versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.3 São Paulo jul./set. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160051
O transplante renal tem sido descrito como o tratamento mais efetivo para a insuficiência renal crônica terminal (IRC), com melhor qualidade de vida e sobrevida do paciente a longo prazo.1 A demanda aumentada para transplantes eleva o número dos candidatos inscritos em lista de espera, o que tem determinado a maior aceitação de órgãos de doadores falecidos limítrofes (com critério expandido), anteriormente descartados.2-6
São fatores que contribuem para o desequilíbrio entre a oferta e a demanda de órgãos: a recusa familiar para doação de órgãos; a subnotificação de pacientes com diagnóstico de morte encefálica (ME) aos centros reguladores (apesar da obrigatoriedade prevista na lei brasileira); a falta de política de educação continuada aos profissionais de saúde quanto ao processo de doação-transplante; e o elevado índice de contraindicação clínica à doação.7
A aceitação de rins com critério expandido de doação resultou em aumento do número de transplantes e as vantagens de tal estratégia são demonstradas pela melhor sobrevivência do receptor quando comparado àqueles que se mantêm na terapia dialítica, com um ganho na expectativa de vida que varia de 3 a 9 anos.8 Considera-se doador com critério expandido (DCE) relacionado à função aqueles com idade superior ou igual a 60 anos, ou os doadores com idade entre 50-59 anos, com pelo menos dois entre três fatores de risco adicionais: acidente vascular cerebral, história de hipertensão arterial e creatinina sérica acima de 1,5 mg/dl antes do transplante.9
Estes órgãos são elegíveis para a doação, mas por causa da extrema idade e outras características clínicas podem resultar em maior risco de função renal pós-transplante diminuída. Além disto, os benefícios de sobrevida vistos em receptores de transplantes de rins com critério expandido têm sido descritos como inferiores em comparação aos beneficiários de rins com critério padrão.10
O desafio é reduzir a diferença no prognóstico de enxertos de doadores com critério expandido e padrão. Isto implica na necessidade de estratégias adequadas durante as fases pré, trans e pós-transplante, incluindo a redução do tempo de isquemia fria, a seleção cuidadosa do receptor, a adequação dos regimes imunossupressores, a melhoria no processo de seleção do enxerto utilizando critérios histológicos para averiguar o estado vascular e o grau de glomeruloesclerose e, em alguns casos, a indicação de transplantar os dois rins no mesmo receptor.8
A utilização de máquinas de perfusão contínua, apesar de reduzir a incidência de função retardada do enxerto (DGF) e melhorar o aproveitamento dos rins de DCE, não modifica a sobrevida do enxerto a longo prazo quando comparada à perfusão convencional. Rins provenientes do mesmo doador e preservados de forma convencional ou por máquina de perfusão tiveram sobrevida no primeiro ano de 88,4% e 89,8%, respectivamente, e sobrevida no 6º ano após o transplante de 62% e 64,4%, respectivamente.11
O objetivo do presente estudo foi comparar a prevalência de DGF, a sobrevida dos enxertos e pacientes, bem como a função renal após 1 ano de transplante nos grupos com DCE e doador padrão (DCP). São poucos os dados brasileiros publicados na literatura em relação a esta temática.12
Trata-se de um estudo de coorte retrospectivo, realizado em um único centro de transplantes no Brasil. A pesquisa atendeu às exigências éticas e científicas fundamentais da Resolução 466/12,13 uma vez que o estudo foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Walter Cantídio da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, CE, via Plataforma Brasil, e obteve parecer favorável, com protocolo n° 839863.
A população em estudo foi composta por receptores de doador falecido com transplante renal realizado no período de janeiro de 2011 a dezembro de 2013 no referido hospital. Nesse período, foram feitos 323 transplantes renais neste centro, incluindo doadores vivos, doadores falecidos, como também os transplantes duplos (fígado/rim e pâncreas/rim).
A população do estudo incluiu 255 receptores de transplante renal com doador falecido (critério expandido ou critério padrão), que tiveram um seguimento pós-transplante de no mínimo 12 meses. Foram excluídos do estudo os pacientes que fizeram transplante duplo (n = 14) ou doador vivo (n = 13), e os pacientes que não foram acompanhados durante 12 meses no pós-transplante no hospital do estudo (n = 41). Os dados foram coletados por meio da consulta aos prontuários e fichas de seguimento ambulatorial dos pacientes.
