vozes responderam: “Alberto, eu te quero bem, quero que retomes tua vida e te levantes cedo e estudes”.

Então é aquilo que nos manuais está escrito: positivar uma voz. Na realidade, Alberto não positivou a voz, mas descobriu que era uma parte sua que estava sugerindo que ele fizesse algo de bom.

Conto isso para dizer que, na minha escolha, a privacidade não existe. No momento em que eu faço esta escolha por coerência, então, não existem segredos ou coisas que não devem ou não possam ser ditas. Antes de tudo, eu aprendi a não falar nada que não me fosse solicitado. Na verdade, quem quer muito tutelar sua privacidade é aquele que na realidade nunca ativa sua privacidade para si mesmo, mas quer manifestar aquilo que é, aquilo que faz. Para mim, não é um segredo a minha privacidade, ou seja, o acesso a ela é livre, assim como aos meus limites.

O sentido da minha vida já encontrei. E isto encontrei também na doença. Em um determinado momento, com quem estava próximo, com o meu silêncio, o meu desaparecimento devido a uma doença que não fiz alarde, que não publiquei nada, porque não tinha nada de bom a divulgar. Então, na minha história de isolamento, como fazem os elefantes que vão morrer longe em silêncio, busquei me fortalecer e encontrar um sentido na doença.

SOBRE A EXPERIÊNCIA DE OUVIR VOZES

Na Austrália, falam dos cinco pilares do ser humano – corpo, mente, família, trabalho e espírito –, com os quais me reencontrei imediatamente como visão, ou seja, nos quais existe um excesso ou um defeito, isto é, uma falta, que seja a família, que seja o espírito, a mente ou o corpo naquela pessoa que demonstra um distúrbio mental. É necessário intervir. Então, a minha experiência pessoal demonstra que, onde existe um distúrbio, um excesso ou um problema de qualquer natureza sobre o qual não se reconhece a origem, se ele se manifesta com as vozes, é possível enfrentá-lo.

Primeiramente, é preciso identificar qual é o problema, ou seja, entender se a pessoa enlouqueceu porque perdeu o emprego, porque foi abandonada, porque ouve vozes excessivamente negativas ou porque teve uma experiência mística na qual não conseguiu controlar-se. Nos meus trinta anos de experiência, sempre vi esses excessos.

Além disso, eu creio que o medo acomete todas as pessoas, qualquer pessoa, para além de seu crescimento e educação. No momento em que ouve ou vê uma voz, ainda que a visão seja menos aterrorizante, a pessoa é acometida pelo medo. O auditivo é mais penetrante.

O medo é um sentimento que acomete todos. Para o(a)s último(a)s 150 menin(o)as, por meio do banco de dados ou por e-mail, perguntei: “Qual é o primeiro sentimento que experimentastes?” Se a origem das vozes é um trauma, o medo acomete a todos. Medo e terror, e a exigência de compreender. A primeira emoção que dizem é o medo e a raiva; terror e raiva. Assim, busca-se entender em que espaço elas emergem. Busca-se o reconhecimento logístico das vozes, ou seja, é voz interna? É voz externa? Se tenho voz interna, escapo? Não tenho escolha? Se tenho vozes externas, escapo? Faço mal aos outros porque fico agressivo? Contudo, sempre há medo.

Então, na primeira entrevista com o(a)s menino(a)s, buscamos normalizar a experiência dizendo: “É normal ter medo, diga porque tens medo”. Não são as vozes que geram medo, mas aquilo que dizem é que gera medo. Se as vozes são positivas, mas não existe o controle, o medo advém da falta de controle. Assim, as pessoas começam a entender do que têm medo, pois a voz própria e verdadeira, externa, que diz “És uma cretina” gera medo em absolutamente todos, inclusive em mim.

Neste mundo das vozes, em que 99% dos problemas são existenciais, uma voz que diz “Te mata” quer te dizer “Muda teu modo de existência”. Então, para dar um exemplo, o último caso, aquele mais flagrante, foi uma comerciante de 45 anos, sem vontade de ir trabalhar. Até a última semana, trabalhava bem, até que foi fazer um percurso de peregrinação em Santiago de Compostela. Voltou duas semanas depois, de trem, e começou a ouvir uma voz que dizia: “Te mata, te mata, te mata”. Depois de três dias, perdeu o controle. Cronificada por quatro anos usando fármacos, depois desse tempo, perto do departamento de Grosseto, alguém mencionou o meu nome. Ela me ligou, adquiriu um manual, o leu e ao telefone me disse: “Sobre aquela voz que me dizia para matar-me... se alguém tivesse me dito que o significado escondido por trás das vozes era que eu mesma estava me dizendo ‘Agora, muda ao teu modo, busca o teu próprio sentido da tua existência’, eu teria feito, porque de qualquer maneira, em quatro anos perdi todos meus clientes, fechei meu comércio, sou massacrada mentalmente e não encontrei a chave do problema”. Logo, respondi-lhe: “Veja, a chave do problema, volta ao trem e muda o teu modo de existir”.

