versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.31 no.6 São Paulo 2019 Epub 25-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192018197
O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é um transtorno do neurodesenvolvimento que acomete aproximadamente 5% das crianças nas diferentes culturas e que pode persistir na idade adulta em aproximadamente 2,5% dos casos, impactando no funcionamento e desenvolvimento social, acadêmico e profissional do indivíduo(1).
Os critérios diagnósticos do TDAH estabelecidos pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5)(1) estão pautados nos sintomas, bem como na frequência e no tempo em que estes tiveram início, incluindo dentre os principais critérios a ocorrência de padrões persistentes de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade presentes nos últimos seis meses ou com início antes dos 12 anos de idade.
Dentre as alterações desenvolvimentais consideradas comorbidades do TDAH estão os prejuízos linguístico, motor ou social. Apesar de as alterações de linguagem não representarem parte dos critérios diagnósticos do TDAH, é comum que os pais reportem que seus filhos tenham realizado intervenção de linguagem falada na idade pré-escolar, bem como intervenção voltada às dificuldades acadêmicas em idade escolar(2).
Sobre este tema, não há dúvidas de que no campo dos estudos sobre a trajetória desenvolvimental de indivíduos com TDAH o desempenho em habilidades acadêmicas e cognitivas que subsidiam o aprendizado da leitura e da escrita tem sido o tema sistematicamente investigado, seja no contexto científico nacional como internacional, conforme mostrou o estudo de revisão(3). Já o desempenho de linguagem falada de indivíduos com TDAH é proporcionalmente menos pesquisado, apesar de dificuldades tanto no nível receptivo quanto expressivo terem sido descritas neste grupo clínico(4).
Discute-se na literatura se as alterações no desenvolvimento da linguagem oral e os sintomas do TDAH constituem comorbidades, ou se os prejuízos no desenvolvimento da linguagem seriam secundários aos déficits nas funções executivas, que são manifestações frequentemente encontradas como parte do quadro do TDAH. A hipótese das alterações de linguagem como comorbidades tem sido respaldada por estudos que mostraram não haver diferenças significativas no desempenho de crianças com transtorno de linguagem com TDAH quando comparadas às crianças com transtorno de linguagem sem TDAH em testes padronizados de linguagem. Este dado sugere que as alterações de linguagem existentes nos casos com TDAH configurariam quadro primário e não secundário, sendo, portanto, uma comorbidade(5).
Por outro lado, outros estudos têm discutido as alterações de linguagem no TDAH como manifestações secundárias às alterações das funções executivas ou comportamentais, dentre os quais estão os achados obtidos a partir de amostras naturalísticas de linguagem oral (e.g., conversação e narrativa), que evidenciaram prejuízos principalmente no âmbito das habilidades pragmáticas e discursivas com prejuízos significativos na coerência do discurso(4,6-8). Segundo essa perspectiva, os prejuízos nas funções executivas justificariam o surgimento tanto dos problemas comportamentais quanto da comunicação social, bem como de outros problemas cognitivos (e.g.,. memória operacional) que impactam no desenvolvimento de habilidades linguísticas (e.g., fonologia)(9).
A alteração na pragmática tem sido o achado mais consistente entre os estudos com indivíduos com TDAH(7,10-12), incluindo a presença de prejuízos discursivos com desrespeito às regras conversacionais, de manutenção do tópico e troca de turno comunicativo, ainda que estes indivíduos possam apresentar desempenho semelhante aos seus pares de mesma idade cronológica em testes padronizados que avaliam habilidades linguísticas específicas, como o vocabulário(13).
Estudos sobre narrativa oral de história com indivíduos com TDAH têm mostrado que o desempenho desses indivíduos é aquém do esperado para a idade, tanto em tarefas de compreensão quanto de produção(13,14), embora os prejuízos mais evidentes tenham sido demonstrados na produção da narrativa(6,15,16).
O desempenho em tarefas de narrativa oral de história dos indivíduos com TDAH tem sido caracterizado pela presença de prejuízos significativos na coerência narrativa(6,8,15,17,18), assim como por prejuízos na capacidade para apresentarem relações explícitas de causalidade entre os eventos narrados, culminando em narrativas predominantemente descritivas(17-19). No âmbito da compreensão, a principal dificuldade está na capacidade para realizarem inferências, ao que parece por não conseguirem estabelecer as relações necessárias entre as informações veiculadas oralmente, possivelmente por falhas de memória e gerenciamento devido ao tempo de atenção mais curto(8,20,21).
