versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.3 São Paulo jul./set. 2015 Epub 30-Jun-2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3145
Os antimicrobianos são uma das principais drogas utilizadas em unidade de terapia intensiva (UTI), porém seu uso indiscriminado e por tempo prolongado é um dos principais fatores envolvidos no surgimento de bactérias multirresistentes, com aumento da incidência em todos continentes.(1)
Como exemplo, segundo dados coletados entre 2004 e 2009 sobre infecções da corrente sanguínea em UTI de diversos países, os Staphylococcus aureusisolados apresentavam resistência à meticilina em 84,4% das vezes; 100% dos casos de Pseudomonas aeruginosa eram resistentes ao cefepime e 47,2% aos carbapenêmicos; 76,3% dos casos de Klebsiella pneumoniae e 66,7% de Escherichia coli eram resistentes ao ceftriaxone; e 55,3% dos casos de Acinetobacter baumanniiforam resistentes aos carbapenêmicos.(2)
Paralelamente a isso, há uma redução da disponibilidade de novos antimicrobianos no mercado. Isso se deve, também, ao rápido surgimento de cepas resistentes às novas drogas, o que possivelmente desestimula mais investimentos.(2)
Dessa forma, a melhor maneira de reduzir o surgimento de cepas resistentes, sobretudo nas UTIs, é por meio de estratégias de uso racional dos antimicrobianos, como praticando o descalonamento; evitando o tratamento de colonização; avaliando o nível sérico do antimicrobiano e o tempo adequado de antibioticoterapia; e usando marcadores biológicos que possibilitem diferenciar os casos de etiologia infecciosa ou não, como, por exemplo, a procalcitonina.(3,4)
O descalonamento consiste na adequação do esquema antimicrobiano de acordo com os resultados de cultura, ou seja, substituição de um esquema com mais drogas e/ou maior espectro por outra opção de espectro mais restrito e/ou menos drogas, porém sensíveis pelo antibiograma.(5,6)
Problema comumente visto no uso abusivo dos antimicrobianos é o tratamento de pacientes colonizados. Isso ocorre quando é instituída a terapia antibiótica devido à cultura positiva, porém sem sinais e sintomas de infecção. Isso ocorre, por exemplo, quando há culturas de secreção traqueal, urina ou ponta de cateter venoso central.
O conhecimento da microbiota pela qual o paciente é colonizado pode auxiliar em casos de necessidade de tratamento empírico, como demonstrado por Blot et al.(7) O conhecimento de colonização prévia à infecção foi associado a maiores taxas de terapia adequada em pacientes que evoluíram com bacteremia.(7)
No cenário da multirresistência, os Gram-negativos produtores de carbapenemases têm destaque, especialmente a Klebsiella pneumoniae(KPC), que são enzimas inativadoras dos carbapenêmicos. As infecções causadas por esses agentes são de importante morbimortalidade e seu tratamento é um desafio.(8)
Muitas vezes, os sistemas automatizados reportam o resultado do antibiograma com esses agentes suscetíveis, in vitro, ao imipenem e meropenem. Por isso, testes confirmatórios são recomendados na presença de cepas com sensibilidade diminuída aos carbapenêmicos ou resistência a maioria dos outros betalactâmicos.(8)
A terapia empírica de amplo espectro tem como objetivo o uso de drogas com maior cobertura antimicrobiana, potencializando a terapêutica, e reduzindo a mortalidade e a resistência bacteriana.(3-6,9,10) O reverso da moeda é o alto consumo de antimicrobianos, o maior risco de toxicidade, as interações medicamentosas e a longo prazo, e a maior incidência de diarreia porClostridium difficile.(3,4)
Infelizmente, não há protocolos que orientem qual a melhor associação de antimicrobianos de acordo com cada sítio infecção. Por isso a associação empírica de antibióticos ocorre de acordo com a epidemiologia local, o quadro clínico e os fatores de risco do paciente.(9,10)
Nos protocolos para tratamento empírico em pacientes sépticos, o uso de terapia de amplo espectro é preconizado para redução de mortalidade,(5,6,11) com recomendação de coleta de culturas antes do início do tratamento e descalonamento, assim que possível, após o resultado microbiológico. (5,6,11)
Inúmeros são os estudos que demonstraram segurança e eficácia do descalonamento, embora não haja estudos randomizados.(11-14)
Shime et al.,(12) em um estudo com bacteremia por bacilosGram-negativos, avaliaram a eficácia e a segurança do descalonamento. Embora indicado descalonamento em todos pacientes, o mesmo foi realizado em 57% dos casos. Não houve nenhum caso de falência de tratamento com redução de custo.
