versão impressa ISSN 1677-5449
J. vasc. bras. vol.14 no.1 Porto Alegre jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.20140039
A Doença Venosa Crônica (DVC) é a causa mais comum dos sintomas vasculares que acometem os membros inferiores. Na Europa, 15% dos adultos entre 30 e 70 anos apresentam a doença e 1% apresenta úlceras1; em nosso meio, foi constatada uma prevalência de 35,5% e 1,5%, respectivamente. Nas suas fases mais graves, no Brasil, é a 14.a causa de afastamento do trabalho2 , 3. Constitui grave problema de saúde pública, por sua alta prevalência e pelo impacto socioeconômico4.
Apesar da alta prevalência e da gravidade da doença, pouco se sabe sobre a intensidade dos sintomas e da sua influência na qualidade de vida, nas diversas fases de progressão da doença. As telangiectasias e as varizes de membros inferiores são frequentes motivos de consulta médica, sobretudo em países tropicais4 , 5. No entanto, muitas vezes o tratamento dessas manifestações da doença é relegado a um segundo plano ou até mesmo negado pela saúde pública e suplementar, com o argumento de que se trata de queixa meramente cosmética. Aparentemente, fatores sociais, ambientais, culturais, epigenéticos e econômicos podem influenciar essa correlação6.
As queixas e os sintomas da DVC são caracterizados por apresentarem cronicidade, subjetividade e periodicidade. O sintoma principal nem sempre é a dor. A sensação de peso, prurido, câimbra e outros sintomas podem ser referidos e dificultar o diagnóstico, podendo retardar o tratamento adequado em até 40% dos casos4.
Com a melhor compreensão dos mecanismos fisiopatológicos da DVC e a disseminação da utilização da classificação CEAP, o diagnóstico vem sendo realizado com maior frequência e a doença, melhor compreendida7. Entretanto, poucos estudos correlacionaram a gravidade dos sinais clínicos e a progressão da doença com as alterações nos sintomas e a qualidade de vida do indivíduo acometido8 - 14. Alguns estudos demonstraram a presença de correlação positiva9 , 14 - 16 e outros, negativa17 , 18.
O objetivo deste estudo foi verificar a existência de correlação entre a gravidade dos sinais clínicos da DVC (classificação CEAP) com a Escala Visual de Dor (EVAD), a Escala de Gravidade Clínica dos Sintomas Venosos (EGCSV) e a Qualidade de Vida, através da versão brasileira do SF-36 (QV-SF36).
Foram avaliados prospectivamente 59 pacientes com 91 membros acometidos de DVC com classificação CEAP entre C1 e C6, atendidos no Ambulatório de Doenças Venosas, após a aprovação do protocolo do estudo pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital.
Foram analisados os dados demográficos dos pacientes acometidos, a gravidade dos sinais clínicos da DVC, os sintomas e a qualidade de vida através dos seguintes instrumentos:
1. Classificação de gravidade da DVC:
a. Classificação dos Sinais Clínicos CEAP19:
i. C1: Telangiectasias e veias reticulares.
ii. C2: Veias varicosas.
iii. C3: Edema.
iv. C4: Lipodermatoesclerose.
v. C5: Úlcera venosa cicatrizada.
vi. C6: Úlcera venosa em atividade.
2. Escala Visual Analógica de Dor (EVAD): classifica a intensidade máxima de dor ou queixa equivalente com que a doença se manifesta, em uma escala visual de '0 a 10', em que zero significa a ausência de dor e dez, a maior dor suportável20 , 21.
3. Escala de Gravidade Clínica dos Sintomas Venosos (EGCSV): Sistema de classificação de DVC proposto pelo American Venous Forum (Venous Clinical Severity Scale - VCSS), que consta de dez descritores clínicos (dor, presença de varizes, edema, dermatite ocre, lipodermatoesclerose, inflamação, presença de úlcera, diâmetro e tempo de atividade, e uso de terapia compressiva). Cada descritor recebe uma pontuação de '0 a 3' (pontuação máxima de 30). Essa escala define a gravidade da DVC e é capaz de avaliar a resposta à terapia22.