No protocolo do referido hospital, são indicações para indução com timoglobulina os transplantes de receptores com alto risco imunológico e os transplantes com doadores de alto risco (critérios expandidos de doação quanto à função, tempo de isquemia fria > 24 horas, idade do doador > 50 anos, doador com necrose tubular aguda, doador com suporte inotrópico em elevadas doses, função retardada do enxerto com doadores limítrofes ou comprometidos).
O esquema de indução com timoglobulina é realizado com 4 doses de 1,5 mg/kg em dias alternados. A indução com basiliximab encontra-se indicada em transplante com doador vivo ou de baixo risco imunológico, sendo realizada com duas doses de 20 mg no dia zero e dia 4. O esquema de manutenção sem esteroides encontra-se indicado em: crianças, diabéticos, coronariopatas, dislipidêmicos, obesos e hepatopatas por vírus B e C.
A função retardada do enxerto foi definida com a necessidade de diálise na primeira semana de transplante e foram considerados como rejeição aguda os episódios confirmados por biópsia do enxerto. A função renal foi avaliada pela creatinina aos 6 e 12 meses, bem como pela estimativa da taxa de filtração glomerular pela equação CKD-EPI.14 O índice KDPI (kidney donor profile index) e o índice KDRI (kidney donor risk index) foram calculados nos doadores falecidos com critério expandido e critério padrão e avaliado o impacto na sobrevida dos enxertos e pacientes nos dois grupos.15
As variáveis contínuas foram expressas em média ± desvio padrão e as variáveis categóricas em porcentagem ou frequência. A comparação das variáveis contínuas e categóricas entre os receptores de transplante renal com DCE e aqueles com doador critério padrão (DCP) foi feita por meio dos testes t de Student, Mann-Whitney ou Fisher. Valores descritivos abaixo de 5% (p < 0,05) foram considerados estatisticamente significativos. A sobrevida dos enxertos e pacientes aos 12 meses pós-transplante foi avaliada usando as curvas de Kaplan Meyer. A análise estatística foi realizada com o programa SPSS 20.0 para Windows (SPSS Inc., Chicago, IL, USA).
Foram avaliados 255 receptores de transplante renal, sendo 231 (90,6%) com doador falecido critério padrão e 24 (9,4%) com doador falecido critério expandido, sendo todos receptores de primeiro transplante renal. No grupo com DCE, nove doadores estavam na faixa etária maior ou igual a 60 anos (37,5%) e 15 doadores entre 50 - 59 anos (62,5%). A doença renal primária foi indeterminada em 33,7% dos pacientes, nefroeslerose hipertensiva em 21,5%, glomerulopatias em 15,4%, nefropatia diabética em 10,8% e outras causas em 18,6% dos casos. As características demográficas da população em estudo encontram-se na Tabela 1.