Joung et al.(13) avaliaram o impacto do descalonamento na mortalidade de pacientes com pneumonia em UTI. A prática ocorreu para diminuir número de antimicrobianos, de espectro ou de ambos. Houve uma tendência a menor mortalidade relacionada à pneumonia em 14 dias, mas sem significância estatística. Entretanto, a mortalidade em 30 dias foi significativamente menor nos pacientes submetidos ao descalonamento.
Também, Morel et al.(14) relataram que, em infecções gerais de UTI, não houve aumento de mortalidade com o descalonamento.
Em muitos cenários clínicos, o uso de antimicrobianos, sem a disponibilidade de dosagem sérica, pode ser muito complicado, por razões como obesidade, insuficiência renal, instabilidade hemodinâmica e infecções graves. Nessas condições, a impossibilidade de avaliar se a droga utilizada encontra-se em nível terapêutico pode acarretar falência de tratamento, toxicidade e eventos adversos.(15)
Já está bem claro, segundo diversos estudos de sepse e choque séptico, que a administração precoce de antimicrobiano reduz taxas de mortalidade, porém há pouca informação disponível sobre os esquemas de doses adequadas e desfecho clínico.(5,6)
Van Lent-Evers et al. publicaram estudo controlado randomizado com a utilização de monitorização sérica de aminoglicosídeos, com impacto no tempo de internação dos pacientes.(16)
Ao longo dos anos, a vancomicina tem sido um dos antimicrobianos mais estudados com diversas análises farmacocinéticas e em populações variadas. O uso da concentração sérica se dá no intuito de minimizar eventos adversos e de atingir concentrações adequadas, diminuindo a taxa de falência terapêutica.(17-19)
A vancomicina é um antimicrobiano glicopeptídeo disponível para uso clínico há mais de 50 anos, quando não existiam muitas opções para tratamento das infecções por Staphylococcus resistentes às penicilinas.(20)
Inicialmente, o uso da vancomicina foi associado a inúmeros eventos adversos, incluindo toxicidades relacionadas à infusão, nefrotoxicidade e ototoxicidade.(20) Possivelmente, estes consistiram em eventos relacionados às primeiras formulações, consideradas mais impuras.(20) Sua utilização foi reduzida significativamente com o surgimento das penicilinas semissintéticas (meticilina e oxacilina, por exemplo), consideradas menos tóxicas.(20)
Entretanto, a partir da década de 1980, houve um aumento expressivo na utilização da vancomicina.(21) Isso ocorreu devido ao aumento progressivo das infecções por agentes resistentes, principalmente as infecções estafilocócicas resistentes à meticilina (Staphylococcus aureus− MRSA).(21)
Em uma revisão sistemática de 15 estudos, que avaliou nefrotoxicidade durante o uso da vancomicina, a incidência variou de 5 a 43%. Maiores níveis séricos da droga (≥15mg/dL) foram associados a aumento de toxicidade renal, ocorrendo mais frequentemente em pacientes com outros fatores de risco, como internação em terapia intensiva.(22)
Forstner et al.,(23) em análise retrospectiva de pacientes com bacteremia por Staphylococcus resistentes à meticilina, encontraram nível de vancomicina como fator preditor de mortalidade, sendo que apenas 22,6% dos pacientes atingiram os níveis séricos recomendados da droga.
