versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.14 no.4 Porto Alegre out./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.03115
O Índice Tornozelo-Braquial é um método não invasivo e de fácil realização, que pode fornecer informações importantes para o diagnóstico, prognóstico e acompanhamento de pacientes com doença arterial obstrutiva periférica (DAOP)1,2. Além de auxiliar na avaliação do membro do isquêmico, tanto valores de ITB abaixo do limite da normalidade (≤ 0,9) quanto valores elevados (acima de 1,4) vêm sendo associados à mortalidade por doença cardiovascular1,3. Pacientes com isquemia crítica de membro inferior, caracterizada por dor ao repouso, úlcera ou gangrena, secundárias à DAOP têm um alto risco de eventos cardiovasculares, como infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral, além do risco de perda do membro1. O diagnóstico clínico de isquemia crítica pode ser confirmado por exames não invasivos como o ITB, a medida da pressão sistólica e a tensão transcutânea de oxigênio1.
A calcificação da camada média arterial ou arteriosclerose de Monckeberg é mais prevalente entre diabéticos e pode dificultar a compressão das artérias do pé, levando a um ITB falsamente elevado4,5. Como a calcificação é mais comum ao nível das artérias do pé, pode ser realizada a medida da pressão ao nível dos pododáctilos, que estaria melhor correlacionada à cicatrização das lesões5,6. No entanto, a mensuração da pressão nas artérias digitais requer equipamento apropriado6, nem sempre disponível na maioria dos serviços de saúde, sendo o esfigmomanômetro utilizado no cálculo do ITB habitualmente disponível1.
Valores de ITB menores que 0,5 geralmente são associados à isquemia, com indicação de avaliação vascular, sendo que, em pacientes com claudicação intermitente, o ITB costuma variar entre 0,5 e 0,8, e um ITB ≤ 0,3 é descrito em quadros de dor ao repouso7. No entanto, apesar do ITB ser um exame facilmente exequível e de baixo custo em nosso meio, estudos que diferenciem os valores do ITB entre diabéticos e não diabéticos com isquemia crítica são escassos na literatura.
O objetivo deste estudo é verificar se existem diferenças nos valores do ITB de pacientes diabéticos e não diabéticos com isquemia crítica por doença arterial obstrutiva periférica (DAOP) infra-inguinal.
Trata-se de um estudo retrospectivo, realizado no Serviço de Cirurgia Vascular do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A coleta de dados foi realizada em prontuários, fichas de acompanhamento clínico e arteriografias arquivadas de pacientes internados no período compreendido entre dezembro de 2006 e dezembro de 2011. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgard Santos.
Foram incluídos 140 doentes internados para tratamento de isquemia crítica por DAOP do território infrainguinal que, ao exame físico, apresentaram pulsos femorais normais, de etiologia aterosclerótica, e cuja arteriografia, arquivada no serviço, confirmava o diagnóstico. Foram incluídos apenas os casos em que havia registro do valor do ITB nas artérias pediosa e tibial posterior de ambos os membros inferiores, realizado por cirurgião vascular integrante do serviço. Para a medida do ITB, o posicionamento do manguito do tensiômetro foi realizado de forma habitual, nos membros superiores (acima da dobra do cotovelo) e logo acima dos maléolos (tornozelo), nos membros inferiores, com o paciente na posição supina; a ponta do transdutor do Doppler portátil foi posicionada na projeção da artéria braquial e das artérias pediosa e tibial posterior; realizou-se a insuflação do manguito do tensiômetro até o som do fluxo sanguíneo se tornar inaudível e, em seguida, a desinsuflação, até se ouvir o primeiro som do fluxo sanguíneo que corresponde à pressão sistólica máxima1. Foram excluídos deste estudo pacientes internados por quadro de isquemia aguda, por doença isquêmica de etiologia não aterosclerótica, que não apresentavam isquemia crítica à admissão e os com DAOP do território aorto-ilíaco.
Todos os dados dos doentes são registrados em fichas de acompanhamento clínico próprias do serviço. Foi elaborado protocolo para a coleta de dados do prontuário e em fichas de acompanhamento. Os pacientes foram divididos em dois grupos: diabéticos e não diabéticos, com o objetivo de analisar comparativamente a média dos valores do ITB das artérias pediosa e tibial posterior de ambos os grupos. Foram considerados diabéticos aqueles pacientes que já tinham diagnóstico prévio da doença e se encontravam em tratamento, sendo esse também o critério utilizado para a hipertensão arterial sistêmica (HAS). Os dois grupos também foram estudados quanto à Classificação de Rutherford1 do membro inferior com quadro de isquemia crítica1 e a ocorrência de ITB falsamente elevado (> 1,15).