Os estudos que se voltaram mais especificamente para o desempenho na narração mostraram que o conteúdo da narrativa tende a estar comprometido, apesar de os indivíduos com TDAH frequentemente apresentarem aumento da produtividade linguística, expressando mais unidades comunicativas na narrativa do que seus pares de mesma idade cronológica. Isso poderia ser explicado pela dificuldade que eles apresentam para inibir o comportamento verbal, planejar e organizar o conteúdo a ser narrado(6,8,13-16).
Conforme exposto, o prejuízo de coerência na narrativa oral tem sido apontado na literatura como uma manifestação que é frequente no quadro de TDAH. Assim, o presente estudo foi proposto partindo da hipótese de que a narração de crianças com TDAH teria níveis inferiores de coerência global, quando comparados à narração de crianças com desenvolvimento típico. No entanto, há uma questão que ainda foi pouco explorada na literatura e que poderia trazer direcionamentos importantes ao propor um programa de intervenção com foco na narrativa oral de história com indivíduos com TDAH, que é o entendimento de quais elementos estruturais do esquema narrativo de história poderiam estar mais prejudicados e, assim, refletir na dificuldade desses indivíduos para produzirem histórias coerentes.
Neste estudo foi proposto investigar a coerência da narrativa na busca por informações sobre a capacidade de organização global da história, o que recai sobre a investigação dos aspectos macroestruturais da narrativa. Na perspectiva macroestrutural de investigação da coerência da narrativa de história, assume-se que os elementos estruturais típicos do modelo de Gramática de Histórias são fundamentais tanto para a estrutura quanto para o estabelecimento da coerência global da narrativa, pelo modo como esses elementos estruturais (e.g., personagens, cenário, situação-problema e desfecho) são articulados em torno de um eixo temático, e assim a história é percebida pelo ouvinte como tendo maior ou menor grau de coerência global(22).
Desse modo, o objetivo do estudo foi caracterizar e comparar o uso de elementos típicos da gramática de história e o nível de coerência global na narrativa oral de crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade à narrativa de crianças sem o transtorno e com desenvolvimento típico, com ausência de queixas nos principais domínios de desenvolvimento (motor, cognitivo e linguagem).
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (protocolo nº0408/2011), e todos os indivíduos tiveram sua participação autorizada pelos pais e/ou responsáveis, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Participaram do estudo 20 indivíduos com diagnóstico interdisciplinar de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (Grupo TDAH), com idade entre 6 e 10 anos. Destes, 14 eram do sexo masculino e 6 do sexo feminino. Os participantes eram escolares que frequentavam da 1a à 5a série do ensino público. O diagnóstico clínico de TDAH foi realizado por equipe interdisciplinar, seguindo os critérios estabelecidos pelo DSM-IV-TR(23), vigente na ocasião em que o estudo foi iniciado. A maioria dos participantes foram diagnosticados com TDAH do tipo combinado (65%). Todos os casos estavam realizando tratamento medicamentoso na ocasião da avaliação, sendo um caso com clonazepan e os demais com cloridrato de metilfenidato (Tabela 1).
Tabela 1 Características do grupo com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
Indivíduo | Sexo | Idade | Escolaridade | Classificação quanto ao tipo do TDAH | Princípio ativo do medicamento |
---|---|---|---|---|---|
1 | M | 6 anos | 1a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
2 | M | 7 anos | 2a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
3 | M | 7 anos | 2a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
4 | M | 8 anos | 2a série | Desatento | cloridrato de metilfenidato |
5 | M | 8 anos | 2a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
6 | M | 8 anos | 3a série | Desatento | cloridrato de metilfenidato |
7 | M | 8 anos | 2a série | Desatento | cloridrato de metilfenidato |
8 | M | 8 anos | 3a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
9 | M | 8 anos | 3a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
10 | F | 8 anos | 3a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
11 | M | 9 anos | 3a série | Desatento | cloridrato de metilfenidato |
12 | M | 9 anos | 4a série | Desatento | cloridrato de metilfenidato |
13 | M | 9 anos | 4a série | Combinado | clonazepan |
14 | F | 9 anos | 3a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
15 | F | 9 anos | 3a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
16 | F | 9 anos | 3a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
17 | F | 9 anos | 3a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
18 | M | 10 anos | 4a série | Combinado | cloridrato de metilfenidato |
19 | F | 10 anos | 5a série | Déficit de Atenção | cloridrato de metilfenidato |
20 | M | 10 anos | 5a série | Déficit de Atenção | cloridrato de metilfenidato |
Para fins de comparação, também participaram 20 indivíduos com desenvolvimento típico (Grupo DT), os quais foram selecionados nas respectivas escolas dos participantes com TDAH, respeitando os critérios de mesmo sexo, idade cronológica e escolaridade do grupo TDAH e a ausência de queixas nos principais domínios de desenvolvimento (motor, cognitivo e linguagem).