Tabela 1 Características demográficas da população em estudo (n = 255)
Variáveis | Grupos | p | |
---|---|---|---|
Caso (Média ± DP) | Controle (Média ± DP) | ||
Idade receptor (anos) | 53,04 ± 11,30 | 43,46 ± 13,34 | 0,001* |
Gênero do receptor | Masc: 58,2% | Masc: 53,7% | 0,675 |
HAS: 25,0% | HAS: 16,5% | ||
DM: 8,3% | DM: 5,6% | ||
Doença renal primária | Glomerulopatias: 8,3% | Glomerulopatias: 22,1% | 0,436 |
Indeterminada: 29,2% | Indeterminada: 33,8% | ||
Outros: 29,2% | Outros: 22,1% | ||
Idade do doador (anos) | 58,42 ± 5,29 | 29,48 ± 11,83 | 0,000* |
Gênero do doador | Masc: 50% | Masc: 74,9% | 0,015 |
AVCH: 75% | AVCH: 13,9% | ||
Causa mortis do doador | AVCI: 8,2% | AVCI: 2,6% | 0,000 * |
TCE: 12,5% | TCE: 76,2% | ||
Outras: 4,2% | Outras: 7,4% | ||
Creatinina inicial doador | 0,97 ± 0,33 mg/dl | 1,27 ± 0,64 mg/dl | 0,061 |
Creatinina final doador | 1,37 ± 0,61 mg/dl | 1,48 ± 0,85 mg/dl | 0,749 |
Peso doador (kg) | 68,96 ± 9,74 | 68,29 ± 13,85 | 0,882 |
Altura doador (m) | 1,64 ± 0,07 | 1,65 ± 0,11 | 0,129 |
< 20%: 73,9% | < 20%: 67,4% | ||
PRA | 20-5-%: 17,4% | 20-5-%: 12,6% | 0,386 |
> 50%: 8,7% | > 50%: 20,0% | ||
Induction therapy | Thymoglobulin: 87% Basiliximab: 13 % |
Thymoglobulin: 74.2% Basiliximab: 25.8% |
0.177 |
Manutenção sem esteroides | 41,6% | 30,8% | 0,28 |
Tempo de Internação (dias) | 30,24 ± 26,79 | 24,02 ± 17,09 | 0,382 |
*Valores estatisticamente significantes. Masc: Masculino; HAS: Hipertensão arterial sistêmica; DM: Diabetes mellitus; PRA: Anticorpos reativos contra painel; AVCH: Acidente vascular cerebral hemorrágico; AVCI: Acidente vascular cerebral isquêmico; TCE: Traumatismo cranioencefálico.
Não houve diferença na distribuição por gênero do receptor nos grupos de DCP e DCE, sendo masculino em 53,7% e 58,2%, respectivamente (p = 0,675). Entretanto, o doador foi do sexo masculino em 75% dos doadores padrão e 50% dos doadores com critério expandido (p = 0,015). Quando comparamos a faixa etária dos receptores nos grupos com DCE e DCP, observamos diferença significativa, sendo os receptores de DCE mais velhos. A principal causa de morte no grupo DCE foi AVC hemorrágico (75% das causas versus 13,9% no grupo de DCP), sendo o traumatismo cranioencefálico (TCE) predominante no grupo de DCP (76,2% versus 12,5% no grupo DCE).
Em relação à idade, no grupo de DCE somente 37,5% apresentavam idade maior do que 60 anos. Nos demais doadores entre 50-59 anos, a creatinina terminal foi, em média, de 1,38 ± 0,69 mg/dl, a presença de HAS foi observada em 53,3% e o AVC hemorrágico como causa de morte encefálica esteve presente em 86,6% dos casos. Por outro lado, no grupo de DCE com idade maior ou igual a 60 anos, a creatinina terminal foi em média de 1,34 ± 0,49 mg/dl, a presença de HAS foi observada em 22,2% e o AVCH esteve presente em 55,5% dos casos.
O tempo médio de isquemia fria foi de 21,17 ± 3,88 horas para o grupo com DCE, e de 21,82 ± 4,97 horas para o grupo com DCP (p = 0,794). No grupo com DCE, 70,8% evoluíram com função retardada do enxerto, quando comparada a 62,9% no grupo com DCP (p = 0,441). O número de sessões de hemodiálises no pós-transplante imediato não foi diferente entre os grupos (5,04 versus 3,66; p = 0,58) (Tabela 2).
Tabela 2 Evolução pós-transplante imediato durante internamento, segundo o tipo de doador (doador critério expandido versus doador padrão)
DCE | DCP | p | |
---|---|---|---|
n = 24 | n = 231 | ||
Média ± DP | Média ± DP | ||
Tempo de isquemia fria (horas) | 21,17 ± 3,88 | 21,82 ± 4,97 | 0,794 |
Duração da DGF (dias) | 11,67 ± 18,17 | 8,61 ± 13,53 | 0,565 |
Sessões de hemodiálise (N) | 5,04 ± 7,31 | 3,66 ± 5,11 | 0,580 |
Tempo de internação (dias) | 30,24 ± 26,79 | 24,02 ± 17,09 | 0,382 |
Creatinina na alta (mg/dl) | 2,24 ± 1,53 | 1,73 ± 0,75 | 0,089 |
DGF: Função retardada do enxerto; DCE: Doador critério expandido; DCP: Doador critério padrão.