Os pacientes com ITB falsamente elevado, definido como ITB > 1,15, foram excluídos da análise para o cálculo das médias dos valores do ITB. Comparamos os valores médios do ITB entre diabéticos e não diabéticos segundo as três categorias da Classificação de Rutherford1. O valor máximo definido como 1,15, considerado normal nesta pesquisa para o ITB, baseou-se em estudo populacional da literatura internacional que encontrou 1,15 como a maior média de ITB entre indivíduos com e sem DAOP, estando a maioria da amostra pesquisada entre 0,9 e 1,18. Outro estudo, que incluiu mais de 13.000 indivíduos, encontrou o valor 1,15 como mediana do ITB em indivíduos sem DAOP9. Sendo assim, para doentes com isquemia crítica, consideramos falsamente elevado ou aberrante um ITB > 1,15.
Os dados foram tabelados no Microsoft Excel® e analisados no programa Epi-info, versão 3.3.2, de fevereiro de 2005. Para testar a associação entre o DM e a ocorrência de ITB aberrante (variável qualitativa), utilizamos o teste do Qui-quadrado (χ2). As médias do ITB nas artérias pediosa e tibial posterior (variáveis quantitativas) foram comparadas nos dois grupos pela Análise de Variância (ANOVA), de maneira global e estratificando-se os doentes de acordo com a categoria da isquemia na Classificação de Rutherford. Adotou-se o nível de significância de 5% (p < 0,05) para rejeição da hipótese nula, ou seja, de que não existe diferença estatística entre os grupos em relação às variáveis estudadas.
Entre os 140 doentes da amostra, 60% eram diabéticos, 76%, hipertensos e 62%, tabagistas. Noventa e oito (70%) apresentavam doença oclusiva do território fêmoro-poplítea, com ausência de pulso poplíteo ao exame físico, e os demais 42 doentes (30%) tinham doença do território infra-patelar, com pulso poplíteo normal. A média de idade foi 69,6 anos. Quanto à Classificação de Rutherford1 para isquemia crítica crônica, 77% dos membros estavam na categoria 5, 17% na categoria 6 e 6% na categoria 4. A caracterização da amostra se encontra detalhada na Tabela 1.
Tabela 1 Características dos 140 doentes incluídos no estudo com diagnóstico de isquemia crítica por Doença Arterial Obstrutiva Periférica (DAOP).
Características da amostra (140 doentes) | n (%) | |
---|---|---|
Gênero | Masculino | 69 (49%) |
Feminino | 71 (51%) | |
Média de idade | 69,6 anos | |
Diabetes mellitus | 84 (60%) | |
Hipertensão Arterial Sistêmica | 106 (76%) | |
Índice Tornozelo-Braço > 1,15 | 10 (7%) | |
Tabagismo atual | 87 (62%) | |
Território da DAOP | Femoropoplíteo | 98 (70%) |
Infrapatelar | 42 (30%) | |
Classificação de Rutherford | Categoria 4 | 08 (6%) |
Categoria 5 | 108 (77%) | |
Categoria 6 | 24 (17%) |
Nove doentes diabéticos (11%) tinham ITB maior que 1,15, o que ocorreu com um (01) doente não diabético (2%) (p = 0,02). Excluídos os 10 pacientes com ITB > 1,15 e considerando-se os demais 130 doentes da amostra, a média do ITB, na artéria tibial posterior dos pacientes na categoria 4 da Classificação de Rutherford foi de 0,26 ± 0,05; na categoria 5 foi de 0,30 ± 0,08; e na categoria 6 foi 0,15 ± 0,04. Na artéria pediosa, para os 130 doentes, a média do ITB na categoria 4 foi 0,37 ± 0,06; na categoria 5 foi 0,27 ± 0,08; e na categoria 6 foi 0,31 ± 0,1.
