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Estrutura do MHC e função – apresentação de antígenos. Parte 1

Estrutura do MHC e função – apresentação de antígenos. Parte 1

Autores:

Anna Carla Goldberg,
Luiz Vicente Rizzo

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.13 no.1 São Paulo jan./mar. 2015 Epub 24-Mar-2015

http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RB3122

MOLÉCULAS HLA: UMA CONEXÃO DIRETA ENTRE ESTRUTURA E FUNÇÃO DE APRESENTAÇÃO DE ANTÍGENO

No genoma de mamíferos e, mais especificamente, no genoma humano, a região mais variável conhecida forma o complexo principal de histocompatibilidade (MHC - Major Histocompatibility Complex), que carrega um grande número de diferentes loci, que codificam genes funcionais. Alguns desses genes também exibem muitas variantes (alelos), caracterizando uma região extremamente polimórfica.( 1 ) Esses genes pertencem ao sistema de antígenos leucocitários humanos (HLA, human leukocyte antigen) e codificam as principais moléculas encarregadas da apresentação do antígeno na superfície celular. O sistema HLA foi descrito por J. Dausset, em 1958, em um trabalho que lhe rendeu o Prêmio Nobel, em 1980.( 2 ) Até abril de 2014, um total de 11.225 alelos sequenciados já era conhecido em todo o mundo, todos encontrados nos 30 genes HLA localizados na região genômica do MHC (http://www.ebi.ac.uk/ipd/imgt/hla/stats.html). É importante notar que, embora esses genes sejam conhecidos como HLA, muitos autores usam MHC para designar as moléculas resultantes da expressão desses genes, e ambos os nomes são usados no decorrer deste texto.

Em humanos, a região do MHC, com aproximadamente 4.000kb de comprimento, localiza-se no braço curto do cromossomo 6 (6p 21.3). Esses genes, expressos ou não, estão dispostos em três regiões ou classes genômicas. A região mais distante corresponde ao MHC de classe I, que contém os genes que codificam as cadeias pesadas clássicas (1a) HLA- A, -B, e -C. Um grau extraordinário de polimorfismo caracteriza esses genes (2.735 alelos nos lócus em HLA-A, 3.455 alelos em HLA-B e 2.259 alelos em HLA-C) e a maioria desses alelos é funcional. Também existem os chamados loci não clássicos de HLA de classe I, que codificam os genes HLA- E, -F, -G, HFE, e MICA e MICB (relacionado a MHC de classe I A e B), que são expressos, mas são menos variáveis. Com a notável exceção dos genes MIC, todas moléculas HLA de classe I (HLAI) formam heterodímeros com a cadeia invariante β2-microglobulina, codificada por um gene no cromossomo 15. Todas as células nucleadas expressam moléculas de classe I em sua superfície celular.

Por outro lado, os genes MHC de classe II que codificam as duas cadeias que formam os heterodímeros funcionais HLA-DR, HLA-DQ, HLA-DP, HLA-DM e HLA-DO (2.649 alelos conhecidos) se localizam na porção mais centromérica da região do MHC. Inicialmente chamada de Ir (do inglês, immune response), desde cedo esses genes têm sido reconhecidos por seu controle da resposta imunológica.( 3 ) Eles exibem expressão restrita, sendo predominantemente expressos em células apresentadoras de antígenos (APC, do inglês antigen-presenting cells), como macrófagos, células dendríticas, células de Langerhans e de Kupffer, assim como linfócitos B. Algumas células exibem HLA classe II (HLAII) sob certas condições anômalas. Este é o caso de tireócitos( 4 ) e de células epiteliais intestinais,( 5 ) onde a expressão é induzida durante processos inflamatórios locais.