Com relação às biópsias do enxerto realizadas antes do transplante renal (biópsia padrão), 37,5% foram submetidos ao procedimento no grupo do DCE versus 10,8% no grupo de DCP (p = 0,001). A máquina de perfusão foi utilizada em 16,7% dos receptores do grupo com DCE versus 13,0% com DCP (p = 0,539).
Na imunossupressão de indução, 73,8% dos receptores utilizaram a timoglobulina, seguido de basiliximab em 23,4% e basiliximab seguido de timoglobulina em 2,8% dos casos. A imunossupressão de manutenção mais utilizada foi o esquema com tacrolimus, micofenolato sódico e prednisona (66,1%), seguido de tacrolimus e micofenolato sódico (30,2%) e outros esquemas (3,7%). No grupo DCE, 87% dos receptores fizeram indução com timoglobulina quando comparado a 74,2% no grupo de DCP (p = 0,177).
O tempo médio de internação da população em estudo foi de 24,6 ± 18,2 dias (5-105 dias), sendo 30,2 dias para o grupo com DCE e 24,1 dias para o grupo com DCP (p = 0,382). A creatinina na alta hospitalar foi em média 2,24 mg/dl no grupo com DCE e de 1,73 mg/dl no grupo com DCP (p = 0,089). Rejeição aguda foi diagnosticada em 9,9% do grupo total de receptores, sendo 16,7% no grupo DCE e 9,2% no grupo DCP (p = 0,249)
Não houve diferença na creatinina sérica aos 6 e 12 meses e na TFG aos 12 meses nos pacientes com ou sem esteroides no esquema imunossupressor, bem como na prevalência de DGF nestes grupos (64,3% versus 62,5%; p = 0,779).
Após 12 meses de seguimento, receptores de enxertos de DCP apresentaram níveis de creatinina significativamente inferiores quando comparados aos de DCE (1,15 ± 0,45 mg/dl versus 1,63 ± 1,00 mg/dl; p = 0,047). Em relação à TFG estimada pelo CKD-EPI, observamos que foi significativamente inferior aos 6 e 12 meses no grupo com DCE (Tabela 3).
Tabela 3 Função renal pós-transplante nos grupos de doador com critério expandido e padrão
DCE | DCP | ||
---|---|---|---|
n = 24 | n = 231 | p | |
Média ± DP | Média ± DP | ||
Creatinina (1 m) | 2,41 ± 1,54 | 1,82 ± 1,34 | 0,005* |
Creatinina (6 m) | 1,58 ± 0,71 | 1,20 ± 0,50 | 0,012* |
TFG (6 m) | 49,99 ± 16,49 | 73,11 ± 23,28 | < 0,001* |
Creatinina (12 m) | 1,63 ± 1,00 | 1,15 ± 0,45 | 0,047* |
TFG (12 m) | 56,78 ± 26,99 | 76,87 ± 23,67 | 0,001* |
*p < 0,05; DCE: Doador critério expandido; DCP: Doador critério padrão; TFG: Taxa de filtração glomerular estimada pela fórmula do CKD-EPI.
No grupo com DCE, 20,8% evoluíram com perda do enxerto no primeiro ano versus 8,2% no grupo com DCP (p = 0,044). No grupo com DCE, as perdas de enxerto foram por infecção em um caso, óbito associado à infecção em três casos, rim nunca funcionante em um caso, enquanto no grupo com DCP as causas foram infecção em três casos, trombose venosa em três, trombose arterial em dois, necrose cortical em dois, rim nunca funcionante em dois e óbito em sete casos.
Em relação à sobrevida do paciente, 12,5% tiveram óbito secundário à infecção no primeiro ano no grupo com DCE versus 3,0% no grupo com DCP (p = 0,023). As causas dos óbitos foram infecção (n = 3) no grupo com DCE, enquanto no grupo com DCP foram infecção (n = 6) e sangramento (n = 1).