Realizando-se a análise comparativa das médias dos valores do ITB nas artérias pediosa e tibial posterior de ambos os grupos (em diabéticos e não diabéticos) com isquemia crítica, encontrou-se que a média do ITB na artéria tibial posterior dos diabéticos foi de 0,26 ± 0,07; e que a dos não diabéticos foi de 0,28 ± 0,08 (p = 0,6). A média do ITB na artéria pediosa dos pacientes diabéticos foi 0,32 ± 0,07; e na dos doentes não diabéticos foi de 0,23 ± 0,08 (p = 0,06).
Quando se estratificaram os pacientes diabéticos e não diabéticos nas três categorias (4, 5 e 6) da Classificação de Rutherford, encontrou-se diferença significativa apenas entre pacientes da categoria 6, em que a média dos valores do ITB na artéria pediosa dos diabéticos (0,44 ± 0,09) foi superior à dos não diabéticos (0,16 ± 0,08) (p = 0,03). Os detalhes da análise comparativa das médias dos valores do ITB de diabéticos e de não diabéticos nas artérias pediosa e tibial posterior, estratificados nas três categorias da Classificação de Rutherford, se encontram nas Tabelas 2 e 3.
Tabela 2 Análise comparativa da média do Índice Tornozelo-Braquial (ITB) na artéria pediosa dos pacientes diabéticos e não diabéticos com isquemia crítica por DAOP infrainguinal, estratificados segundo a Classificação de Rutherford (n = 130).
Classificação de Rutherford | Média do Índice Tornozelo-Braquial | Valor de p |
---|---|---|
Categoria 4 | ||
Diabéticos | 0,50 ± 0,01 | 0,2 |
Não diabéticos | 0,29 ± 0,07 | |
Categoria 5 | ||
Diabéticos | 0,29 ± 0,07 | 0,4 |
Não diabéticos | 0,24 ± 0,08 | |
Categoria 6 | ||
Diabéticos | 0,44 ± 0,09 | 0,03 |
Não diabéticos | 0,16 ± 0,08 |
Tabela 3 Análise comparativa da média do Índice Tornozelo-Braquial (ITB) na artéria tibial posterior dos pacientes diabéticos e não diabéticos com isquemia crítica por DAOP infrainguinal, estratificados segundo a Classificação de Rutherford (n = 130).
Classificação de Rutherford | Média do Índice Tornozelo-Braquial | Valor de p |
---|---|---|
Categoria 4 | ||
Diabéticos | 0,26 ± 0,06 | 0,9 |
Não diabéticos | 0,25 ± 0,05 | |
Categoria 5 | ||
Diabéticos | 0,29 ± 0,07 | 0,7 |
Não diabéticos | 0,31 ± 0,09 | |
Categoria 6 | ||
Diabéticos | 0,11 ± 0,03 | 0,4 |
Não diabéticos | 0,19 ± 0,06 |
Segundo a literatura, a calcificação da camada média arterial é mais prevalente em diabéticos4,5, o que frequentemente leva à discussão sobre a aplicabilidade do ITB para o diagnóstico e a avaliação da gravidade dos casos de DAOP nesses doentes. A maioria dos estudos sobre prevalência de DAOP e ITB, em diabéticos e não diabéticos, não especifica os achados dos valores relacionados aos casos de isquemia crítica10-12. Estudo de prevalência de doença arterial periférica, incluindo 2.375 indivíduos com idade ≥ 40 anos, mostrou que 4,5% dos pacientes não diabéticos e 9,5% dos diabéticos tinham ITB ≤ 0,910, sendo a maioria assintomáticos. Entre doentes diabéticos, Thavitharam et al. encontraram uma média geral do valor do ITB de 1,03, havendo diferença entre os portadores de DAOP (média de 0,81) e os sem DAOP (média de 1,05)11. Relacionando cerca de 300 pacientes diabéticos para avaliar risco de ulceração, Jirkovská et al.12 encontraram que a média do ITB para pacientes com úlceras foi de 0,82 ± 0,42, enquanto para os sem úlceras foi de 0,92 ± 0,26.
No Brasil, Makdisse et al.13 mostrou uma prevalência de DAOP, diagnosticada através de ITB ≤ 0,9, de 36,4% em idosos acima de 75 anos, sendo que a maioria (64,2%) apresentava alguma alteração no exame de pulsos e que 34,7% referiram dor ou desconforto em membros inferiores. Outro estudo, com 201 portadores de insuficiência renal crônica, encontrou uma prevalência de DAOP, diagnosticada através do ITB, de 14%14. Pesquisa realizada em unidade hospitalar universitária mostrou que de 248 doentes com diagnóstico de DAOP, 79 (32%) apresentaram ITB < 0,5, compatível com isquemia grave, encontrando ainda que a média do ITB foi de 0,57 para sintomáticos e de 0,7 para assintomáticos15.
