versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.14 no.4 Porto Alegre out./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.01715
Cada vez mais a população mundial tem apresentado um estilo de vida sedentário e uma excessiva ingestão calórica, afetando negativamente a saúde. Nesse contexto, a síndrome metabólica (SM) é definida como a junção de fatores de risco inter-relacionados, incluindo obesidade abdominal, resistência insulínica, dislipidemia e hipertensão arterial1. A interação entre tais fatores de risco favorece o surgimento e/ou a aceleração da progressão da doença aterosclerótica, resultando em elevados gastos públicos2. Nesse sentido, a aterosclerose é caracterizada como um processo patológico complexo que ocorre nas paredes das artérias, desencadeando um processo inflamatório e podendo provocar uma série de outras doenças cardiovasculares (DCVs)3. Segundo a Organização Mundial de Saúde, as DCVs lideram o ranking das dez principais causas de morte no mundo, tendo levado ao óbito sete milhões de pessoas em 20114. Dessa forma, estratégias que possam prevenir o aparecimento da aterosclerose são de extrema importância para a saúde pública.
Dentre os diversos riscos metabólicos estão os elevados níveis de colesterol no sangue3. Isso se explica pelo fato de que maiores quantidades de moléculas de colesterol provenientes de uma refeição hiperlipídica (RH) podem se acumular no endotélio vascular no momento pós-prandial, desencadeando um processo aterosclerótico. Desta forma, pode-se dizer que a aterogênese é proveniente do aumento da lipemia pós-prandial (LPP)5. A literatura sugere que mesmo em jovens saudáveis a RH pode ser de natureza aterogênica6. A RH também gera um desequilíbrio no metabolismo dos lipídios logo após a refeição, a qual pode ter como consequência maior susceptibilidade ao dano oxidativo e disfunção no endotélio vascular em vários níveis7,8.
Como forma de prevenção do desencadeamento de DCVs, o exercício físico tem sido apontado como uma importante intervenção contra fatores de risco cardiovasculares9,10. De fato, o exercício pode ser efetivo na diminuição tanto das concentrações pós-prandiais de triglicerídeos (TG) como na redução do tempo de sua exposição na circulação. Nesse sentido, especula-se que esse mecanismo esteja ligado ao gasto energético provocado pelo exercício, fazendo com que os TG sejam removidos mais rapidamente para a reposição dos estoques energéticos. Sabe-se também que a lipase lipoproteica (LLP) é a enzima-chave para a hidrólise de TG, assim, o aumento da sua atividade parece ser de grande importância10-12.
Estudos têm demonstrado que a realização do exercício aeróbio na noite anterior ao consumo de uma RH atenua a curva da LPP13-18. Tal efeito residual pós-exercício é denominado de subagudo, de forma a diferenciá-lo do efeito agudo, que ocorre durante a realização de um exercício, e do efeito crônico, que ocorre devido a uma sequência de sessões de exercício. Além disso, alguns estudos demonstram que o exercício pode atenuar o dano oxidativo, bem como as curvas de inflamação e de coagulação, que se encontram aumentadas após a RH19-22. Em contrapartida, pouco se sabe sobre a intensidade, volume e duração da sessão de exercício mais eficaz para atenuação da curva lipêmica e concomitante atenuação do estresse oxidativo e melhora da função endotelial. Devido à escassez de estudos, ainda existe uma grande lacuna na literatura envolvendo os reais efeitos de diferentes sessões de exercício físico, associadas à refeição hiperlipídica, sobre o estresse oxidativo e a função endotelial.
Dessa forma, o presente estudo objetiva realizar um levantamento e comparar os estudos publicados na literatura acerca dos efeitos agudos e subagudos do exercício físico associado à lipemia pós-prandial sobre o estresse oxidativo e a função endotelial.
O presente estudo baseia-se em uma revisão minuciosa de estudos publicados até o momento, realizada nas seguintes bases de dados: Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE) (acessado via PubMed), Scopus, Web of Science e colaboração Cochrane. Assim, foram incluídos apenas estudos transversais que avaliaram os efeitos da lipemia pós-prandial associada aos efeitos agudos/subagudos do exercício físico sobre parâmetros de estresse oxidativo e função endotelial. Foram excluídos os estudos que não apresentassem o desfecho no momento basal ou que apresentassem dados incompletos. A busca foi feita sobre estudos publicados até fevereiro de 2015 nos idiomas português, espanhol e inglês.