Somos forçadas a entender que há um sentido na vida, ainda que se tenha vinte, quarenta, ou mesmo sessenta anos. E daí em diante, o que acontece? Quando o problema é existencial, com um pouco se consegue. Com uma estratégia de controle das vozes, consegue-se diminuir o volume, eliminar as vozes e, logo, faz-se um percurso conjunto, ou seja, a pessoa passa a caminhar com suas próprias pernas.

Assim, como posso dizer... é lógico que se trabalha em colaboração com a neuropsicologia e a psicoterapia, porque tem uso de drogas e se fazem testes. A partir daí, a estratégia de controle pode ser uma estratégia para um problema neurológico e/ou outra para um problema existencial. Faz-se a mesma entrevista, junto ou separado, compartilha-se e, então, por exemplo, percebo que o que eu vejo a outra pessoa não vê e vice-versa. Compartilhando, faz-se um percurso conjunto. Nós planejamos de três a seis meses de trabalho com as entrevistas e se avalia qual a melhor estratégia.

GRUPOS: DAS LIMITAÇÕES E INCERTEZAS DA ESPIRITUALIDADE E CIENTIFICIDADE

Comecei a fazer os grupos de pessoas que queriam disciplinar as vozes por fora da psiquiatria. No momento em que os profissionais da psiquiatria me contataram, eles sabiam perfeitamente aquilo que eu fazia fora e os grupos que eu tinha e me disseram: “Nós precisamos ajudar algumas pessoas cujas vozes não explicamos”.

Desde então se abriu um mundo em que a psiquiatria me pediu ajuda. Na realidade, eu queria criar um serviço informativo que partisse do paradoxo espiritual versus psicopatológico pesado, para fornecer um caminho alternativo que rompesse com esse divisor de águas de modo mais sutil.

Nesse percurso, a psiquiatria me pediu que organizasse os primeiros congressos. No terceiro congresso nos encontramos com Mario Cardano e com a coordenação nacional e fomos para Austrália. Ainda em Reggio Emilia, para dar visibilidade para aqueles resultados que estávamos alcançando com os grupos de ouvidores de vozes, decidimos fazer a primeira associação – Noi e le voci (Nós e as vozes) –, que depois se transformou na coordenação nacional.

Atualmente, a coordenação nacional está dedicada com mais afinco à formação nos distritos sanitários, isto é, aquilo que eu fiz de 2005 a 2013: fazer formação dos trabalhadores com o objetivo de formar os grupos de ouvidores de vozes. Nesses locais, nos anos de 2011 e 2012, eu dizia: “Eu estou cansada de viajar pela Itália e reproduzir, porque, de toda maneira, nós nos encontramos em um estado terminal, emergencial, hipercrônico e ajudávamos muitas pessoas”. Nesse ínterim, eu também ensinava sobre as vozes em uma faculdade de psicologia clínica em Padova e nas escolas de especialização e aos recém-formados, para desmanchar nós e normalizar a experiência de ouvir vozes, ao menos para os psicólogos. Buscava proporcionar uma visão mais existencial do problema do que a visão da psicopatologia e da colocação da experiência “em caixinhas”, como faz o DSM.

E eu, paralelamente ao percurso feito com a coordenação nacional, levei adiante esse discurso para a universidade. Faz dois anos, desde que veio a minha doença, que eu não tenho mais a possibilidade nem de trabalhar no consultório. Eu tenho uma invalidez, uma expectativa de vida bastante dolorosa, e, então, não posso andar pela Itália e fazer formação. Assim, há dois anos criei esta associação, que é um motor para o que eu já havia criado. E não estou falando do discurso espiritual porque, na Associação Sentire le voci (“Ouvir as vozes”), temos os grupos, os seminários, os grupos de recuperação e um grupo de mediunidade; fazemos consultas individuais; e temos usado a sede da associação para acolher todos aqueles que nestes três anos disseram: “Para quem mandamos essas pessoas/menin(a)s? Para quem mandamos os familiares?” A coordenação nacional tende a deixar os cuidados mais para os distritos sanitários, enquanto nós, enquanto associação, acolhemos diretamente o(a)s menino(a)s e seus familiares.

