versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.1 São Paulo jan./mar. 2015 Epub 24-Mar-2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RB3123
O papel central do MHC na resposta imune a antígenos proteicos foi sugerido na década de 1970, quando evidências experimentais demonstraram que os linfócitos T reconhecem porções de antígenos (peptídeos) apenas quando ligados de forma não covalente a produtos dos genes HLA. A análise cristalográfica da molécula de HLA de classe I (HLAI), realizada em 1987,( 1 ) revelou como esses peptídeos se aninham na parte externa da molécula, ou seja, no sulco de ligação de peptídeos.
De maneira geral, as proteínas são degradadas dentro das células, e os peptídeos derivados desse processo são acoplados às moléculas de HLA e transportados para a superfície celular. As moléculas HLA de classe I e II (HLAII) transportam peptídeos produzidos em compartimentos celulares distintos (proteassomos e endossomos, respectivamente), nos quais as diferentes estratégias de proteólise usadas geram a variedade de peptídeos necessários para uma apresentação eficiente para o reconhecimento pelos receptores de células T. O HLA com peptídeo de um lado, ligando-se ao receptor de célula T do outro, forma o complexo trimolecular que desencadeia e confere a especificidade da resposta imune efetora.( 2 )
O perfil de peptídeos eluídos de HLAI confirma que uma mesma molécula pode apresentar sequências diversificadas (aproximadamente 10 mil peptídeos distintos por célula). Ademais, o perfil de peptídeos apresentados por cada molécula varia conforme o padrão da fenda da molécula HLA.( 3 , 4 ) Essa variedade desconcertante de peptídeos é produzida principalmente no citosol, dentro dos proteassomos, estruturas complexas de múltiplos componentes capazes de realizar proteólise enzimática, e são, então, de origem endógena.( 2 ) A diversidade de peptídeos é aumentada ainda mais pela substituição de componentes do proteossomo, durante a resposta imune, que leva à produção de novos fragmentos peptídicos.( 5 )
As proteínas envolvidas no metabolismo celular são sintetizadas no retículo endoplasmático e, quando desnecessárias ou defeituosas (chamadas DRiPs, (Defective Ribosomal Proteins), ou seja, truncadas ou alteradas em função de erros no dobramento das proteínas ou em sua tradução,( 6 ) são acopladas a unidades de ubiquitina.( 7 - 9 ) A cauda de ubiquitinas orienta o transporte para um complexo enzimático no citoplasma, o proteassoma, para processamento no seu núcleo catalítico, gerando fragmentos com nove aminoácidos de comprimento. Outros componentes desse complexo proteossomal realizam a ligação e o desdobramento de proteínas marcadas com ubiquitina, em preparação para sua fragmentação.( 10 ) Essa importante via de degradação de proteínas tem mostrado ser uma função fundamental e universal da célula, e seus descobridores, A. Ciechanover, A. Hershko e I. Rose, receberam o Prêmio Nobel de Química, em 2004.
Os peptídeos que sobrevivem ao processamento nos proteossomos são transferidos para o retículo endoplasmático pelo heterodímero TAP (Transporter associated with Antigen Processing).( 11 ) A montagem de uma molécula de HLAI, seu dobramento, e o acoplamento do peptídeo são processos complexos, que ocorrem apenas com o auxílio de proteínas acessórias que agem como chaperonas.( 11 ) A lista inclui calnexina, que confere estabilidade e ERp57 (uma dissulfeto isomerase), que ajuda a ligação da beta-2 microglobulina. A calreticulina, então, substitui a calnexina e, junto de ERp57 e da tapasina, deve formar o complexo de carga de peptídeos (PLC - peptide-loading complex) encarregado de introduzir o peptídeo e favorecer sua inserção correta na molécula HLAI nascente.( 12 , 13 ) A tapasina também serve de ponte entre PLC e TAP, que fornece os peptídeos.( 13 ) Finalmente, as peptidases associadas ao retículo endoplasmático (endoplasmic reticulum-associated amino peptidases − ERAP1 e ERAP2) efetuam o ajuste fino aparando os peptídeos até o tamanho de 8 a 10 aminoácidos, ideal para o acoplamento a HLAI.( 14 ) Finalmente, o heterodímero estável, constituído por cadeia pesada α, β2-microglobulina e peptídeo, é transportado através do complexo de Golgi para sua glicosilação e posterior chegada à superfície celular. Esta é a principal via para a apresentação de antígenos de classe I, e na ausência de peptídeos, HLAI exibe uma meia-vida muito curta, sendo rapidamente degradado. Em outras palavras, as moléculas vazias de HLA são a exceção.