Nela foram empregadas as seguintes palavras-chaves na língua inglesa: lipemia pós-prandial (“Lipidemia” OR “Lipidemias” OR “Lipemia” OR “Lipemias” OR “Postprandial Lipemia” OR “PostprandialLipaemia”); exercício físico (“Exercise” [MeSH] OR “Exercises” OR “Exercise, Physical” OR “Exercises, Physical” OR “Physical Exercise” OR “PhysicalExercises” OR “Exercise, Isometric” OR “Exercises, Isometric” OR “IsometricExercises” OR “Isometric Exercise” OR “Exercise, Aerobic” OR “AerobicExercises” OR “Exercises, Aerobic” OR “Aerobic Exercise”); estresse oxidativo (“Oxidative stress” [MeSH]); e função endotelial (“Endothelium, Vascular” [MeSH] OR “Vascular Endothelium” OR “Endotheliums, Vascular” OR “Vascular Endotheliums” OR “CapillaryEndothelium” OR “CapillaryEndotheliums” OR “Endothelium, Capillary” OR “Endotheliums, Capillary” OR “vascular function” OR “endothelialfunction” OR “endothelialdysfunction” OR “endotheliumdysfunction” OR “endotheliumfunction” OR “pulse wavevelocity” OR “flow-mediateddilation” OR “Arterial stiffness”).
Foram realizadas duas buscas eletrônicas com as palavras-chaves “Lipemia Pós-prandial” e “Exercício Físico” nas bases de dados acima referidas. Na primeira busca, foi adicionado o descritor “Função Endotelial” e foram identificados 226 artigos. Desses, somente 8 estudos foram incluídos nesta revisão. Na segunda busca, o termo “Estresse Oxidativo” foi empregado e foram encontrados 28 artigos, nos quais cinco foram incluídos. A Figura 1 apresenta o organograma com a busca eletrônica manual completa. Já os resultados dos estudos selecionados encontram-se na Tabela 1.
Tabela 1 Relação dos estudos selecionados que envolveram a análise de marcadores de estresse oxidativo e função endotelial.
Estudo | População | Protocolo de exercício* | Lipemia pós-prandial | Estresse oxidativo | Função endotelial |
---|---|---|---|---|---|
Gill et al.15 | Eutróficos de meia-idade (10); Obesos de meia-idade (10) |
Subagudo em esteira a 50%; VO2máx - 90min | ↓TG exercício versus controle ↓TG AUC exercício Obesos: ↑TG AUC ↑INS AUC ↑NEFA AUC |
NA | = Função microvascular entre grupos; ↑Resposta da ACh de 25% no exercício |
Mc Clean et al.23 | Homens treinados (10) | Agudo em esteira a 60% da FCmax - 1h | ↑TG 2 h, 3 h e 4 h ↓TG 3 h e 4 h vesus 2 h no exercício ↓HDL 3 h e 4 h no controle ↑HDL 3 h no exercício = LDL |
↑NOx - 4h ↓SOD 2 h e 3 h ↓SOD 3 h controle versus exercício ↑LOOH 2 h, 3 h e 4 h ↓LOOH 3 h exercício versus controle |
↑VOP 1 h, 2 h, 3 h e 4 h ↓VOP 3 h e 4 h versus 2 h no exercício |
Clegg et al.24 | Jovens treinados (8) | Agudo em cicloergômetro a 60% da FCmax - 1h | = TG = HDL = LDL |
↑LOOH 2 h e 4 h vesus pré | ↑VOP 2 h e 4 h no controle ↓VOP 2 h e 4 h exercício versus 2 h do controle |
Silvestre et al.25 | Jovens treinados (12) | Subagudo de força e aeróbio por 75 min até 450 Kcal Agudo de força e aeróbio por 75 min até 450 Kcal |
↓TG 2 h, 3 h e 4 h exercício versus controle ↓TG AUC exercício versus controle ↑NEFA AUC exercício versus controle ↓INS AUC exercício subagudo versus controle |
NA | ↑Dilatação 6 h no exercício subagudo (2,2%) e agudo (2,8%) ↑ DAB progressivo no exercício versus controle |
Bloomer et al.26 | Afro-americanas (10) Brancas (10) |
Agudo em cicloergômetro a 65% FCmax - 45 min | ↑TG afro-americanas versus brancas | ↑MDA afro-americanas versus brancas ↑H2O2 afro-americanas versus brancas = XO |
NA |