As curvas de sobrevida de enxertos e pacientes estão apresentadas nas Figuras 1 e 2, sendo observada uma diferença significativa na sobrevida dos pacientes em 1 ano (DCE: 87,5% vs. DCP: 97%; p = 0,025) e uma tendência à diferença na sobrevida dos enxertos em 1 ano (DCP: 91,8% vs. DCE: 79,2%; p = 0,057), segundo o tipo de doador. Entretanto, quando foram excluídos da análise de sobrevida os pacientes cuja causa da perda de enxerto foi óbito com rim funcionante, não foi detectada diferença na sobrevida dos enxertos (DCE: 90,5% vs. DCP: 94,6%; p = 0,452).
Figura 1 Causas de perda de enxertos no primeiro ano pós-transplante nos grupos com doador critério expandido e doador critério ideal.
Figura 2 Causas de óbitos no primeiro ano pós-transplante nos grupos com doador critério expandido e doador critério ideal.
Uma análise paralela deste estudo, que não foi o objetivo principal, incluiu a avaliação do KPDI dos doadores falecidos. Em relação ao KDPI, observamos que 6,7% dos doadores da população em estudo apresentavam um índice ≥ 85%. No grupo com DCE, 62,5% dos pacientes apresentavam KDPI ≥ 85% versus 0,86% dos doadores no grupo com DCP (p < 0,001). Os receptores de enxertos de doadores com KDPI ≥ 85% apresentaram DGF em 70,5% dos casos, comparado a 63,0% no grupo de doadores com KDPI < 85% (p = 0,529).
KDPI ≥ 85% não esteve associado a pior sobrevida do enxerto (88,2% versus 90,8%; p = 0,769) ou do paciente (93,8% versus 96,1%; p = 0,689) após 1 ano de transplante. Entretanto, associou-se a uma pior função renal aos 6 meses avaliada pela TFG CKD-EPI (TFG 6 meses: 57,5 ± 9,1 ml/min versus 70,7 ± 24,4 ml/min; p = 0,005 e TFG 12 meses: 61,3 ± 29,2 ml/min vs. 73,8 ± 25,6 ml/min; p = 0,071).
Não houve diferença nas taxas de rejeição aguda (11,8% versus 10,3%; p = 0,691), tempo de isquemia fria (23,5 ± 3,6 horas versus 23,3 ± 5,1 horas; p = 0,587), duração da DGF (mediana: 11 versus 9 dias; p = 0,783), número de diálises (mediana: 5 versus 4 dias; p = 0,522) e tempo de internamento (29,6 ± 19,9 versus 30,0 ± 17,3 dias; p = 0,182) entre o grupo com KDPI ≥ 85% quando comparado àquele com KDPI < 85%.
Em 2013, foram realizados transplantes com três tipos de doador falecido nos Estados Unidos: padrão, critério expandido e doador após a morte circulatória, com os percentuais de 84,2% dos doadores com morte cerebral e 15,8% de doadores com morte circulatória. No grupo total de doadores, 17% foram com critério expandido. Na lista de espera, 48,1% aceitavam transplantar com rim de doador falecido com critério expandido.16 No mesmo período, o Registro Brasileiro de Transplantes não apresenta informação sobre o percentual de doadores falecidos com critério expandido.6
Em 2012, apesar de o Brasil ter sido o segundo colocado em números absolutos de transplante renal entre 30 países, com um total de 5.385 transplantes, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, com 15.549 transplantes, este número ficou aquém da necessidade de 11.445 transplantes.6 Entre 2011 e 2013, houve 24.134 notificações de potenciais doadores no Brasil, e destes apenas 28,9% se tornaram doadores efetivos.
Entre as causas da não efetivação, observou-se um elevado número de recusa familiar (40%), seguido de parada cardíaca em 21%, contraindicação médica em 16% e outros motivos em 22%.6 A utilização de doadores com critério expandido representa uma tentativa de reduzir a desproporção crescente entre o número de doadores e receptores de órgãos para transplante e reduzir o tempo na lista de espera.11,16,17
A baixa incidência de transplantes com DCE no presente estudo (9,4%) pode ser explicada pela maior oferta de doadores falecidos no Estado do Ceará, com menor tendência ao uso de doadores com critério expandido. No período do estudo, os transplantes com doador falecido representaram 95,9% do total de transplantes realizados no centro em estudo.