Em 2013, um grupo chinês publicou uma revisão e metanálise de estudos que avaliaram o benefício de monitorização sérica da vancomicina, com taxas significantemente maiores de eficácia clínica e menor de nefrotoxicidade nos pacientes submetidos a tal prática.(24)
Em 2006, o Clinical and Laboratory Standards Institute (CLSI) diminuiu o breakpoint da concentração inibitória mínima (CIM) de suscetibilidade da vancomicina de 4mg/L para <2mg/L para o MRSA. Apesar disso, a preocupação ainda é frequente, pois há uma diminuição histórica da sensibilidade dos MRSA aos glicopeptídeos, fenômeno chamado "MIC creep".(25,26) Ou seja, dentro de populações deStaphylococcus aureus consideradas suscetíveis, há uma mudança no padrão da CIM da vancomicina, gerando uma subpopulação com sensibilidade reduzida à droga. É de extrema importância que indivíduos com suspeita de infecção por essas cepas sejam avaliados criteriosamente, com conhecimentos avançados em microbiologia, para tratamento antimicrobiano adequado.
Vários estudos reportaram piores desfechos dos pacientes que evoluíram com infecções por MRSA com CIM mais elevadas.(27-29) Uma revisão sistemática e metanálise publicada em 2012 observou que quanto maior a CIM da vancomicina, maior a mortalidade independente da fonte da infecção.(27,28)
Sakoulas et al.(29) avaliaram a relação entre a CIM e a eficácia bactericida da vancomicina no tratamento de bacteremia por MRSA, e encontraram uma correlação positiva entre atividade bactericida in vitro e sucesso clínico.
Nos últimos anos, foram descritas cepas de Staphylococcus aureuscom suscetibilidade intermediária aos glicopeptídeos (GISA). Infecções por esses agentes ainda não são tão frequentes, mas a preocupação é de que a prevalência aumente pelo alto uso e pela exposição à vancomicina.(21)
As últimas recomendações da Infectious Diseases Society of America (IDSA) para o uso da vancomicina em adultos foram publicadas em 2009, e estão demonstradas no quadro 1. A concentração sérica é descrita como a forma mais precisa e prática para monitorar a eficácia da droga. Recomenda-se um nível mais alto, com monitorização agressiva, a depender do tipo de infecção, como 15 a 20mg/dL em bacteremia, endocardite, osteomielite, meningite e pneumonia nosocomial por Staphylococcus aureus.(18,19)
Quadro 1 Recomendações da Infectious Diseases Society of America (2009) para ajuste de dose terapêutica da vancomicina
Dose | Dose inicial deve ser calculada de acordo com peso, sendo 25-30mg/kg |
Doses subsequentes baseadas na concentração sérica | |
Nível sérico | Método mais eficaz e prático |
Deve ser obtido imediatamente antes da quarta dose, em paciente com função renal normal | |
Recomendação: 15-20mg/dL a cada 8 a 12 horas |
Há ampla discussão na literatura sobre o tempo de tratamento das infecções, tanto as comunitárias como as relacionadas à assistência a saúde.
Terapias curtas possuem várias vantagens, mas podem não erradicar o microrganismo, aumentando a chance de recaídas, principalmente no caso das bactérias Gram-negativas não fermentadoras.(30-33) Terapias mais prolongadas podem estar relacionadas com maior toxicidade, eventos adversos, maior risco de candidemia e diarreia por Clostridium difficile.(30)
Muitos fatores influenciam a decisão médica em relação à duração da terapia antimicrobiana, como características do microrganismo, do paciente, da infecção e das drogas disponíveis para o tratamento (Quadro 2).(30)
Quadro 2 Fatores que influenciam a duração da terapia antimicrobiana
Características do microrganismo | Perfil de sensibilidade |
Capacidade formação biofilme | |
Potencial foco metastático | |
Virulência | |
Características do paciente | Situação imunológica (idade, comorbidades e tratamentos imunossupressores) |
Presença corpo estranho (prótese metálica, valvar, cateter etc.) | |
Característica da infecção | Duração |
Localização | |
Gravidade e resposta ao tratamento | |
Característica do antimicrobiano | Perfil de sensibilidade do microrganismo |
Bactericida versus bacteriostático | |
Monoterapia versus terapia combinada |
Chastre et al.,(31) em um estudo prospectivo e randomizado comparando 8 versus 15 dias de tratamento em pneumonia associada a ventilação mecânica (PAVM), demonstraram que pacientes submetidos a menores cursos de tratamento não tiveram diferença na mortalidade nem em recorrência da infecção, exceto aqueles causados por bacilosGram-negativos não fermentadores, incluindo aPseudomonas.