Uma terceira região genômica, localizada entre os dois, carrega numerosos genes não relacionados ao MHC, alguns dos quais têm importantes funções imunológicas. Exemplos bem conhecidos são os genes CBF, C2 e C4A do complemento, o grupo de genes de fatores de necrose tumoral (TNF), e genes que codificam chaperonas, as proteínas de choque térmico 70 (HSP70).( 6 , 7 ) A lista dos muitos genes adicionais inclui as proteínas transportadoras de peptídeos TAP1 e TAP2, e PSMB8 e PSMB9, genes que codificam componentes do β-imunoproteassomo, ao qual retornaremos mais adiante neste texto.( 8 ) A organização genômica da região MHC é um aspecto essencial para a compreensão de como a expressão e a formação das moléculas de HLA são reguladas e acopladas à sua função de apresentação de antígeno.

Tanto genes de classe I como os de classe II apresentam diferentes sequências regulatórias localizadas em sua porção à montante (upstream) (5’), que garantem a transcrição constitutiva e a regulação de expressão induzida por citocinas, mas algumas também são compartilhadas por genes HLA da mesma classe e, portanto, permitem a transcrição em paralelo. Os genes HLA são também regulados por transativadores específicos de classe (class-specific trans-activators), respectivamente CITA( 9 ) e CIITA,( 10 ) e o fator nuclear kappa B (NF-Kb) ubíquo é um regulador de HLAI compartilhado com muitos outros genes. Estes e outros fatores são responsáveis pelo ajuste fino da produção e função das moléculas HLA em cada tecido ou tipo celular.

As proteínas HLAI e HLAII exibem forte similaridade estrutural. Assim, como o heterodímero de classe I é formado por uma cadeia α pesada e a β2-microglobulina, as moléculas de classe II são também heterodímeros formados por cadeias α e β, codificadas pelos genes A e B, respectivamente. Na região MHC de classe II, encontramos apenas HLA-DRA1, mas, dependendo do haplótipo (conjunto de genes encontrados no mesmo trecho de cromossomos), um ou mais genes HLA-DRB expressos poderão ser encontrados. Assim, alguns haplótipos carregam um único alelo funcional HLA-DRB1, enquanto outros carregam alelos adicionais expressos nos loci HLA-DRB3, 4 ou 5. Todos esses genes DRB exibem um alto grau de polimorfismo. Por exemplo, 1.091 diferentes cadeias DR beta são conhecidas. Por outro lado, os loci HLA-DQA1 e HLA-DQB1, HLA-DPA1 e HLA-DPB1, todos polimórficos, formam heterodímeros HLA-DQ e HLA-DP, tanto em cis como em trans, com estrutura e função similar, mas não idêntica a de HLA-DR. Genes não clássicos de classe II formam as moléculas invariantes HLA-DO e HLA-DM, que desempenham funções altamente especializadas na apresentação de peptídeos.

Cada um de nós carrega um par de cromossomos 6 e, portanto, expressará na superfície de uma única célula apresentadora de antígeno 1 ou 2 HLA-A, 1 ou 2 HLA-B, 1 ou 2 HLA-C, vários HLA 1b, além de 1 a 4 moléculas HLA-DR, 1 a 4 HLA-DQ, 1 a 4 HLA-DP, perfazendo centenas de milhares de diferentes unidades na superfície de cada célula.( 11 , 12 ) À medida que cada um de nós carrega um conjunto singular de genes HLA, a diversidade das combinações possíveis presentes em cada indivíduo em uma dada população é imensa. Essa diversidade de HLA, aliada à multiplicidade de alelos, leva ao extraordinário potencial de apresentação de antígeno não apenas em um indivíduo, mas em um grupo de indivíduos − um conceito que pode ser estendido para uma população inteira.