Em estudo brasileiro recentemente publicado, em uma coorte de 1412 transplantes renais, o percentual de transplantes com DCE foi de 16,5%, sendo que 14,4% no grupo sem DGF e 18,5% no grupo com DGF.18 Por outro lado, em outra população de receptores de transplante renal no Brasil, 30,6% dos doadores foram critério expandido, em uma coorte de 346 receptores.19
A causa de morte encefálica foi o TCE em 70,2% dos casos em estudo, ao mesmo tempo que foi 38% nos dados brasileiros e 56% nos dados cearenses.6 Em relação às características demográficas destes doadores, houve diferença na distribuição por gênero ente os DCP e DCE, com predomínio do sexo masculino no grupo de DCP. É provável que por ser um grupo mais ativo e jovem, haveria maior exposição ao risco de acidentes, que geram o elevado índice de TCE neste grupo.
Por outro lado, os receptores dos doadores com critério expandido foram mais velhos em relação ao grupo de doadores padrão, o que se justifica pela tendência da dinâmica doação-transplante em oferecer o enxerto renal de doadores com critério expandido para os receptores mais velhos, assim como a maior aceitação dos receptores mais velhos de um doador com critério expandido, por meio da assinatura do termo de consentimento.
A prevalência de função retardada do enxerto no presente estudo foi elevada (63,5%), porém comparável a dados brasileiros já publicados. Um estudo realizado em dois centros de referência em transplante renal do Ceará, comparando a terapia de indução com timoglobulina e basiliximab, detectou uma prevalência de DGF de 56,5% e 63,0%, respectivamente.20 de Sandes-Freitas et al.18 e Helfer et al.19 observaram em suas coortes uma taxa de DGF de 54,2% e 70,8%, respectivamente.
A prevalência de DGF no Brasil tem sido significativamente mais alta (60,6%) do que nos EUA (28%) e Europa (24,7%),21-23 o que provavelmente se atribui a problemas de manutenção inadequada do doador e tempos de isquemia prolongada. No presente estudo, a prevalência de DGF e o número médio de diálises no pós-transplante foi semelhante nos dois grupos de doadores (DCE e DCP), sugerindo que outros fatores comuns aos dois grupos de doadores estão tendo maior impacto na função imediata pós-transplante do que a idade do doador ou a presença de comorbidades, o que acreditamos ser a manutenção desfavorável dos doadores antes de sua efetivação.
O tempo médio de isquemia fria também não foi diferente nos grupos de DCP e DCE. O tempo de isquemia fria descrito nos dados brasileiros é em média de 23,2 h, significativamente mais elevado do que nos Estados Unidos (14,2 h) e Europa (18,0 h).21,24,25 Por outro lado, a creatinina terminal do DCE não foi significativamente mais alta do que a creatinina terminal no grupo com DCP, revelando uma tendência da equipe em utilizar doadores com critério expandido com melhor função renal, uma vez que nem todos foram submetidos à biópsia de congelação.
A biópsia renal realizada pré-transplante do grupo DCE é fundamental na decisão de utilização, implantação de um ou dois rins no mesmo receptor e comparação com as biópsias pós-transplante.12 Entretanto, no período do estudo, somente 37,5% dos DCE foram submetidos à biopsia de congelação, o que poderia vir a contribuir para piores resultados para este grupo de doadores.
Lehtonen et al.26 mostram a relação entre o escore de cronicidade em biópsias renais pré-implante, a função do enxerto e o desenvolvimento de rejeição crônica em um ano. Snoeijs et al.,27 em estudo com 199 doadores com idade acima de 60 anos, mostraram que lesão crônica pré-existente foi mais importante do que outros parâmetros clínicos para o desfecho do transplante.
No presente estudo, houve aceitação de DCE sem biópsia padrão em 62,5% dos casos, conduta atualmente não mais ocorrendo no referido centro de transplante, como medida para melhor seleção dos doadores expandidos e melhora resultados no pós-transplante. Na rotina atual, todos os rins com DCE são submetidos à biópsia protocolar, utilizando como critério o Maryland Aggregate Pathology Index (MAPI), um sistema de pontuação usando glomeruloesclerose, vasculopatia do doador, fibrose periglomerular e cicatriz cortical.28 Além disto, atualmente os enxertos de DCE vão para a máquina de perfusão.