ASSOCIAÇÃO: COMO FUNCIONA

Eu recebo trezentos e-mails ao mês, de pessoas/menino(a)s e familiares que me pedem ajuda. Isso significa sete, oito, no máximo dez novos e-mails ao dia, dos quais com a metade se consegue estabelecer um diálogo contínuo, no qual primeiro me pedem informações, contam suas histórias e o percurso que fizeram e depois perguntam sobre as estratégias, ou seja, “o que eu faço com o(a) menino(a)?” Perguntam também se devem ou não lhe dar os remédios.

Então, há dez anos, respondia e-mails de pessoas que vinham só da psiquiatria. Agora, vêm pessoas que estão em um quadro intermediário no qual os pais, antes de chegar na psiquiatria, perguntam: “O que podemos fazer?”

Nos anos anteriores, de 2005 a 2013, enquanto fazíamos uma viagem de formação, conheci muitos psiquiatras e psicoterapeutas nos vários lugares que fomos. Nesse tempo, construímos duas importantes equipes, uma em Roma e uma em Bologna. Em Roma são três psicoterapeutas e um psiquiatra e em Bologna, dois psicoterapeutas, um psiquiatra e uma neuropsicóloga.

Praticamente a pessoa vem até mim, a família vem com o menino ou a menina e fazemos a primeira entrevista. Ouço os pais, o(a) menino(a), a identificação das vozes, o que está fazendo, o que já fez e combino se a pessoa quer realmente ser ajudada ou não e o que significa “ser ajudado” para a pessoa. E deste momento em diante, já depois da primeira entrevista, damos-lhes uma primeira estratégia de controle, que ela experimenta por um mês, um mês e meio. Há possibilidade também de contato por telefone ou por e-mail. Não tendemos a monopolizar ninguém, ao contrário, tendemos a enviar os pais para fazer psicoterapia porque, de qualquer maneira, em geral, creio que por trás de um(a) menino(a) problemático(a), tem primeiro uma família problemática.

Então, com a psicoterapia se encarregando mais dos pais e eu do(a) menino(a), acompanhamos a situação com um compartilhamento contínuo, mesmo que telefonicamente.

Dos últimos 152 meninos(a)s acompanhado(a)s, 50% tinha de 15 a 25 anos. Existe ainda uma dezena de casos de sete, oito, dez anos e, nesses casos, há a colaboração com a neuropsiquiatria e a pediatra do território, além da colaboração da escola.

UMA ALTERNATIVA PARA O ATENDIMENTO

Na Itália, atualmente, a alternativa para os ouvidores de vozes ou é o exorcista ou é o psiquiatra. Em 2005, eu comecei ajudando uma pessoa de 55 anos, que a psiquiatria tinha me dito “Não há nada a fazer”. Já tinha quarenta anos que ouvia as vozes, havia se separado e depois de seis meses já não ouvia mais as vozes negativas, com uma estratégia de controle e uma participação no grupo de ouvidores. Na realidade, também com ajuda de psicoterapeuta e de psiquiatras, com um olhar um pouco mais amplo e cauteloso sobre o uso dos fármacos. Em geral, é sempre a dose que muda, o que pode fazer a diferença; existem a dose homeopática ou a dose para cavalo.

Eu dou sempre o exemplo de quando me aproximei da psiquiatria. Se o meu filho tivesse um acidente grave com uma moto scooter , eu estaria de acordo em fazer ele ter um coma farmacológico, porque isso evitaria que ele sentisse dor e daria a possibilidade de o corpo físico se reestabelecer e de não ter a memória daquele sofrimento. Por isso, é certo que em situações gravíssimas se possa sedar e aos poucos se diminua o uso do medicamento com um objetivo. A psiquiatria não oferece isso, nem na Itália, nem no resto do mundo. Na realidade nem mesmo os psicólogos sabem fazer isto se não lhe ensinam sequer um modo de enfrentamento específico.

Então, esta é a razão pela qual eu disse: “OK, continuamos a fazer isto com os/as menino(a)s e seus pais, já que em geral esta gente está rodando a Itália há cinco anos”. Sobretudo porque todos nós conseguimos oferecer um trabalho e, por isso, decidimos um processo no qual dissemos: “OK, primeira entrevista, orientação, com Cristina, os pais terão acompanhamento em outros locais”. Se a pessoa tem necessidade, ela se move. A escolha foi essa.

Atualmente, estamos buscando produzir um material para dar formação a distância. Buscamos produzir um material para fazer e vender. Vender a preço baixíssimo, de tal modo que possa chegar à casa de todos, com as informações, com os manuais, com as estatísticas. O meu objetivo é ajudar, não publicar.

Logo, visto que a casuística começa a ser importante, dissemos: “OK, comecemos a avaliar, fazer um bom monitoramento, com os indicadores bem precisos para um dia dizer que isto foi experimentado e que, analisando isto e aquilo, aí está.”