Essa via de processamento de antígenos, chamada de citosólica ou endógena, é perfeitamente adequada para a apresentação de peptídeos virais quando a célula é infectada, já que os vírus empregam a maquinaria celular para produzir suas próprias proteínas e novas partículas virais. Entretanto, alguns estudos demonstraram que sua apresentação é até mais eficiente que a de outros peptídeos (1,5 hora em vez de 8 horas, que é o usual). Essa rápida degradação é possível porque proteínas virais são vistas como DRiPs pela célula.( 2 , 15 ) A resposta citotóxica (via linfócitos T CD8+) contra vírus é um aspecto essencial da defesa pelo organismo infectado e é frequentemente alvo de processos de evasão imune orquestrados pelo patógeno invasor. Há vírus (exemplos: citomegalovírus, herpes-vírus simples ou da imunodeficiência humana) que sintetizam proteínas capazes de interromper o fluxo de peptídeos, de bloquear a proteína TAP ou a produção de moléculas de classe I.( 16 )
Além dos processos já descritos, há outros, vários dos quais identificados recentemente, responsáveis pela diversificação adicional tanto da apresentação por HLA de classe I quanto da geração dos peptídeos. Segue abaixo uma lista dessas vias adicionais:
diferenças na velocidade de transporte das moléculas HLA de classe I para a superfície celular, sendo a do HLA-B de maior eficiência;( 17 )
apresentação por HLA-E (não clássica) de peptídeos derivados da sequência líder de HLAI clássica para o reconhecimento por receptores CD94/NKG2A em células natural killer (NK);( 18 )
apresentação por HLA-G (não clássica) na interface materno-fetal, sendo a expressão de HLAI clássica muito baixa, para reconhecimento pelos receptores KIR2DL4 em células NK;( 19 , 20 )
apresentação não de peptídeos, mas de glicolipídios por moléculas CD1 (a-d) (pertencentes à família HLA) para reconhecimento linfócitos T do tipo γδ;( 21 , 22 )
troca de componentes do proteossomo, na presença de interferon-γ secretado por células T ativadas. Componentes da subunidade 20S são substituídos para constituir um imunoproteassomo, transitório, capaz de produzir peptídeos mais imunogênicos;( 23 , 24 )
formação de neopeptídeos pela ligação de dois fragmentos menores gerados durante a passagem pelo proteossomo. Esses peptídeos são imunogênicos e interpretados como um mecanismo adicional para o reconhecimento de células tumorais pelos linfócitos T citotóxicos;( 2 )
formação de peptídeos alternativos por proteases não convencionais como a thimet oligopeptidase ou a enzima conversora de angiotensina;( 25 , 26 )
alterações no peptidoma em função de padrões modificados de transcrição de RNA mensageiro operados por micro-RNAs( 27 ) ou a geração de peptídeos imunogênicos produzidos de RNA mensageiros deliberadamente truncados;( 28 )
transferência de peptídeos entre células por meio das junções intercelulares;( 29 )
apresentação cruzada de peptídeos de fontes exógenas( 30 ) ou transportadas para dentro da célula por Hsp70.( 31 )
A despeito da grande similaridade estrutural e da função compartilhada de apresentação de antígenos, HLAI e HLAII exibem diferenças importantes no perfil de expressão e na fonte de peptídeos carreados, levando a um papel muito diferente na resposta imune adaptativa.