Em relação à imunossupressão, não foi detectada diferença no uso de timoglobulina com agente de indução ou no esquema de manutenção com ou sem esteroide, segundo o tipo de doador. A terapia de imunossupressão usada na indução e na manutenção do enxerto pós-transplante foi semelhante a outros centros transplantadores brasileiros e internacionais.16,29,30
Nos registros norte-americanos, a timoglobulina foi a terapia de indução utilizada em mais de 60% dos transplantes no mesmo período, a imunossupressão de manutenção utilizada foi a associação de tacrolimus e micofenolato, sendo a terapia com esteroide usada em menos de 40% dos pacientes.16
A indução com timoglobulina traz a vantagem de permitir a introdução retardada dos inibidores de calcineurina, talvez contribuindo para uma recuperação mais rápida da função do enxerto renal.31 Entretanto, estudos recentes sugerem que a administração dos inibidores de calcineurina no período precoce de recuperação do enxerto não perpetua ou impede a recuperação da DGF.32
Em resumo, no presente estudo, entre as variáveis que poderiam estar associadas à pior evolução dos transplantes com DCE, não foi detectada diferença significativa entre o tempo de isquemia fria, a creatinina terminal do doador, a prevalência de DGF, a presença de rejeição aguda e o tipo de imunossupressão utilizada segundo o tipo de doador (DCP ou DCE).
No estudo de Baptista et al.,21 entre as variáveis que foram significativamente associadas à pior evolução do transplante, apenas duas são modificáveis e, por este motivo, passíveis de intervenção. São elas o tempo de isquemia fria e a creatinina do doador, sendo necessárias medidas para redução do tempo de isquemia fria e redução dos valores de creatinina sérica do doador para os limites da normalidade.
A redução da creatinina sérica do doador implica ação conjunta do Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos e médicos intensivistas, visando otimizar hidratação, minimizar necessidade de drogas vasoativas e equilibrar balanço hídrico, isto é, melhorar a qualidade de manutenção do doador de órgãos em potencial. Para reduzir o tempo médio de isquemia fria, é necessário agilidade no processo de localização e convocação do receptor, bem como minimizar o tempo de avaliação clínica e laboratorial dos mesmos.
É possível que, no Brasil, onde as condutas para manutenção do potencial doador falecido ainda não são padronizadas e nem priorizadas no atendimento de emergência ou em unidades de terapia intensiva, apenas doadores muito jovens consigam suportar grandes falhas no processo de manutenção hemodinâmica e hidroeletrolítica pré-retirada do órgão, reduzindo, por isso, a idade de risco. Talvez o manejo inadequado dos doadores falecidos interfira negativamente na qualidade do órgão.21
No presente estudo, a variável que diferiu significativamente entre os dois grupos de doadores foi a creatinina sérica e a TFG como marcador de função renal ao longo do primeiro ano de transplante. A literatura tem descrito que a qualidade da função renal após seis meses do transplante com creatinina acima de 1,5 mg/dL é um importante fator de risco para a sobrevida do enxerto.21,33
Foi detectada ainda no presente estudo uma taxa significativamente maior de perda de enxerto e de óbitos em 12 meses no grupo de doadores com critério expandido, mas a análise de sobrevida dos enxertos não foi significativa após exclusão das perdas de enxerto por óbito com rim funcionante. Estes resultados estão em consonância com estudos recentes consultados.34-36
Outros autores demonstraram que rins de DCE apresentam pior função do enxerto e sobrevivência a longo prazo.3,37 No entanto, eles fornecem função aceitável e ainda oferecem um benefício de sobrevida significativo em comparação com a diálise.38,39 Como o presente estudo avaliou somente a evolução no primeiro ano de transplante, não sabemos se esta diferença na creatinina/TFG aos 6 e 12 meses no grupo com DCE vai impactar em uma menor sobrevida após 3 e 5 anos de transplante, dado que será obtido em análises de seguimento.