Tyldum et al.22 | Homens de meia-idade (8) | Subagudo intervalado em esteira a 85%-90% FCmax Subagudo em esteira a 60%-70% FCmax - 47min até atingir mesmo GC |
= TG = HDL |
↓TAS 2 h e 4 h no controle ↑TAS 30 min, 2 h e 4 h no intervalado ↑TAS 30 min, 2 h e 4 h intervalado versus controle e caminhada ↑TAS 30 min, 2 h e 4 h caminhada versus controle |
↑ DAB 30 min, 2 h e 4 h intervalado versus controle e caminhada ↓DMF 2 h e 4 h no controle ↑DMF 30 min, 2 h e 4 h no intervalado ↑DMF 30 min, 2 h e 4 h caminhada versus controle |
Melton et al.27 | Mulheres pré-diabéticas (16) | Agudo a 65% da FCreserva – 45 min | ↑TG 1 h-6 h | ↓TROLOX 4 h ↑H2O2 1 h-6 h ↑XO 1 h-6 h ↑MDA 1 h-6 h |
NA |
Jenkins et al.21 | Jovens treinados (10) | Subagudo em cicloergômetro a 70% VO2máx | ↑TG 3 h e 4 h no controle ↓TG 1 h e 3 h exercício versus controle ↓TG AUC exercício versus controle |
↑EROs (CD31+/CD14-/CD34-) 4 h no controle ↑LDL-Ox 4 h no controle = NO (CD31+/CD14-/CD34-) |
NA |
Gabriel et al.20 | Jovens ativos (9) | Subagudo em esteira a 7 km/h - 30min Subagudo intervalado em cicloergômetro à 7,5% da MC – 30 s x 4 min de rec |
= TG = INS ↓ TG AUC intervalado versus controle |
↑ Carbonilas 2 h e 5 h no controle e caminhada ↑TBARS 2 h e 5 h ↓TBARS 2 h e 5 h intervalado versus caminhada e controle |
NA |
Sedgwick et al.28 | Adolescentes (13) | Subagudo intervalado em esteira a 60% VO2máx – 4 x 60 min | ↑TG 1 h, 2 h, 4 h, 4h30 e 6h30 ↓TG AUC exercício versus controle = NS |
NA | ↓DMF 32% após café da manhã e 24% após almoço no controle ↓DMF 6% após café da manhã e 10% após almoço no exercício |
Canale et al.29 | Jovens treinados (12) | Agudo em cicloergômetro a 70% FCmax - 60min Agudo intervalado em cicloergômetro a 100% Wmax - 60 s x 225 s de rec Agudo intervalado em cicloergômetro 200% Wmax – 15 s x 116 s de rec |
↑TG 2 h e 4 h | ↑MDA 2h e 4h ↑H2O2 2h e 4h = GPx ↓CAT 2 h e 4 h ↓SOD 2 h e 4 h ↑TAS intervalado 15 s versus controle e 60 min aeróbio |
NA |
Sedgwick et al.30 | Adolescentes ativos (14) | Subagudo intervalado em esteira a 70% VO2máx - 6 x 10 min | ↑TG 1 h, 3 h, 4 h, 4h30 e 6h30 ↓TG AUC exercício versus controle = INS |
NA | ↓DMF 3 h e 6h30 controle versus exercício ↑ DAB 3 h e 6h30 ↑TC 6h30 |
Augustine et al.31 | Jovens ativos (10) | Agudo de força | ↑ TG pós refeição controle versus exercício = HDL |
NA | ↓ VOP pós exercício versus pré ↑ VOP pós refeição versus pré no controle |
*Em todos os protocolos existia mais uma situação que era o controle, no qual os sujeitos não realizavam exercício físico e permaneciam em repouso.
Legenda: NA: não analisado; FCmax: frequência cardíaca máxima; VO2max: consumo máximo de oxigênio; Rec: recuperação; MC: massa corporal; TG: triglicerídeos; INS: insulina; NEFA: ácidos graxos não esterificados; AUC: área abaixo da curva; ACh: acetilcolina; DAB: diâmetro da artéria braquial; DMF: dilatação mediada por fluxo; HDL: lipoproteína de alta densidade; LDL: lipoproteína de baixa densidade; VLDL: lipoproteína de muito baixa densidade; NOx: níveis de nitritos e nitratos; SOD: superóxido dismutase; CAT: catalase; LOOH: hidroperóxidos lipídicos; VOP: velocidade de onda de pulso; TAS: status antioxidante total; EROs: espécies reativas de oxigênio; LDL-Ox: LDL oxidado; MDA: malondialdeído; XO: xantina oxidase; H2O2: hidroperóxidos lipídicos; TBARS: substâncias que reagem ao ácido tiobarbitúrico; TC: taxa de cisalhamento; IL-6: interleucina 6; TNFα: fato de necrose tumoral; PCR: proteína C reativa.
