versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.81 no.6 São Paulo nov./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.08.007
O carcinoma espinocelular (CEC) constitui mais de 80% dos carcinomas da boca e da orofaringe, e a sua incidência vem aumentando nos últimos trinta anos na região da cabeça e do pescoço, especialmente em pacientes não fumantes e com idade inferior a 45 anos.1-4 Syrjänen et al. (1983), em analogia ao carcinoma de colo uterino, foram os primeiros a sugerir que o papilomavírus humano (HPV) também poderia estar envolvido nesta carcinogênese e, desde então, muitas pesquisa têm sido feitas para conhecer a prevalência do HPV na boca e na orofaringe, tanto em pacientes com lesão, quanto naqueles sem lesão.1,2,5,6
Pelo exposto, parece ser importante para a prevenção dos CEC da região da cabeça e do pescoço estabelecer uma forma de rastreamento acessível e confiável da infecção clínica ou subclínica pelo HPV de alto risco nas mucosas oral e orofaríngea. Os métodos de detecção do HPV nos CEC da boca e da orofaringe têm grandes variações na sensibilidade e na especificidade, com a prevalência oscilando entre 0 e 78%, por isso é muito importante a escolha de um método que possua alta sensibilidade e especificidade para a detecção do HPV.
Atualmente, a metodologia mais utilizada é a hibridização reversa utilizando primers degenerados marcados com biotina, presentes em kits comerciais que permitem a genotipagem da maioria dos tipos de HPV de alto e baixo riscos. São muitos os aspectos que podem interferir na detecção viral, tais como: localização da lesão, presença ou não de queratinização, tipo de amostra colhida e procedimento de colheita (forma de colher, de conservar e de extrair a amostra), além dos métodos utilizados na detecção.2,7-9
Para a obtenção de material de lesões bucofaríngeas, a biópsia continua sendo o procedimento mais usado pelos pesquisadores, pois, além de ser um material que permite estudo morfológico mais detalhado, possibilita a recuperação das células da camada basal onde o HPV poderia estar presente na forma latente.3,10 Entretanto, trata-se de um método relativamente caro, já que depende da presença de um médico e de aparatos cirúrgicos, que nem sempre estão disponíveis na unidade de atendimento.
Este trabalho teve por objetivo verificar, por meio da técnica de reação em cadeia da polimerase e hibridização reversa em linhas, a concordância do achado do HPV em material colhido por escovado e por biópsia de lesões de boca e de orofaringe, testando a viabilidade do método do escovado para a colheita de material de lesão de boca e de orofaringe.
Estudo prospectivo em corte transversal de 35 voluntários com lesão de boca ou de orofaringe que tivesse indicação de biópsia, atendidos consecutivamente num ambulatório de otorrinolaringologia de um hospital geral, no período de abril a dezembro de 2012, que preenchessem os critérios de inclusão (indivíduos com mais de 21 anos de idade, com lesão branca ou vermelha, vegetante, infiltrativa e/ou ulcerada de cavidade bucal ou orofaríngea com mais de 15 dias de duração) e de exclusão (contraindicação clínica para o procedimento cirúrgico e uso de antivirais). Foram comparados os resultados da pesquisa do HPV no material obtido por escovado e por biópsia de uma mesma lesão.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos, cadastrado sob o nº 192/09. Os pacientes selecionados assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido e responderam a um questionário sobre dados epidemiológicos, antes de serem submetidos à colheita do material, como idade, gênero, consumo de tabaco e de bebidas alcoólicas, total de parceiros sexuais durante toda a vida e nos últimos seis meses, tipo de parceiro, tempo de lesão e localização.
A colheita das amostras biológicas foi realizada por um mesmo profissional, em ambiente cirúrgico, com técnicas de assepsia e anestesia infiltrativa locorregional com lidocaína a 1%. A colheita do material se iniciava pelo escovado, esfregando-se na lesão uma escova Cytobrush(r) Plus em três movimentos para frente e para trás, seguida pela biópsia com lâmina de bisturi, evitando-se as áreas de necrose e, quando possível, era incluído tecido adjacente à lesão.