Em contraste com essa variabilidade, o desenho básico de uma molécula HLAI ou HLAII é muito similar, formando uma taça ancorada à membrana celular, por meio de uma ou duas cadeias, sendo que a cadeia curta β2-microglobulina confere estabilidade sem se fixar na membrana. A parte externa da taça, que inclui os domínios alfa 1 e alfa 2, nas moléculas de classe I, e domínios alfa 1 e beta 1, nas moléculas da classe II, exibe uma fenda, constituída de um piso composto de 8 fitas antiparalelas, tipo folheto β e uma borda em α-hélice.( 13 , 14 ) As fendas HLA têm bolsões em que os peptídeos derivados dos antígenos (geralmente com comprimento de 9 aminoácidos) estão alojados para apresentação ao receptor de célula-T (TCR, T-cell receptor).( 15 ) A fenda HLAI formada apenas pela cadeia α é fechada, mas a fenda HLAII formada pela justaposição de cadeias α e β é aberta, o que permite o alojamento de peptídeos mais longos que a própria fenda. Os trabalhos originais mencionados acima também contêm visualizações detalhadas computadorizadas dessas moléculas complexas.

A singularidade desse desenho molecular é ainda mais evidente quando as milhares de sequências dos alelos conhecidos são comparadas. A variabilidade das proteínas, refletidas na sequência correspondente de DNA, é predominantemente agrupada em certas porções dos genes. Essas regiões hipervariáveis, como ocorre com receptores de imunoglobulina e TCR, são encontradas principalmente na parte externa da molécula, dentro e nas bordas da fenda, isto é, bem no local onde os peptídeos estão alojados, em contraste com o resto da molécula, ou seja, o domínio alfa 3 nas moléculas classe I, e domínios alfa 2 e beta 3 nas moléculas de classe II, onde a sequência é muito preservada. Os aminoácidos que formam o piso e os lados da fenda criam um motivo ou padrão, específico para cada alelo, que define o tipo de peptídeo que se encaixará na fenda, ligando-se àquela molécula HLA.( 16 ) É importante salientar que os peptídeos necessitam apenas se fixar a alguns dos resíduos disponíveis dentro da fenda, deixando o restante dos aminoácidos na sequência livre. A despeito das limitações impostas por um padrão único, esse ancoramento limitado permite que uma variedade impressionante de peptídeos seja apresentada por cada fenda HLA.( 17 )

A principal razão de garantia do sucesso de apresentação de peptídeos por moléculas HLA se torna clara quando consideramos as moléculas responsáveis por reconhecer o complexo peptídeo-HLA: o TCR.

Os TCRs são produzidos por rearranjos de genes desenvolvidos por um complexo enzimático singular, chamado rag (recombination-activating gene), em que segmentos de genes são ajuntados para formar um novo gene que codifica TCRs alfa e beta, ou gama e delta, enquanto elimina as sequências de DNA intervenientes. Por exemplo, para formar a cadeia beta de um TCR, 52 segmentos V (variáveis), 2 segmentos D (diversos) e 13 segmentos J (juncionais) são redistribuídos de maneira a formar um único segmento funcional VDJ, que será processado juntamente de um segmento C (constante), para formar a cadeia beta final. Esse rearranjo do DNA dos genes de TCR é bem aleatório e, assim, cada linfócito-T expressará um TCR singular. Pesquisadores calculam que 1016 αβ e 1018 γδ TCRs podem ser gerados, cada qual com uma porção altamente variável especificamente posicionada na parte da molécula de contato com o complexo HLA-peptídeo. Isso garante uma ampla variedade de variantes moleculares capazes de reconhecer qualquer antígeno presente no sistema. Na segunda parte desta revisão, mostraremos como esses antígenos são preparados para apresentação ao linfócito T a fim de garantir um reconhecimento, que levará à ativação e à expansão clonal das células-T encarregadas da resposta imune de adaptação. Finalmente, o desenho único e a variabilidade das moléculas HLA classe I servem também para regular as células natural killer (NK) por meio de um grupo específico de receptores similares a imunoglobulinas, chamados killer-cell immunoglobulin-like receptors (KIRs).( 18 ) Embora tenha sido demonstrado que peptídeos interferem no reconhecimento por KIRs,( 19 ) a apresentação de antígenos não está envolvida nas funções básicas desses pares de ligante-receptor e está além do escopo deste artigo. Para mais informações, indicamos excelentes revisões.( 18 , 20 , 21 )

REFERÊNCIAS

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