Desde que Zilversmit5 propôs que a aterogênese é um fenômeno pós-prandial, sabe-se que lipoproteínas ricas em triglicerídeos (LRTs) provenientes da dieta podem se acumular no endotélio vascular desencadeando um processo aterosclerótico, aumentando a chance de eventos cardiovasculares5. A concentração plasmática de lipídios e LRTs geralmente é mensurada no estado pós-prandial devido ao fato de consumirmos refeições regulares e contínuas, passando a maior parte do tempo em estado alimentado32. Após uma refeição rica em lipídios, os TG provenientes da dieta são hidrolisados pela LLP no intestino em ácidos graxos livres (AGL) e glicerol, que são absorvidos por enterócitos e transportados para o retículo endoplasmático para serem novamente ressintetizados em TG. Os TG são envolvidos pela apoliproproteína (apo) B-48 em uma grande partícula de quilomícron, que é secretada na circulação via linfócitos. Os quilomícrons são responsáveis pelo transporte exógeno dos lipídios do intestino. Após a lipólise pela LLP, formam-se partículas remanescentes de LRTs32,33.
As maiores classes de LRTs incluem: os quilomícrons derivados do intestino, que transportam o colesterol; as lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL), sintetizadas basicamente no fígado para exportação de TG para os tecidos; as lipoproteínas de baixa densidade (LDL), capazes de transportar o colesterol do fígado até as células de vários outros tecidos; e as lipoproteínas de alta densidade (HDL), as quais se originam basicamente no fígado e intestino34. Uma vez que o LDL é o maior transportador de colesterol plasmático, essa lipoproteína parece estar mais fortemente ligada ao processo de aterosclerose.
Após o consumo de uma RH há aumento da quantidade de partículas circulantes de colesterol, principalmente de LDL32,33. Essas partículas de LDL, quando sofrem modificação oxidativa causada por espécies reativas de oxigênio (EROs), migram para o espaço subendotelial e levam à formação de células espumosas na camada íntima35. Como resposta inflamatória, o LDL oxidado (LDL-ox) leva à ativação dos monócitos por quimiotaxia, que são transformados em macrófagos no espaço subendotelial. O LDL-ox possui grande afinidade pelo receptor scavenger do macrófago. Conforme os macrófagos continuam a fagocitar e processar os lipídios, vão se formando placas compostas especialmente de lipídios e tecido fibroso que formam os ateromas. Esses podem obstruir o lúmen arterial e diminuir o seu potencial elástico, afetando a função endotelial36-38.
O endotélio é uma estrutura vascular de extrema importância por estar localizada entre a circulação sanguínea e a musculatura vascular lisa. Além disto, o endotélio é fonte de uma grande variedade de agentes vasoativos que atuam controlando o tônus vascular, fatores de crescimento, função plaquetária e coagulação39,40. Essas substâncias vasoativas são divididas em duas classes: fator de relaxamento derivado do endotélio (FRDE) e fator de contração derivado do endotélio (FCDE). Dentre os FRDEs, o óxido nítrico (NO) desempenha uma importante função protetora contra o processo aterosclerótico, mantendo o vaso sanguíneo em um estado constante de vasodilatação41.
O NO é produzido a partir da L-arginina, em uma reação catalisada pela isoforma óxido nítrico sintase derivada do endotélio (eNOS), mediante a Ca2+/calmodulina (CaM)42, e dependente de outros fatores, como tetrahidrobiopterina (BH4). A produção vascular de NO pode ser estimulada por uma variedade de receptores agonistas, bem como pela tensão de cisalhamento produzida por fluxo sanguíneo, insulina e acetilcolina (ACh). Os dois primeiros trabalham através de sinalização independente de cálcio que é mediada, em parte, pela fosfoinositídeo 3-quinase (PI-3 Kinase), enquanto a ACh trabalha a partir de uma via dependente de cálcio7 (Figura 2).