A escova com o material era conservada em um criotubo contendo solução salina aquosa a 0,9%, que foi imediatamente congelado em tambor com nitrogênio líquido a menos 170 ºC. Em seguida foi procedida a biópsia, e o material dividido em três fragmentos: o primeiro foi colocado em solução aquosa tamponada de formaldeído a 10%, para estudo anatomopatológico; o segundo foi destinado a esta pesquisa; e o terceiro ao Biobanco. Os fragmentos eram acondicionados em criotubos distintos e secos, sendo prontamente congelados no mesmo tambor. Todas as amostras foram transportadas juntas até o freezer, permanecendo congeladas a menos de 80 ºC, até serem processadas pelo Laboratório de Biologia Molecular.
As amostras foram processadas de acordo com as normas de biossegurança vigentes. Para a extração do DNA utilizou-se método in house, onde a amostra foi digerida com proteinase-K, seguida por uma purificação com fenol:clorofórmio:álcool isoamílico (25:24:1 Invitrogen) e quantificadas em espectrofotômetro Nanodrop1000 (Thermo scientific).
A qualidade do DNA obtido foi assegurada realizando-se a PCR de b-globina humana com os iniciadores PCO3/PCO4 com aplicon de 110 pb (Saiki et al., 1995). Tanto as amostras positivas como negativas para b-globina humana foram genotipadas utilizando-se o kit de hibridização Linear Array (Roche Diagnostics), que permite a identificação de 37 tipos de HPV de alto e baixo riscos através da hibridização reversa em linhas.
O estudo estatístico deste trabalho foi descritivo, com o auxílio de medidas de localização e com resultados apre sentados em uma tabela. Para variáveis quantitativas, foi utilizado o teste "z". A hipótese nula (Ho) foi não haver diferença significativa entre as duas proporções, para um nível de significância de 0,05. O programa XLSTAT 2013.4.02 foi usado para testar as duas proporções, com avaliação unilateral à direita, em um intervalo de confiança de 95% para a diferença entre as proporções.
O levantamento bibliográfico foi realizado na internet, usando as bases de dados da US National Library of Medicine National Institutes of Health (PubMed) e da Biblioteca Virtual em Saúde (Lilacs), sendo usados os seguintes descritores de assunto: polymerase chain reaction, human papillomavirus, oral mucosa, oropharyngeal mucosa, oropharynx, detection, brushing e biopsy.
Foram estudados 35 indivíduos, sendo 26 homens e nove mulheres, numa relação aproximada de 3:1 de homens e mulheres. A idade variou de 37 a 77 anos, com média de 54 anos. Todos se autodeclararam heterossexuais. Com relação aos hábitos sociais, 11 (31,4%) nunca haviam consumido bebidas alcoólicas regularmente, 18 (51,4%) não consumiam mais e 6 (17,1%) ainda mantinham o hábito; 4 (11,4%) nunca haviam fumado, 11 (31,4%) eram ex-tabagistas e 20 (57,1%) eram tabagistas.
Em 21 (60%) das 35 lesões foi identificado o CEC (21/35), e destes, 15 (71,4%) eram moderadamente diferenciados (15/21), 3 (14,3%) bem diferenciados (3/21) e 3 (14,3%) pouco diferenciados (3/21). Das demais (14/35), em 5 (35,7%) foi feito o diagnóstico anatomopatológico de papilomatose; em 3 (21,4%) de papilomas escamosos; em 3 (21,4%) de processos inflamatórios crônicos ulcerados; em 2 (14,3%) de linfomas; e 1 (7,2%) de pólipo fibroepitelial.
Quanto à localização, 10 (28,6%) eram de língua, sendo 6 da base; 9 (25,7%) de tonsila palatina; 7 (20%) de palato mole; 3 (8,6%) de mucosa da bochecha; 2 de assoalho bucal (5,7%) e 1 (2,9%) nas seguintes localizações: pilar anterior, úvula, lábio inferior e mucosa de orofaringe.
Todas as amostras obtidas por biópsia tiveram 100% de positividade para a b-globina; em contrapartida, nas amostras por escovados a positividade foi de 54,3% (19/35). Foram comparados os 19 pares, sendo que em 18 houve concordância nos achados pela presença ou não de DNA do HPV. Nas amostras por biópsia houve positividade para o DNA do HPV em três lesões, o HPV-16 em um mesmo paciente do escovado, além do HPV-6 em um paciente com linfoma de base de língua e o HPV-11 em um papiloma de orofaringe, e no escovado, o DNA do HPV foi isolado pelo escovado em dois casos de CEC moderadamente diferenciado de tonsila palatina (tabela 1).