Em moléculas HLAII, a fenda também está quase sempre preenchida com um peptídeo, mas agora resultante de processamento de antígenos exógenos transferidos para dentro (internalizadas) de células especializadas apresentadoras de antígeno. Os linfócitos B internalizam antígenos de forma única, capturando-as pela ligação à imunoglobulina de superfície celular, a saber, os receptores de célula B.( 32 ) As células dendríticas e os macrófagos são capazes de internalizar não apenas patógenos, mas também matéria particulada resultante de necrose celular, complexos imunes, fragmentos de célula opsonizados pelo complemento, e corpos apoptóticos − todos fontes adicionais de material estranho ao organismo ou de proteínas próprias, que devem ser apresentadas por HLAII.( 33 )
Novas formas de captura de antígenos recentemente identificadas incluem a ligação ao DEC205, um receptor capaz de transportar o antígeno diretamente a endossomos tardios, nos quais é feita a montagem final de HLAII;( 34 ) a trogocitose, na qual fragmentos de membrana plasmática são trocados entre células;( 35 ) a transferência intercelular por exossomos,( 36 ) que é também uma fonte de antígenos tumorais para ação de células T citotóxicas( 37 ) e a autofagia.( 3 , 38 ) Os autofagossomos, assim como a endocitose de proteínas citosólicas e nucleares (microautofagia), são importantes fontes que aumentam a oferta de proteínas a serem apresentadas.( 3 )
A ativação e a subsequente maturação do fagossomo ou autofagossomo ocorrem quando padrões moleculares associados ao patógeno ou ao dano (PAMPs e DAMPs, siglas respectivamente do inglês pathogen-associated e damage-associated molecular patterns) são reconhecidos por receptores específicos Toll-like (por exemplo, TLR4 ou TLR9)( 39 ) e são necessárias para a fusão com os lisossomos. Durante a digestão pelas enzimas lisossômicas, são gerados fragmentos de diferentes tamanhos, geralmente cerca de 25 aminoácidos e, portanto, mais longos que os produzidos por degradação proteassomal. Esses peptídeos são aparados até um tamanho final de 14 ou 15 resíduos.( 40 ) Vários fatores devem influenciar o plantel de peptídeos disponíveis para apresentação. Como esperado, proteínas abundantes têm maior chance de fornecer peptídeos. Enzimas lisossômicas, como a carboxipeptidase e catepsinas, fragmentam as proteínas preferencialmente em sítios dibásicos de arginina e lisina( 41 ) e os peptídeos apresentados por HLAII carregam, com frequência, uma prolina N-terminal em função de atividade da N-aminopeptidase.( 42 ) Esses peptídeos são acoplados a HLAII durante a formação de um compartimento endossômico tardio, conhecido como MIIC.( 43 )
O transporte dos peptídeos é bem diferente daquele descrito para HLAI, apesar de todas as cadeias de MHC serem sintetizadas e os respectivos heterodímeros αβ, formados no retículo endoplasmático. Temos visto que moléculas de classe I recebem seus peptídeos enquanto ainda estão no retículo, sendo estabilizadas com a ajuda de PLC. Em contraste, as moléculas classe II têm de ser transferidas para o fagolisossomo, para a montagem final. Para que o heterodímero tenha estabilidade para esse transporte, ocorre o acoplamento de uma terceira proteína, a cadeia gama invariante. Além de direcionar o HLAII para o compartimento MIIC,( 44 ) parte da cadeia invariante cobre a fenda, impedindo o acesso de peptídeos transportados por TAP destinados à apresentação via HLAI.( 45 )
Uma vez alcançado o compartimento endossomal, a cadeia invariante é digerida pela catepsina B,( 46 ) deixando para trás apenas o fragmento que cobre a fenda, conhecido como CLIP (Class II − associated Invariant chain Peptide).( 47 ) A substituição de CLIP por qualquer outro peptídeo é catalisada pelo heterodímero de classe II HLA-DM,( 48 , 49 ) que também age como chaperona de HLAII, mantendo a estrutura intacta, enquanto a troca se realiza.( 50 ) Em linfócitos B, HLA-DO influencia a eficiência de HLA-DM como aceptor de peptídeos, inibindo sua atividade em pH mais neutro. Uma vez alcançado o compartimento endolisossomal, sendo o pH 4,5, a função de HLA-DM é restaurada, abrindo o caminho para a ligação de peptídeos de origem extracelular.( 51 ) Essa troca de peptídeos na fenda continua até que um peptídeo de alta afinidade seja ligado, formando um complexo estável que pode, então, ser transportado até a superfície celular. O processo complexo de transporte de HLAII/peptídeo precisa de proteínas da família das tetraspaninas CD63 e CD81( 52 ) para auxiliar no transporte através dos endossomos multilamelares e multivesiculares MIIC.( 52 , 53 )