Figura 2 Produção normal de óxido nítrico (NO) no interior da célula endotelial vascular e no estado de lipemia pós-prandial. O NO é produzido a partir da L-arginina, em uma reação catalisada pela isoforma óxido nítrico sintase derivada do endotélio (eNOS) e dependente de outros fatores, como tetrahidrobiopterina (BH4). A produção vascular de NO pode ser estimulada pela tensão de cisalhamento produzida pelo fluxo sanguíneo, insulina e acetilcolina (ACh). O NO mantém o vaso sanguíneo em um estado constante de vasodilatação. Quando há aumento da lipemia pós-prandial, o acúmulo de radicais superóxidos (O2-), provenientes da oxidação lipídica (β-oxidação), interage com o NO, formando peroxinitrito (ONOO-), afetando o tônus vascular.
O NO causa dilatação em todos os tipos de vasos sanguíneos por meio da ativação da proteína guanilato-ciclase solúvel, que promove a conversão de guanina trifosfato (GTP) em guanina monofosfato cíclico (GMPc) em células musculares lisas. Isso leva ao relaxamento da musculatura vascular lisa e a concomitante vasodilatação, principal marcador da função endotelial43. Ao mesmo tempo, mudanças na função endotelial podem ser precursoras de doenças vasculares, como a aterosclerose. O termo “disfunção endotelial” refere-se tanto ao desequilíbrio entre os agentes vasoativos que atuam controlando o tônus vascular (FRDEs e FCDEs) quanto à agregação plaquetária, coagulação e fibrinólise, porém o tônus vascular tem sido o aspecto mais estudado. Devido a esses fatores, existe uma piora no relaxamento dependente do endotélio, causada, entre outros aspectos, pela perda da biodisponibilidade do NO. Doenças como hipertensão arterial, diabetes mellitus e hipercolesterolemia podem causar danos ao endotélio, gerando disfunção endotelial que em grande parte das vezes está relacionada à aterosclerose e aos eventos cardiovasculares44.
Sendo assim, diagnósticos que sejam capazes de detectar mudanças na conformação vascular podem ser benéficos na identificação de possíveis disfunções endoteliais45.
Radicais livres são átomos ou moléculas que, devido a apresentarem um ou mais elétrons desemparelhados em suas camadas de valência, apresentam forte tendência para oxidar outras moléculas. A produção excessiva de tais moléculas está associada com o desenvolvimento de diversas doenças: câncer, aterosclerose e acidente vascular cerebral, entre outras46. Vale ressaltar também que níveis fisiológicos de radicais livres são importantes para o correto funcionamento de importantes funções em nosso organismo47.
A molécula de oxigênio (O2) é um dos radicais mais conhecidos do nosso organismo, pois em seu estado estável apresenta dois elétrons desemparelhados nos orbitais antiligantes, sendo um potente agente oxidante. A formação de radicais livres de O2 no nosso organismo está fortemente associada aos processos oxidativos que ocorrem na parte terminal da cadeia de transporte de elétrons. Nela, cerca de 95%-99% do O2 consumido é reduzido em água através de uma reação tetravalente catalisada pela citocromo oxidase48.
Os 1%-5% restantes do O2 são reduzidos de forma univalente em metabólitos denominados espécies reativas de oxigênio (EROs)49. O O2 tem forte tendência de receber somente um elétron por vez devido à sua configuração eletrônica, formando o radical superóxido (O2•-). Se esse receber mais um elétron e dois íons hidrogênio, há formação de peróxido de hidrogênio (H2O2). Por sua vez, se o H2O2 receber mais um elétron e um íon hidrogênio, forma-se o radical hidroxil (OH•), que é o radical mais reativo dos intermediários50. Além disso, EROs, como o O2•-, podem reagir com o NO para formar peroxinitrito (ONOO-), contribuindo para a diminuição da disponibilidade desse potente FRDE. O ONOO- é um forte agente oxidativo que pode também gerar formação de um ácido oxidante com características do radical hidroxil51.
Quando existe um desbalanço entre os agentes oxidantes e o sistema antioxidante, ocorre o estresse oxidativo, condição caracterizada pelo desequilíbrio a favor de um estado pró-oxidante, resultando em danos a proteínas e lipídios de membrana, dano à estrutura de DNA e desencadeando diversas sinalizações inflamatórias52.
As reações entre radicais são, geralmente, reações de terminação de cadeia, resultando na formação de produtos não radicalares estáveis. A reação em cadeia de radicais livres mais importante que ocorre nos sistemas biológicos é a oxidação de lipídios, ou seja, peroxidação lipídica53.