Tabela 1 Características das amostras e resultados obtidos pela PCR do gene -globina, detecção do DNA viral, genotipagem pela hibridização em linha do material obtido por escovado e por biópsia
Caso | Características das lesões | Amostras de escovado | Amostra de tecido | ||
b-globina | DNA HPV | b-globina | DNA HPV | ||
1 | CEC de língua | Sim | Não | Sim | Não |
2 | CEC de tonsila palatina | Sim | Não | Sim | Não |
3 | CEC de mucosa bucal | Sim | Não | Sim | Não |
4 | CEC de tonsila palatina | Sim | HPV-52 | Sim | Não |
5 | Processo inflamatório ulcerado de tonsila palatina | Sim | Não | Sim | Não |
6 | Papilomatose de mucosa jugal | Sim | Não | Sim | Não |
7 | CEC de base de língua | Sim | Não | Sim | Não |
8 | Processo inflamatório ulcerado de soalho bucal | Não | Não | Sim | Não |
9 | Linfoma de Hodgkin de base de língua | Não | Não | Sim | HPV-6 |
10 | CEC de tonsila palatina | Não | Não | Sim | Não |
11 | Papilomatose de palato mole | Não | Não | Sim | Não |
12 | Papilomatose de palato mole | Não | Não | Sim | Não |
13 | CEC de soalho de boca | Não | Não | Sim | Não |
14 | CEC de lábio inferior | Não | Não | Sim | Não |
15 | CEC de base de língua | Não | Não | Sim | Não |
16 | Processo inflamatório ulcerado de mucosa jugal | Não | Não | Sim | Não |
17 | CEC de língua | Sim | Não | Sim | Não |
18 | Papilomatose de palato mole | Não | Não | Sim | Não |
19 | Papilomatose de tonsila palatina | Não | Não | Sim | Não |
20 | CEC de base de língua | Não | Não | Sim | Não |
21 | Papiloma escamoso de orofaringe | Não | Não | Sim | HPV-11 |
22 | Linfoma não Hodgkin de tonsila palatina | Sim | Não | Sim | Não |
23 | CEC de palato mole | Sim | Não | Sim | Não |
24 | CEC de língua | Sim | Não | Sim | Não |
25 | CEC de tonsila palatina | Não | Não | Sim | Não |
26 | CEC de tonsila palatina | Sim | Não | Sim | Não |
27 | CEC de tonsila palatina | Sim | HPV-16 | Sim | HPV-16 |
28 | CEC de base de língua | Sim | Não | Sim | Não |
29 | Papiloma escamoso de língua | Não | Não | Sim | Não |
30 | Pólipo fibroepitelial de palato mole | Sim | Não | Sim | Não |
31 | Papiloma escamoso de pilar anterior | Sim | Não | Sim | Não |
32 | CEC de úvula | Sim | Não | Sim | Não |
33 | CEC de palato mole | Sim | Não | Sim | Não |
34 | CEC de língua | Sim | Não | Sim | Não |
35 | CEC de palato mole | Não | Não | Sim | Não |
CEC, carcinoma espinocelular; DNA-ácido, desoxirribonucleico; HPV, papilomavírus humano.
Das 35 amostras pelo escovado, apenas 19 foram analisadas - aquelas que eram positivas na reação de b-globina - e, dentre elas, duas eram positivas para o HPV (2/19), com uma proporção de 0,105263. Já as amostras de tecido obtiveram 100% de positividade para a b-globina, sendo três positivas para o HPV, com uma proporção de 0,085714. Em apenas um par de amostras positivas houve concordância com a genotipagem do correspondente escovado. O programa XLSTAT 2013.4.02 foi usado para testar as duas proporções. No teste z para as duas proporções, foi feita a avaliação unilateral à direita, com um intervalo de confiança de 95%. A diferença entre as proporções foi de 0,020, o z (valor observado) foi de 0,230, com z (valor crítico) de 1,645 e p-valor (unilateral) de 0,409, concluindo, assim, que não houve diferença estaticamente significante entre a proporção de HPV nos dois tipos de amostras.