A literatura demonstra por meio da análise multivariada do registro norte-americano Scientific Registry of Transplant Recipients (SRTR) que, apesar da utilização de rins de doadores falecidos com creatinina sérica ≥ 1,5 mg/dL ter sido associada com risco 10% maior de perda do enxerto e independentemente da idade do doador, dos antecedentes de hipertensão ou morte encefálica por acidente cerebrovascular, valores de creatinina sérica ≥ 2mg/dL não acrescentaram risco adicional de perda do enxerto.37 Dados norte-americanos mostram que a sobrevida do enxerto renal com DCE foi de 87,4% em 1 ano, 66,4% em 5 anos, enquanto que nos pacientes com doador padrão foi de 93,7% e 79,4%, respectivamente.40
O KDPI é uma medida numérica que combina dez características do doador, incluindo parâmetros clínicos e demográficos, para expressar a qualidade dos doadores renais em relação a outros doadores. A inclusão de várias características do doador que influenciam o prognóstico do enxerto confere maior vantagem sobre a atual classificação em DCE e não DCE, uma vez que incorpora 10 fatores do doador (ao invés de quatro na definição de DCE), sendo assim uma medida mais precisa da qualidade do doador.
Outras vantagens da utilização do KDPI sobe a atual classificação de DCE é que este índice é um escore contínuo, ao invés de um indicador binário (sim/não); esclarece o fato de que nem todos os DCE são iguais, alguns tendo qualidade estimada relativamente boa, e que alguns DCP têm na verdade uma estimativa de qualidade inferior a alguns DCE.
O KDPI é derivado inicialmente do cálculo do kidney donor risk index (KDRI) para um doador falecido. O KDRI é uma estimativa do risco relativo de falência pós-transplante do enxerto de um doador falecido comparado com o doador no percentil 50, sendo que menores valores de KDRI associam-se com maior qualidade do doador e maiores valores com menor qualidade do doador, sendo uma ferramenta adicional útil para médicos e pacientes na decisão sobre a oferta e aceitação dos doadores.15
No presente estudo, não observamos associação com sobrevida de enxertos e pacientes, mas houve impacto na função renal aos 12 meses. Uma análise mais detalhada em quartis ou quintis do KDPI poderá revelar esta associação, o que será objeto de um estudo subsequente. A nova política de alocação de órgãos nos Estados Unidos, que passa a ser baseada no KDPI e não mais no critério DCE, tem o objetivo de aumentar a utilização de rins marginais e reduzir as taxas de descarte de órgãos. Entretanto, é necessário cautela e melhor entendimento deste índice para evitar o descarte de órgãos que seriam aceitos por outros critérios.41
O presente estudo teve como limitações o fato de ser um estudo retrospectivo, com curto período de seguimento (somente 1 ano), assim como a não realização de biópsia, padrão protocolar em todos os doadores com critério expandido.
Um questionamento que persiste é se a segurança para utilização de doadores com critério expandido a curto prazo poderia justificar a utilização rotineira destes rins para aumentar a oferta de órgãos e encurtar o tempo de espera para um transplante. Apesar do número crescente de doadores, esse crescimento ainda é insuficiente para atender a demanda dos que esperam por um transplante renal, tendo, associado a isso, o quantitativo elevado de negação familiar e as condições precárias de manutenção do doador no Brasil. Parece bem claro que outras estratégias podem ser implementadas concomitantemente, como maior esclarecimento populacional sobre o processo de doação e maior investimento na manutenção dos doadores em potencial.
O presente estudo detectou que não houve diferença no tempo de internação, função retardada do enxerto, creatinina da alta hospitalar e rejeição aguda nos receptores de DCE em relação ao doador padrão. No grupo com DCE, foram registrados níveis significativamente mais elevados de creatinina e da TFG ao longo do primeiro ano de transplante, bem como um maior percentual de perda de enxertos e óbitos no grupo com DCE quando comparado ao grupo com DCP.
Em relação ao uso do índice KDPI em uma população brasileira, houve associação com pior função renal aos 6 meses pós-transplante, mas não houve associação com maior prevalência de DGF ou pior função renal aos 12 meses pós-transplante, dado não descrito previamente na literatura local. Estudos adicionais, com maior número de pacientes e maior tempo de seguimento para avaliar a sobrevida a médio e longo prazo destes enxertos de DCE, são necessários, bem como para avaliar a aplicabilidade em nosso país de um índice de risco dos doadores desenvolvido em população norte-americana.