ESTRATÉGIAS

As estratégias são tarefas, na forma de exercícios, um livro de exercícios. Do ponto de vista prático, pode ser um diário, em que se escreve aquilo que as vozes dizem, todos os dias, e assim se cria, a cada vez, uma segunda história. Por exemplo, uma menina que estuda e ouve vozes, registra. Escreve sobre o controle que quer voltar a ter. Com ela, começamos com uma parte daquilo que quer controlar e buscamos descobrir desta parte, onde e como ouve as vozes. Então ela, enquanto ela estava aqui, experimentamos com um fone de ouvido, com água, com ruídos e descobrimos que sob os ruídos ela não ouvia as vozes. Então, tal como quando lê e não consegue entender o sentido, não consegue mais estudar e se deu conta no banheiro que, abrindo todas as torneiras, ela conseguia ler.

E, então, o que aconteceu? Na realidade, isto para dar um exemplo de estratégia, ela contava que para ela o mais perturbador eram os ruídos. Ou seja, a sua mente, além de criar as vozes, chegou aos ruídos. Assim, eu mantenho os ruídos e seus problemas e faço com que eles se transformem em um recurso, no sentido de que, para ela, o problema é o ruído, pego o problema e mostro que, na realidade, o ruído é um recurso que a coloca na situação de fazer exatamente aquilo que ela quer. Nesse caso, foi construída uma estratégia para evidenciar parte dela mesma e permitir a expressão de sua parte criativa, porque ela não conseguia mais manter a objetividade, a disciplina mental, ou algo do tipo.

A estratégia desenvolve mais a parte criativa, ou mais a parte objetiva da mente. Por exemplo, pedi a uma menina de 23 anos que fizesse um gráfico de sua vida. Ela fez o seu gráfico e não te conto a viagem mental que fez enquanto me contava as coisas. Ao fazer isso, ela ficou bem por duas semanas, enquanto fazia. Assim, um exercício banal que tu encontras aqui, praticamente, se a pessoa é muito presente e inteligente, dou-lhe isso e lhe digo: “Tu o fazes, depois de um mês me traz aqui, e conforme as respostas eu sei onde devo trabalhar mais.”

Outras vezes, eu inicio qualquer coisa e vejo como está, exatamente daquilo que acontece ou não acontece para ela e daí pode surgir uma segunda e no máximo uma terceira estratégia. Contudo, já na segunda estratégia, a pessoa já descobriu o sofrimento que viveu e quer elaborar mais a morte desta coisa que viveu e é um momento belíssimo. Assim, ao fazer isso me disse: “Eu descobri que o mar...” ou seja, existem coisas que a nossa criatividade nos dá, que são associações de recordações e de emoções, que dão a possibilidade de encontrar a estratégia.

Trabalhamos sobre o belo. Isto é, na realidade, precisa reencontrar o belo que te dá a vida e que te dá vontade de desejar. Desejar faz bem, faz surgir a vontade de fazer o bem e estar bem. Assim, não existem estratégias, nem protocolos.

A introspecção, dizemos, é aquilo que é mais usado, onde têm vinte vozes te dizendo vinte coisas diferentes, em que todos os dias são vinte vozes novas, o diário é um instrumento único e incomparável. É muito importante transcrever meia hora, uma hora, todos os dias, os momentos em que tu ouves somente aquilo que te dizem as vozes. Aí podes fazer o teste, lendo os registros de todas as vozes, ver se encontras um denominador comum, que pode ser a perda de energia, pode ser o sangue, que pode ser qualquer coisa, mas sempre tem um denominador comum que te remete a um incidente, a um bullying . É aquela famosa correlação que pode fazer um ouvidor. Assim, a partir daí, acontece alguma coisa de belo.

A partir daí, não prendemos a pessoa, porque nesse ínterim é quebrado dentro, é fragmentado, a enviamos logo para a psicoterapia de modo a fortificá-la. Porque, no tempo de poucas semanas, ou poucos meses, a pessoa está bem, porém, precisa logo trabalhar sobre si, porque logo é maltratado na sociedade, na escola, nas novas relações que não é capaz de sustentar. E, assim, o trabalho em rede é fundamental.

Eu conheci tanta gente bela ao longo do caminho, em tantos contextos, com tanta competência e eu queria um pouco estar com elas, fazendo minha parte, e queria que cada um fizesse a sua.

REFERÊNCIAS

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3. Baker P. The voice inside: a practical guide to coping with hearing voices [Internet]. Toronto: Canadian Mental Health Association; 2012 [citado 10 Jun 2015]. Disponível em: .
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7. Contini C. Sentire le voci: manuale di affrontamento – esercizario per l’uditore. Vignola: Self publishing; 2013.
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