O conceito de apresentação do antígeno foi inicialmente delineado com base em uma série de estudos feitos na década de 1970 que abriu o caminho para o trabalho pioneiro feito por Zinkernagel e Doherty( 54 ) e pelo qual receberam o Prêmio Nobel, em 1996. Hoje sabemos que os linfócitos T são capazes de reconhecer antígenos (peptídeos) apenas quando estão presentes na superfície celular. Esses peptídeos se originam de todos os tipos de fontes, como bactérias e vírus intracelulares, produtos de metabolismo celular, além de proteínas e lipídios próprios ou estranhos àquela célula. Todos esses antígenos são captados, processados e apresentados principalmente na forma de peptídeos pela família HLA de glicoproteínas.
O mecanismo geral da apresentação de antígenos é capaz de explicar eventos como educação tímica, resposta à infecção, rejeição a transplantes, autoimunidade e imunidade tumoral. Este é, portanto, um tópico altamente relevante em imunologia e ainda de grande interesse para pesquisa.
Estudos recentes também esclareceram o papel de produção e apresentação de peptídeos na qualidade de respostas do linfócito T.( 55 ) De acordo com o tipo de célula encarregada de apresentação do antígeno, o número de vezes que um peptídeo específico é apresentado em cada célula, a quantidade e o tipo de moléculas coestimulatórias, o tipo e a condição do tecido no qual essa célula se localiza, a complexidade e variedade dos peptídeos apresentados, e a afinidade de ligação do receptor da célula T para aquele complexo HLA/peptídeo em particular, a resposta pode resultar em diferentes perfis de produção de citocinas e padrões de resposta específicos por células ou subpopulações individuais. Ademais, esses padrões de resposta são influenciados pelo background genético de cada pessoa.
Também é importante destacar que, quando comparado à fenda fechada e menor da HLAI, a fenda aberta de HLAII é mais permissiva à troca de peptídeos, mesmo quando a molécula já está estável e ancorada na superfície celular. De fato, já que os peptídeos usuais são mais longos que a fenda da molécula de classe II, que aceita nove aminoácidos numa conformação estendida, os aminoácidos laterais estão livremente expostos na superfície.( 56 ) Assim, torna-se compreensível que o reconhecimento pelo receptor de célula T na superfície das células T CD4+ seja muito plástico e inclua não somente as bordas da molécula de HLA, mas também as regiões dos peptídeos, tanto dentro e fora da fenda.
Em suma, as células fagocitárias respondem diferentemente ao seu conteúdo internalizado, induzindo a respostas inflamatórias ou supressoras. O papel central dos células T CD4+ na orquestração da resposta imune humoral e celular confere uma importância singular ao complexo HLAII/peptídeo. O reconhecimento do antígeno leva à ativação, expansão clonal e diferenciação dos linfócitos envolvidos, aumentando a população de linfócitos efetores e induzindo à manutenção de algumas células, de vida longa, que formam a memória imunológica.
A somatória do polimorfismo genético, presente nas moléculas envolvidas na resposta imune adaptativa, e a diversidade no processamento e na apresentação dos peptídeos, aliada aos mecanismos de rearranjo de genes que produzem o repertório altamente diversificado de células T, traduzem-se em um sistema de reconhecimento de antígenos e de uma resposta imune efetiva, muito eficientes.
Observação: Em função de limitações de publicação, inúmeras referências não foram incluídas nesta revisão de um tópico que tem sido estudado minuciosamente nos últimos 40 anos. Esperamos que todos os pesquisadores com contribuições significativas tenham sido citados em algum ponto do texto.