A narrativa oral de história foi eliciada com o livro-imagem “Frog Where Are You?”(24). Este livro é composto por 29 páginas organizadas em 24 pranchas de figura, com eventos sequenciais sem escrita. Todos os participantes foram instruídos a manusear o livro para familiarização com o material e o tema, para que na sequência narrassem oralmente a história com o apoio do livro. A narrativa foi gravada e integralmente transcrita para fins de análise.
Os elementos típicos do esquema narrativo de história e o nível de coerência global da história foram analisados segundo proposta de Spinillo e Martins(22). Segundo este sistema, o nível de coerência global foi estabelecido a partir de quatro principais elementos típicos de história: (1) permanência dos personagens ao longo da narração, (2) manutenção do tema/tópico, (3) evento/trama principal ou situação-problema e (4) desfecho. Cada um desses quatro elementos foi pontuado numa escala de Likert de três pontos, seguindo nível crescente de complexidade. Os pontos atribuídos para cada um dos itens analisados (personagem, tema/tópico, evento/trama e desfecho) foram agrupados para fins de obter-se a classificação quanto ao nível de coerência, conforme representado na Figura 1.
Figura 1 Representação do sistema de classificação do nível de coerência global da história adotado no estudo e proposto por Spinillo e Martins(22)
Neste estudo foi utilizado o sistema de análise por juízes. Dois juízes independentes (fonoaudiólogos) realizaram a classificação sem conhecimento prévio do grupo a que as crianças pertenciam. Para os casos em que houve discordância entre os dois juízes, um terceiro juiz, também fonoaudiólogo com experiência na referida análise, foi requisitado. Para análise estatística dos dados foi utilizado o Teste da Razão de Verossimilhança, utilizando o programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences), versão 20.0. O nível de significância adotado foi de 5% (0,05).
Na Tabela 2 estão as respectivas porcentagens de crianças nos elementos típicos de história, os quais foram identificados a partir da amostra de narrativa e suas respectivas categorias de classificação, conforme previsto pelo sistema de classificação do nível de coerência global adotado neste estudo (Personagem, Tema/Tópico, Evento/Trama e Desfecho).
Tabela 2 Comparação entre os grupos TDAH e DT quanto aos elementos típicos de história
Elementos típicos de história | Categoria | Grupos | p | |||
---|---|---|---|---|---|---|
TDAH | DT | |||||
Freq. | Perc. % | Freq. | Perc. % | |||
Personagem | P1 | 0 | 0,00 | 0 | 0,00 | 0,368 |
P2 | 1 | 5,00 | 1 | 5,00 | ||
P3 | 19 | 95,00 | 19 | 95,00 | ||
Tema/Tópico | T1 | 2 | 10,00 | 0 | 0,00 | < 0,001* |
T2 | 8 | 40,00 | 0 | 0,00 | ||
T3 | 10 | 50,00 | 20 | 100,00 | ||
Evento/Trama | E1 | 3 | 15,00 | 0 | 0,00 | 0,006* |
E2 | 13 | 55,00 | 7 | 35,00 | ||
E3 | 4 | 20,00 | 13 | 65,00 | ||
Desfecho | D1 | 1 | 5,00 | 0 | 0,00 | 0,001* |
D2 | 18 | 90,00 | 7 | 35,00 | ||
D3 | 1 | 5,00 | 13 | 65,00 |
*Valores significativos (p<0,05) – Teste da Razão de Verossimilhança
Legenda: TDAH = Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade; DT = Desenvolvimento Típico; Freq. = Frequência de indivíduos; Perc. = Percentual de indivíduos
Diferença estatisticamente significante foi encontrada entre grupo TDAH e DT em todos os elementos de história analisados, com exceção do elemento “Personagem”. O elemento de história “Personagem” foi o único que apresentou distribuição semelhante entre os grupos (TDAH e DT), com a maioria das crianças de ambos os grupos no nível mais complexo (Nível 3).