Quando um lipídio poliinsaturado reage com EROs ou de nitrogênio, é desencadeada a peroxidação lipídica. Essa reação pode resultar em mudanças na conformação da membrana celular. Um desses subprodutos relativamente estáveis é o malondialdeído (MDA)54. Nesse sentido, o marcador comumente mais utilizado de lipoperoxidação engloba as substâncias reativas ao ácido tiobarbitúrico (TBARS). A oxidação de proteínas e/ou aminoácidos por EROs é acompanhada do aumento dos níveis de carbonilas e aminoácidos oxidados, utilizados como índices para verificação do dano proteico47. Antioxidantes são substâncias que reduzem, retardam ou previnem os efeitos deletérios dos radicais e das EROs. O sistema de defesa antioxidante está dividido em enzimático e não enzimático. Os antioxidantes enzimáticos incluem superóxido dismutase (SOD), catalase (CAT) e glutationa peroxidase (GPx). Entre os antioxidantes não enzimáticos (principalmente provenientes da alimentação), encontram-se as vitaminas A, C e E, os tióis e outros. Com o propósito de analisar globalmente a quantidade dos diversos marcadores antioxidantes não enzimáticos, tem sido utilizada a mensuração da capacidade antioxidante total (TAS)47,54,55.
Após o consumo de uma refeição hiperlipídica, há aumento no influxo de AGL no tecido muscular, adiposo e hepático, bem como nas células endoteliais. Desse modo, há um aumento na β-oxidação e, consequentemente, dos processos oxidativos que ocorrem na parte terminal da cadeia de transporte de elétrons. Grande parte do O2 consumido é reduzido em água através de uma reação tetravalente catalisada pela citocromo oxidase, embora esse aumento da β-oxidação crie uma superprodução de doadores de elétrons, sobrecarregando sua cadeia de transporte. Como resultado, há acúmulo de elétrons, fazendo com que o O2 restante seja reduzido de forma univalente a metabólitos denominados EROs49,56.
Morel et al.35 sugeriram que as EROs desempenham papel importante do desenvolvimento da aterosclerose via aumento da oxidação de LDL57. O LDL é uma gotícula oleosa que contém um núcleo hidrofóbico de ésteres de colesterol e uma monocamada de fosfolipídios e colesterol livre que cobre cerca de 70% da sua superfície. Os 30% restantes de sua superfície são cobertos por uma grande apolipoproteína (apo) B-100 que estabiliza a partícula na fase aquosa do sangue58. A absorção celular do LDL é medida pelos receptores clássicos B/E ou por receptores scavengers (varredores). As interações específicas entre a apoB-100 e os receptores celulares são o principal foco de interesse, pois esse mecanismo de reconhecimento está intimamente envolvido no aparecimento e progressão de várias doenças, tais como hipercolesterolemia, hiperlipidemia e aterosclerose59.
Na fase inicial de modificação do LDL, os componentes lipídicos reagem com agentes oxidativos, resultando em uma reação em cadeia que produz diversos tipos de produtos oxidativos de lipídios. Então, esses produtos reagem com a apoB diretamente, resultando em mudanças nas cadeias de aminoácidos e na clivagem de ligações peptídicas. O LDL minimamente modificado (LDL-MM) pode conter produtos oxidativos de lipídios sem modificação proteica, uma vez que possui maior afinidade com o receptor de LDL do que com o receptor scavenger. A modificação da proteína apoB continua até perder a afinidade com o receptor do LDL, então reconhecido pelo receptor scavenger do macrófago60. Como resposta inflamatória, o LDL oxidado (LDL-ox) leva à ativação dos monócitos por quimiotaxia, que são transformados em macrófagos no espaço subendotelial. Conforme os macrófagos começam a fagocitar os lipídios, vão se formando células espumosas, derivadas dos macrófagos, que contêm lipídios principalmente sobre forma de colesterol livre. A formação dessas células pode obstruir o lúmen arterial e diminuir o seu potencial elástico. Após a ruptura da placa, os LDL-ox são rapidamente liberados das lesões na circulação, o que provoca um aumento temporal dos níveis circulantes de LDL-ox36,37,60 (Figura 3).