No entanto, a maioria dos estudos não destaca as diferenças entre pacientes diabéticos e não diabéticos com diagnóstico de isquemia crítica, diferenciando os seus valores do ITB. No nosso estudo, comparamos pacientes diabéticos e não diabéticos com isquemia crítica por DAOP e, quando excluímos os doentes com ITB aberrante, não encontramos diferença na média do ITB para a maioria dos pacientes. A prevalência de ITB aberrante (> 1,15) entre nossos doentes com isquemia avançada foi de 10%. O único paciente de nossa amostra que apresentou ITB aberrante e não era diabético apresentava insuficiência renal crônica, doença que também está associada à calcificação da camada média arterial.
A grande maioria dos pacientes, de ambos os grupos, apresentou ITB abaixo dos limites da normalidade, não apenas confirmando a doença vascular periférica mas indicando doença avançada, com média de ITB abaixo de 0,5. Ampla maioria de nossos doentes apresentava perda tecidual instalada, o que reforça a gravidade do quadro isquêmico e justifica as médias baixas de ITB que obtivemos para ambos os grupos.
Alguns estudos arteriográficos mostraram diferenças entre diabéticos e não diabéticos, relatando que diabéticos têm um maior envolvimento pela doença aterosclerótica do território infra-patelar16,17. No entanto, estudos histológicos mostram que as lesões ateroscleróticas de membros inferiores parecem ter morfologia e distribuição indistinguível em ambos os grupos4,18. O nosso estudo não encontrou diferenças na média do ITB na artéria tibial posterior em pacientes diabéticos e não diabéticos, em todas as categorias clínicas da Classificação de Rutherford.
Já na artéria pediosa houve diferença apenas quanto aos doentes categoria 6, ou seja, entre aqueles com perda tecidual extensa, tendo os diabéticos média de ITB significativamente mais elevada, o que provavelmente se deve à calcificação da camada média arterial na artéria pediosa nesse grupo de doentes. Strandness et al.19, na década de 1960, encontraram que os diabéticos apresentavam um maior comprometimento das artérias tibial posterior, anterior e fibular em relação a pacientes não diabéticos, mas estudando os membros inferiores amputados de ambos os grupos constataram que pouco mais da metade dos membros apresentava a artéria pediosa pérvia. Estudos histológicos revelaram semelhança no padrão da doença aterosclerótica entre diabéticos e não diabéticos4,20-22. Acreditamos que, em havendo um padrão semelhante de doença aterosclerótica e sendo a calcificação da camada média mais prevalente entre diabéticos, essa foi a provável causa da diferença da média do ITB nos doentes com isquemia extremamente avançada, na categoria 6. Vale ressaltar que os valores do ITB entre esses diabéticos na categoria 6 não foram, em média, normais ou falsamente elevados. Os valores do ITB entre diabéticos na categoria 6 da Classificação de Rutherford foram, em média, inferiores a 0,5, apesar de serem estatisticamente superiores aos valores encontrados entre os não diabéticos.
Nosso estudo apresenta as limitações inerentes a um estudo retrospectivo. No entanto, apresenta uma análise detalhada do comportamento do ITB em doentes diabéticos e não diabéticos com isquemia crítica grave, indicando os parâmetros encontrados nesses doentes. Muitas vezes nos deparamos com a afirmação de que o ITB não é um método confiável no diabético. O nosso estudo mostra que uma pequena porcentagem dos doentes diabéticos com isquemia crítica tem ITB aberrante e que, para a maioria desses doentes com isquemia crítica, o ITB reflete uma avançada obstrução arterial da extremidade. Novos estudos são necessários para avaliar a correlação entre o valor ITB e o prognóstico dos casos de isquemia crítica.
Na nossa amostra, diabéticos com isquemia crítica apresentaram maior prevalência de ITB falsamente elevado. De maneira geral, excluindo-se os pacientes com ITB aberrante, diabéticos e não diabéticos com isquemia crítica não diferiram em relação às medias do ITB nas artérias pediosa e tibial posterior. Porém, quando estratificado o grau de isquemia, verificou-se que os diabéticos na categoria 6 da Classificação de Rutherford apresentavam média de ITB mais elevado na artéria pediosa.