Nota-se pela distribuição dos dados que há uma maior concentração de participantes do grupo TDAH nos níveis inferiores de classificação (Nível 1 e 2), principalmente nos elementos “Evento/Trama” e “Desfecho”.
Para esses elementos, o nível de classificação mais baixo encontrado no grupo DT foi o nível 2 (35% respectivamente para ambos os elementos, “Evento/Trama” e “Desfecho”). Observou-se que o nível 2 encontrado no grupo DT foi apresentado por crianças mais jovens.
Em relação ao elemento “Tema/Tópico”, enquanto as crianças do grupo DT estão todas no nível mais complexo (T3), as crianças do grupo TDAH estão distribuídas entre os três níveis de classificação (T1, T2 e T3). Embora seja possível notar que a maioria delas estão distribuídas entre os níveis 2 e 3, 50 e 20% respectivamente.
Na Figura 2 é possível visualizar de forma mais detalhada a distribuição de crianças por grupo (TDAH e DT) nas categorias de classificação analisadas para os elementos típicos de história e para o nível de coerência global da narrativa. Nota-se que o nível de coerência global mais baixo (Nível 1) não foi encontrado no grupo DT, bem como o nível mais complexo de organização da narrativa (Nível 4) não foi encontrado no grupo TDAH.
Figura 2 Distribuição de crianças por grupo (TDAH e DT) nas categorias de classificação analisadas para os elementos típicos de história e para o nível de coerência global da narrativa
Quanto à classificação do nível de coerência global, foi encontrada diferença estatisticamente significante entre os grupos TDAH e DT (Tabela 3). Observa-se que 45% da amostra dos participantes com TDAH apresentou nível de coerência 2 e 50% nível de coerência 3, enquanto as narrativas do grupo DT receberam classificação 3 e 4 (35 e 65%, respectivamente).
Tabela 3 Comparação entre os grupos TDAH e DT quanto ao nível de coerência global da narrativa de história
Categoria | Grupos | p | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
TDAH | DT | |||||
Freq. | Perc. % | Freq. | Perc. % | |||
Nível Coerência | 1 | 1 | 5,00 | 0 | 0,00 | < 0,001* |
2 | 09 | 45,00 | 0 | 0,00 | ||
3 | 10 | 50,00 | 7 | 35,00 | ||
4 | 0 | 0,00 | 13 | 65,00 |
*Valores significativos (p<0,05) – Teste da Razão de Verossimilhança
Legenda: TDAH = Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade; DT = Desenvolvimento Típico; Freq. = Frequência de indivíduos; Perc. = Percentual de indivíduos
O presente estudo propôs caracterizar e comparar o uso de elementos típicos da gramática de história e o nível de coerência global na narrativa oral de crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade à narrativa de crianças sem o transtorno e com desenvolvimento típico (ausência de queixas de desenvolvimento motor, cognitivo e linguagem).
Os resultados obtidos mostraram semelhanças e diferenças entre os grupos TDAH e DT quanto ao uso de elementos estruturais típicos de história e o nível de coerência global da narrativa.
Em relação às categorias de elementos típicos de história, o desempenho dos grupos foi semelhante para o elemento “Personagem”, ou seja, tanto as crianças do grupo TDAH quanto as do grupo DT foram capazes de identificar e manter ao longo de toda a narração os personagens da história proposta no livro-imagem, o que justifica terem apresentado o nível mais complexo para esta categoria (P3). Tal desempenho era esperado para a idade e escolaridade das crianças com TDAH e DT deste estudo(22).
Em relação ao elemento “Tema/Tópico”, observou-se que as crianças do grupo TDAH estão na sua maioria distribuídas entre os níveis de classificação T1 e T2, enquanto as crianças do grupo DT estão todas no nível mais complexo (T3).
O sistema de análise da coerência utilizado neste estudo leva em consideração, ao analisar o item “Tema/Tópico”, se a história mantém o mesmo tema ao longo de toda a narração. A análise do desempenho das crianças com TDAH mostrou que elas apresentaram inserções de comentários não relacionados com a tarefa e o tema da história, com dificuldades para retomarem o evento que estava sendo narrado, o que por sua vez resultava em ruptura da cadeia semântico-contextual da história. Este achado corrobora estudos anteriores que apontam a existência de prejuízos de ordem pragmática no TDAH em tarefas de linguagem que requerem alta demanda de informação, como a narrativa oral(4,6-8).