Figura 3 Processo de formação da placa aterosclerótica. O LDL sofre oxidação gradual até a formação do LDL minimamente modificado (LDL-MM), que pode conter produtos oxidativos de lipídios sem modificação proteica. O LDL somente passa a ser chamado de oxidado (LDL-ox) quando existe modificação da proteína apoB e o LDL perde a afinidade com o seu receptor, tornando-se reconhecido pelo receptor scavenger do macrófago. Como resposta inflamatória, LDL-ox leva à ativação dos monócitos, que são transformados em macrófagos no espaço subendotelial. Conforme os macrófagos começam a fagocitar os lipídios, vão se formando células espumosas, derivadas dos macrófagos, que contêm lipídios principalmente sobre forma de colesterol livre.
Ainda, após o consumo de uma RH, o endotélio vascular pode ser comprometido diretamente através do estresse oxidativo gerado pela diminuição da biodisponibilidade de NO (Figura 2). O acúmulo de radicais superóxidos, provenientes da oxidação lipídica, interage com o NO formando peroxinitrito, contribuindo para a diminuição desse FRDE e, consequentemente, afetando o tônus vascular42,51.
Sabe-se que o consumo excessivo de glicose e AGL pode sobrecarregar o ciclo de Krebs, levando a produção excessiva de O2•- na cadeia transportadora de elétrons e, consequentemente, causando aumento dos danos relacionados ao estresse oxidativo61. Assim, a hipertrigliceridemia pós-prandial estimula a produção de O2 pelos leucócitos, possivelmente via maior produção de marcadores inflamatórios como interleucina-6 e interleucina-823,62. De fato, a aumentada produção de EROs devida ao catabolismo dos macronutrientes é denominada de estresse oxidativo pós-prandial63. Nesse sentido, os possíveis efeitos agudos e subagudos da prática de uma sessão de exercício físico sobre a atenuação do estresse oxidativo pós-prandial têm sido investigados (Figura 4).
Figura 4 Possíveis benefícios do exercício sobre o estresse oxidativo pós-prandial. Após o consumo de uma refeição hiperlipídica, há aumento dos níveis de lipoproteínas ricas em triglicerídeos (LRTs), que estimulam a produção de citocinas (IL-6 e IL-8) pelos leucócitos e uma maior atividade do Ciclo de Krebs e da cadeia transportadora de elétrons. Por sua vez, os ácidos graxos poliinsaturados provenientes da refeição podem reagir com espécies reativas de oxigênio (EROs) e nitrogênio (ERNs) previamente produzidas, como superóxido (O2•-), peróxido de hidrogênio (H2O2), radical hidroxila (OH•) e peroxinitrito (ONOO-). As EROs oxidam o LDL (LDL-ox) que, por sua vez, é fagocitado pelo macrófago, desencadeando um processo aterosclerótico a longo prazo. O exercício físico pode reduzir os níveis de LRTs e citocinas e também prevenir os danos da lipoperoxidação.
Em um estudo envolvendo homens recreacionalmente treinados, 60 minutos de caminhada realizados na intensidade de 60% da frequência cardíaca máxima (FCmax) horas antes da RH não foram capazes de prevenir o estresse oxidativo associado à hipertrigliceridemia quando comparada à condição controle24. Além disso, o exercício físico não preveniu o estresse oxidativo associado à hipertrigliceridemia pós-prandial em mulheres pré-diabéticas27. Em contrapartida, em uma investigação envolvendo um protocolo de estudo bastante similar e a mesma população, o exercício físico resultou no aumento da atividade da SOD três horas após a RH, bem como em menores níveis de lipoperoxidação, no mesmo momento, quando comparado com a condição controle23. Os autores relacionam esse resultado com a maior taxa de remoção de TG e maior atividade da SOD provocada pelo exercício23,64.
Partindo-se do pressuposto que, agudamente, sessões de exercício físico são capazes de estimular a defesa antioxidante29,65, intervenções têm investigado se esse efeito perdura após a RH. Foi demonstrado que uma sessão de exercício físico realizada no dia anterior é capaz de aumentar a TAS horas após a RH22. Recentemente foram comparados os efeitos de uma sessão de exercício aeróbico tradicional e de duas sessões de exercício intervalado de alta intensidade realizadas horas antes da RH. Observou-se que nenhuma das condições foi capaz de alterar a atividade sérica/plasmática de enzimas antioxidantes ou de diminuir os níveis de oxidação lipídica e/ou proteica em homens bem treinados29. Entre outras especulações, os autores atribuem tais resultados a ausência de modificações provocadas pelo exercício na própria remoção pós-prandial de TG29.