Tumores de cabeça e pescoço possuem uma incidência mundial de 460.000 novos casos por ano, levando a 228.000 óbitos, estimativa de 2014 do Instituto Nacional do Câncer do Brasil. O HPV-16 é responsável por 25% de todos os carcinomas de células escamosas de cabeça e pescoço, sendo que a sua presença é observada em 45 a 90% dos casos de tumores de orofaringe e em torno de 24% de tumores de laringe e cavidade oral.3
Para este trabalho, o número de casos foi estabelecido com base na literatura, onde a prevalência do HPV em lesão de boca e de faringe é de aproximadamente 36% (p = 0,36), sendo estimado um erro de 3% para definir o tamanho da amostra necessária para a análise.11-17
No Brasil, em indivíduos sem lesão com pequenas amostras (até 100 indivíduos), a prevalência do HPV variou de 0 a 12%,18-21 enquanto em outros países a prevalência variou de 022 a 97%,23 fazendo supor que a prevalência da infecção oral e orofaríngea pelo HPV na população brasileira seja baixa; porém, faz-se necessário um estudo de rastreamento populacional para um melhor conhecimento da prevalência real do HPV em cavidade bucofaríngea da população brasileira. Nesta pesquisa foram encontrados os HPV de alto risco (HPV-16 e HPV-52) e os de baixo risco (HPV-6 e HPV-11), com uma prevalência total de 11,4%. A prevalência do HPV em lesões bucais e orofaríngeas é muito variada, de 024 a 77,8%,9 e nos trabalhos nacionais oscilou de 07 a 75%,19 não sendo possível comparar os resultados de forma consistente, pois os estudos variam muito na metodologia.
A prevalência do HPV é maior em pacientes que tiveram outras doenças sexualmente transmissíveis,25 sendo o grande número de parceiros de sexo oral um fator preditivo para a detecção do HPV oral.23 Entretanto, contrariando o explicitado, os indivíduos deste estudo que tiveram mais de 20 parceiros sexuais não tiveram DNA do HPV detectado em suas lesões.
Até o momento, não há um consenso sobre a melhor técnica de colheita em pacientes com lesão oral e na orofaringe, sendo necessário o investimento em novos trabalhos, por isso a comparação entre os métodos é importante.
No presente trabalho, quando foram comparados os métodos do escovado e da biópsia, nas amostras com CEC de boca ou de orofaringe, não houve diferença estatística entre os métodos, com concordância nos pares de amostras 94,7% (18/19). Termine et al. (2012), em um estudo semelhante, porém sem lesões de orofaringe, apontaram que a frequência de detecção pelo escovado e pela biópsia também não teve diferença estaticamente significante, mas o método de biópsia demonstrou ser mais acurado na detecção do HPV de alto risco.26
Lawton et al. (1992) analisaram três métodos de colheita e puderam concluir que o bochecho, quando usado isoladamente, é o melhor método; porém, a positividade pode ser aumentada quando associada a outros métodos de obtenção de material.27 Jarboe et al. (2011) avaliaram a efetividade da captura híbrida em amostras de escovado oral e de enxague bucal, encontrando maior detecção nas amostras de escovado que nas de enxague bucal.28 Read et al. (2012) compararam três métodos, sendo o enxague bucal o que teve maior sensibilidade de detecção, principalmente naqueles que haviam escovado os dentes antes do enxague.23
Mesmo que a colheita do escovado tenha sido feita de forma padronizada, seguindo protocolos previamente estabelecidos, 45,7% (16/35) estavam inadequadas para a pesquisa do HPV, sugerindo uma baixa sensibilidade do método de colheita, ou por uma incapacidade da escova destinada à colheita ginecológica em obter material das lesões de boca e de orofaringe, ou porque o meio em que foram colocadas não foi capaz de preservá-las. Talvez a escolha de soluções de fixação e de preservação da amostra na escova, como a solução PreservCyt(r),2 a solução de Digene(r)29 e a solução salina tamponada com fosfato (PBS),2,15,26,29-31 possa deixar as amostras em melhores condições para exame citológico do que aquelas que foram acondicionadas em solução salina, como foi utilizado nessa pesquisa. A comparação entre as soluções de fixação do material de boca e de orofaringe na escova poderia esclarecer esta dúvida.
Os resultados desta pesquisa apontam para a participação do HPV em lesões de cavidade oral e orofaríngea, porém, são necessários mais estudos para detalhamento do método de colheita, com investimento em kits específicos para detecção de células escassas, o que permitirá um maior rastreamento do HPV nessas lesões orais e orofaríngeas relacionadas com o HPV, com melhora na prevenção e no tratamento.
Não houve diferença estatística entre os métodos do escovado e da biópsia para detecção do DNA viral nas lesões de boca e de orofaringe, mas o grande número de amostras inadequadas obtidas por escovado sugere haver uma fragilidade desse método na obtenção de amostras deste tipo lesão.