Embora haja outros indicadores de coerência na narração, a manutenção de tema é, sem dúvida, um elemento fundamental que, quando não está presente, ocasiona significativos prejuízos de interpretabilidade da história(22,25).
Por sua vez, diferenças entre os grupos também foram encontradas para os elementos “Evento/Trama” e “Desfecho”. As categorias menos complexas foram mais utilizadas pelos indivíduos com TDAH (Tabela 2 e Figura 2), predominando na narração a categoria com classificação intermediária (pontuação 2), 55 e 90%, respectivamente.
Apesar de a maioria das crianças do grupo DT ter apresentado nível mais complexo de classificação no elemento “Evento/Trama”, o nível intermediário (Nível 2) também foi encontrado na narração de crianças mais jovens (6 e 7 anos). Por volta dos 6 anos, ainda é esperado que a criança apresente uma ação que sugira o início de uma trama, sem deixar explícito na narração a situação-problema da história(22), que no caso do livro-imagem utilizado no estudo era a menção explícita à fuga do sapo. Já por volta dos 9 anos – faixa etária predominante entre as crianças dos grupos TDAH e DT –, espera-se que a situação-problema apareça de forma definida na narração(22,26), como foi visto para a maioria das crianças do grupo DT, contrário ao que observamos no grupo TDAH.
Em relação ao desfecho da história, verificou-se que as crianças com TDAH deste estudo, apesar de utilizarem marcadores linguísticos que denotavam o encerramento da história, frequentemente apresentaram desfechos cujos conteúdos eram pouco elaborados, ocorrendo muitas vezes o encerramento inesperado da história (e.g., “o menino pegou o sapo e fim”). O desfecho da história não deixava claro se o problema da história havia sido resolvido (e.g., se o sapo encontrado era o sapo que havia fugido, ou se era um sapo que estava sendo substituído pelo anterior que havia fugido).
Segundo Spinillo e Martins(22), a capacidade para a criança apresentar um desfecho com relação estreita entre os eventos narrados na história, de modo a deixar explícita a resolução do problema, é um dos aspectos mais difíceis de serem estabelecidos no desenvolvimento do esquema narrativo, por isso é um dos indicadores desenvolvimentais mais importantes e que informa sobre o nível de complexidade deste esquema, bem como da sua coerência global. A emergência de estruturas narrativas mais elaboradas está atrelada, dentre outros fatores, à resolução da situação-problema e à menção de objetivos e consequências atrelados ao problema(22), que foram aspectos que diferiram entre os grupos (TDAH e DT) e que justifica os níveis inferiores de coerência global encontrado nas crianças com TDAH.
Outro aspecto que pode ter contribuído para os níveis inferiores de coerência global da história do grupo TDAH foi a dificuldade que essas crianças apresentaram para narrar os desafios e obstáculos vividos pelos personagens (mesmo as mais velhas).
Nas cenas do livro-imagem que remetiam aos desafios e obstáculos, verificou-se que tanto as crianças do grupo TDAH quanto as crianças mais jovens do grupo DT (6 e 7 anos) apresentaram estrutura predominantemente descritiva (e.g., “o menino subiu na árvore”), de modo que não deixavam explícito a causalidade entre as ações narradas (obstáculos) na tentativa de resolver o problema (e.g., “o menino resolveu subir na árvore para ver se o sapo fujão estava lá”).
A narrativa dos desafios ou obstáculos enfrentados pelo personagem principal na tentativa de resolver o problema da história é um dos fatores que contribui para a construção de esquemas narrativos mais complexos. Narrar os eventos relacionados aos desafios permite ao narrador construir subepisódios dentro da narrativa(27), o que é esperado a partir dos 8-9 anos de idade(28).
A partir dos resultados obtidos, entende-se que a dificuldade apresentada pelos indivíduos com TDAH para a manutenção temática, para narrar os obstáculos vividos pelos personagens e para a construção de um desfecho podem, juntas, justificar o nível de coerência global da história inferior para as crianças com TDAH, em relação a seus pares (Tabela 3). Este achado confirmou a hipótese inicial do estudo, corroborando estudos anteriores(5,10-16), e permitiu identificar quais os elementos estruturais que contribuíram para os níveis inferiores de coerência do grupo com TDAH.