Ao mesmo tempo, a realização de uma sessão de exercício aeróbico moderado no dia anterior à refeição hiperlipídica também preveniu o aumento dos níveis de EROs em células relacionadas à função endotelial21. Ainda assim, os efeitos protetores da realização prévia de exercício físico sobre a produção de EROs pós-prandial em células angiogênicas parece ser mitocondrial-dependente21. Em consonância, uma sessão de exercício de alta intensidade realizada no dia anterior ao da refeição hiperlipídica resultou na diminuição dos níveis de TBARS e carbonilas em comparação com o exercício de caminhada tradicional20. Em contrapartida, uma sessão de 45 minutos em cicloergômetro não atenuou o estresse oxidativo pós-prandial em mulheres26.
Cabe salientar que os trabalhos que não apresentaram diferenças significativas sobre os parâmetros de estresse oxidativo nos momentos pós-prandiais entre os protocolos de exercício e controle também não encontraram diferenças na LPP, demonstrando que o exercício não se mostrou efetivo para redução da curva lipêmica24,26,27. As variáveis de estresse oxidativo avaliadas nesses estudos são marcadores de peroxidação lipídica, os quais estão intimamente relacionados com altos níveis plasmáticos de TG. Sendo assim, parece que, nesse caso, os efeitos dos marcadores de estresse oxidativo respondem de forma secundária e de maneira similar ao comportamento da LPP26.
Resumidamente, os efeitos agudos e subagudos de uma sessão de exercício físico sobre parâmetros de estresse oxidativo associados à RH variam de acordo com a modalidade, duração e intensidade da sessão de exercício, bem como do tempo decorrido até a RH, dos marcadores escolhidos, da composição da refeição e da população estudada.
O consumo de uma RH pode induzir ao dano na função endotelial devido ao aumento da produção de EROs no momento pós-prandial66. A literatura científica tem demonstrado que uma sessão única de exercício físico já seria o bastante para atenuar os efeitos deletérios de uma RH sobre o endotélio vascular23. Diversos estudos, ao longo dos anos, têm investigado a eficácia aguda ou subaguda de uma sessão de exercício aeróbico ou de força em relação às variáveis de função endotelial.
De forma geral, todos os estudos encontraram diferença significativa entre o protocolo controle e o exercício físico, independentemente do tipo de exercício físico realizado, aeróbio ou de força, ou do dia em que a sessão foi realizada. Entretanto, as metodologias para a avaliação da função endotelial ainda são muito diversas, não havendo consenso na literatura da mais adequada para medir a vasodilatação derivada do endotélio. Dentre as técnicas mais utilizadas estão a dilatação mediada pelo fluxo (DMF) e/ou dilatação da artéria braquial (DAB)22,28,30,66 e velocidade de onda de pulso (VOP)23,24,31, sendo ainda possível avaliar a Resposta da Acetilcolina15.
Após o consumo da RH, os valores de DMF e VOP tendem a cair significativamente entre 2 h e 4 h no momento pós-prandial22-24, podendo ainda ser percebida a diminuição da função endotelial por até 6h3030 após. Tanto o exercício intervalado à 85%-90% quanto o contínuo à 60% do consumo máximo de oxigênio (VO2max) têm se mostrado eficazes para atenuar esses valores, mesmo quando a sessão é realizada no dia anterior, o que aponta para um efeito prolongado e tardio do exercício físico como agente cardioprotetor15,22-24,30. O exercício de força apresenta o mesmo comportamento em relação à atenuação da disfunção endotelial25,31.
Dessa forma, diferentemente dos efeitos do exercício físico sobre parâmetros de estresse oxidativo associados à RH, a atenuação da disfunção endotelial parece estar muito mais vinculada à prática de exercício físico do que a modalidade, duração e intensidade da sessão de exercício, bem como a outros fatores, como população estudada.
A partir da revisão realizada é possível concluir que os efeitos agudos e subagudos do exercício físico são capazes de atenuar os parâmetros de risco de desenvolvimento de DCVs após o consumo de uma RH. Os marcadores de estresse oxidativo parecem variar de acordo com a modalidade, duração e intensidade da sessão de exercício, bem como do tempo decorrido até a RH, dos marcadores escolhidos, da composição da refeição e da população estudada. Em contrapartida, a atenuação da disfunção endotelial após a realização de uma sessão de exercício físico acontece independentemente dessas variáveis.