Também, Corona et al.(32) avaliaram pacientes com bacteremia comunitária e hospitalar; 72,5% receberam tratamento antimicrobiano por um tempo curto, com mediana 5 dias, sendo muitos deles com choque séptico, e não houve prejuízo no desfecho do paciente. Pugh et al.(33), em revisão sistemática, avaliaram a eficácia de terapia antimicrobiana curta e longa em pacientes com pneumonia hospitalar, incluindo PAVM. Nos casos de PAVM, um curso de 7 a 8 dias de antibiótico, exceto nos casos por bactérias Gram-negativas não fermentadoras, reduziu a recorrência de PAVM por agentes multirresistentes, sem prejuízo no tratamento.
Uma nova abordagem, na tentativa de determinar a real necessidade de terapia antimicrobiana e até auxiliar no tempo de uso, é a utilização de biomarcadores, como a procalcitonina.(34-39)
A procalcitonina é um precursor peptídeo da calcitonina produzido em resposta às toxinas bacterianas e, principalmente, aos mediadores pró-inflamatórios como interleucina 1b, fator de necrose tumoral e interleucina 6. Seus níveis se elevam dentro de 6 a 12 horas do início da infecção bacteriana e sua queda é esperada após controle do quadro infeccioso.
No estudo prospectivo PRORATA, os autores encontraram uma redução no consumo de antimicrobianos de 23% para os pacientes submetidos ao protocolo de coleta de procalcitonina, sem diferença estatística na mortalidade.(34)
Schuetz et al.,(35) em revisão sistemática, descreveram a segurança e a eficácia do uso da procalcitonina em infecções respiratórias e sepse. Os autores observaram uma importante redução na exposição aos antimicrobianos em vários cenários, tanto em quadros com pouca evidência de infecção, como exacerbação de doença pulmonar obstrutiva crônica e bronquite, como menor tempo de tratamento em pacientes com pneumonia e sepse, sem aumento na taxa de mortalidade.
Diversos são os outros estudos que encontraram menores taxas de uso de antimicrobianos em pacientes submetidos a protocolos de coleta da procalcitonina, porém diversas também são as críticas: a maioria dos estudos é sobre infecções respiratórias, muito são inconclusivos, faltam critérios padronizados para a coleta da procalcitonina e inexiste um valor de corte definido. Nos pacientes graves, os níveis de procalcitonina não foram utilizados para início da terapia, mas para descontinuação do antimicrobiano, porém a diminuição dos níveis do biomarcador se correlaciona com a resolução clínica do processo infeccioso, o que permite a descontinuação segura do antimicrobiano.(36-39)
Huang et al.,(38) em estudo recente, avaliaram prospectivamente o uso da procalcitonina para descontinuação de esquema antimicrobiano em pacientes com infecção intra-abdominal, com 87% de redução no tempo de tratamento, sem aumento do risco de evento adverso.
Prkno et al.,(39) em uma metanálise, avaliaram estudos que envolviam pacientes com sepse grave tratados em UTI. Os autores descreveram uma significativa redução do tempo de antimicrobiano nos pacientes que tiveram a terapia guiada pela procalcitonina, sem impacto em mortalidade.
Apesar das várias publicações demonstrando um possível benefício do uso da procalcitonina para utilização de menor tempo de tratamento antimicrobiano, o número de casos é pequeno, muitos estudos não diferenciam pacientes clínicos e cirúrgicos, e não há critérios padronizados.(34-39)
A resistência bacteriana é uma preocupação crescente e mundial, assim como as altas taxas de mortalidade de pacientes sépticos tratados inadequadamente.
Várias estratégias de uso adequado de antibioticoterapia foram propostas e discutidas exaustivamente em literatura. Há benefício em não tratar colonização, no descalonamento de antimicrobianos, dosagem sérica de drogas, uso de biomarcadores e menor tempo de tratamento, sem diferença em mortalidade.
Questões como o valor de corte da procalcitonina ainda precisam ser esclarecidas, mas a utilização criteriosa desta e das outras estratégias pode otimizar sucesso terapêutico e minimizar os riscos do uso prolongado e inadequado dos antimicrobianos.