É sabido que o sucesso para a produção de uma narrativa é dependente de funções cognitivas, linguísticas e sociais(29), sendo esta, portanto, uma habilidade complexa que requer a ativação de diferentes áreas cerebrais, principalmente de redes neurais frontotemporais, onde estão as áreas envolvidas no processamento da linguagem e de funções executivas(30), sendo essas últimas particularmente prejudicadas nos indivíduos com TDAH(7,14-19).
Por ser uma habilidade complexa e dependente de fatores neurobiológicos e sociais, a habilidade para narrar muda consideravelmente ao longo do desenvolvimento da criança. Ela é influenciada pela exposição da criança ao esquema de história nas diferentes experiências vividas no ambiente familiar e escolar e também pela maturação cerebral que ocorre principalmente a partir dos 3 anos de idade, quando se observam também mudanças significativas no desenvolvimento da função executiva(26,30). Seria interessante, portanto, a avaliação sistemática da linguagem narrativa em casos diagnosticados e com sinais preditivos de TDAH.
As implicações desse tipo de estudo recaem sobre a importância de avaliar o desempenho de indivíduos com TDAH em tarefas de narrativa oral, de modo que seja possível identificar precocemente dificuldades que se manifestam neste nível complexo de organização da linguagem falada, que é a narrativa, e por fim propiciar estratégias de intervenção com ênfase nos aspectos macroestruturais, a fim de favorecer níveis mais complexos e coerentes de organização do esquema de história.
O presente estudo tem limitações e, portanto, há necessidade de cautela na interpretação e generalização dos dados apresentados. Dentre as limitações, pode-se dizer que as crianças com TDAH que participaram do estudo não realizaram uma avaliação formal para investigação de habilidades acadêmicas para uma discussão de possíveis associações com o desempenho narrativo. Além disso, não foi realizada uma análise do desempenho das crianças na narrativa, na busca por associações ou identificação de possíveis semelhanças ou diferenças em função do subtipo e gravidade do quadro de TDAH, considerando que o número de participantes não permitiria uma análise por subgrupos. Estudo futuro poderá explorar se há diferenças na narração em função do subtipo e da gravidade do transtorno.
Também, o método utilizado neste estudo para investigação da narrativa oral esteve centrado na produção, não sendo realizada uma medida de compreensão, o que seria importante, dadas as evidências de prejuízos também nesta dimensão, conforme apontadas em estudos anteriores(13,14,20,21). Por fim, a coerência foi analisada a partir de um recorte específico sobre elementos estruturais que constituem parte da coerência global da história, entendendo que estes são alguns dentre vários outros aspectos (e.g., elementos coesivos) a serem investigados quando se aborda a coerência de uma narrativa de história. É válido mencionar que os aspectos microestruturais da narrativa (e.g., sintático e semântico) não foram contemplados neste estudo, uma vez que o foco da investigação estava nos componentes estruturais típicos do esquema narrativo de história envolvidos no estabelecimento da coerência global da narrativa.
As crianças com TDAH deste estudo apresentaram dificuldades no uso de elementos típicos da gramática de história, principalmente relacionados com a manutenção do tema central e desfecho da história, o que contribuiu para níveis inferiores de coerência global, quando comparados aos seus pares com desenvolvimento típico.
Embora os elementos estruturais não sejam os únicos fatores responsáveis pelo estabelecimento da coerência da narrativa, é sabido que tais elementos são importantes para a construção do sentido da narrativa, principalmente para manutenção temática e, consequentemente, para apresentação de um desfecho coerente e estreitamente relacionado com a situação-problema da história que evidencie a relação entre os eventos narrados.
Os resultados aqui reportados sugerem a necessidade de intervenções com ênfase nos aspectos macroestruturais, a fim de promover níveis mais complexos de organização e coerência da narrativa de história dos indivíduos com TDAH.
Estudos futuros poderão investigar os aspectos microestruturais da narrativa, com vistas aos aspectos semânticos e sintáticos da linguagem de crianças com TDAH, bem como contribuir para um melhor entendimento do impacto das manifestações comportamentais e neurocognitivas do TDAH, levando em consideração os subtipos deste transtorno e os seus efeitos sobre a narrativa oral e possíveis associações com o desempenho na leitura e na escrita.