4. Questionário genérico Medical Outcomes Study - 36 - Item Short-Form Health Survey (SF-36), composto por 36 itens que avaliam a qualidade de vida através de oito quesitos. Quatro destes são considerados físicos, que são: capacidade funcional, aspectos físicos, dor, estado geral de saúde; quatro quesitos são mentais: vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e saúde mental. Cada item recebe uma pontuação que vai de '0 a 100', sendo que zero representa a pior situação possível, e 100, a melhor14. Utilizamos o questionário on line presente na: http://www.sf-36.org/demos/SF-36.html.
Foi testada a hipótese da presença de correlação positiva entre a classificação dos sinais clínicos CEAP com os instrumentos de aferição de dor (EVAD), de gravidade dos sintomas venosos (EGCSV) e de qualidade de vida (SF-36) acima descritos. Foi utilizado o Coeficiente de correlação de Spearman, considerando um p significativo quando inferior a 0,05.
Foram avaliados 59 pacientes consecutivos, atendidos no ambulatório de Doenças Venosas. Em 91 membros, foram identificados sinais clínicos de DVC, que foram categorizados de acordo com a classificação CEAP, cujas prevalências são apresentadas na Tabela 1.
Tabela 1. Sinais clínicos CEAP nos membros portadores de Doença Venosa Crônica investigados (N=91).
CEAP | N | % |
---|---|---|
1 | 22 | 24,7 |
2 | 23 | 25,3 |
3 | 10 | 10,7 |
4 | 11 | 12 |
5 | 10 | 10,9 |
6 | 15 | 16,5 |
Total | 91 | 100 |
As características demográficas e os fatores de risco para a DVC são descritos na tabela abaixo, na qual podemos verificar que houve uma adequada homogeinização da amostra (Tabela 2).
Tabela 2. Características demográficas dos pacientes avaliados de acordo com a classificação de sinais clínicos CEAP.
CEAP | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | Valor p | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Idade | Média | 44 | 39 | 43 | 45 | 62 | 68 | 0,34 |
DP | 14,3 | 5,4 | 13,7 | 11,3 | 5,7 | 8,1 | ||
Feminino (%) | 98 | 100 | 89 | 78 | 89 | 78 | 0,28 | |
Raça (%) | 0,23 | |||||||
Branca | 67 | 70 | 80 | 56 | 52 | 63 | ||
Parda | 21 | 26 | 12 | 32 | 38 | 30 | ||
Negra | 12 | 4 | 8 | 12 | 38 | 7 | ||
IMC | Média | 23,4 | 24,7 | 25,7 | 26,2 | 27,8 | 35,6 | 0,16 |
DP | 3,4 | 5 | 4,2 | 6 | 8 | 6 | ||
ACO (%) | 29 | 34 | 23 | 25 | 20 | 11 | 0,12 | |
Rep. Hormonal (%) | 2 | 4 | 12 | 8 | 7 | 1 | 0,34 | |
Obesidade (%) | 8 | 5 | 6 | 12 | 27 | 23 | 0,11 | |
TVP (%) | 0 | 0 | 1,3 | 2,2 | 3,4 | 2 | 0,12 | |
Tabagismo (%) | 5 | 2,2 | 12,1 | 6,2 | 4,1 | 10 | 0,15 |
IMC: Índice de Massa Corpórea. ACO: Anticoncepcional Hormonal. TVP: História de TVP. Valor de p: Teste t de Student para dados pareados.
Em 49 membros (53,8%), a queixa principal do paciente acometido era a dor; em 20 (21,9%), sensação de peso; em 12 (13,2%), sensação de queimação; em 5 (5,5%), de câimbra, e em 5 (5,5%), de cansaço. Esses sintomas foram considerados como equivalentes à dor e a sua intensidade foi classificada também pela EVAD. Foi verificada presença de infecção ou inflamação (celulite, eczema venoso, erisipela ou linfangite) em 78% dos pacientes com classificação CEAP C5-6.
Foi verificada uma correlação positiva entre o grau de classificação clínica CEAP e a EVAD e a EGCSV (Tabela 3).
Tabela 3. Correlação entre a classificação CEAP e a pontuação da Escala Visual Analógica de Dor (EVAD) e da Escala de Gravidade Clínica dos Sintomas Venosos (EGCSV).
CEAPN | 122 | 223 | 310 | 411 | 510 | 615 | CCS | Valorp | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
EVAD | MédiaDP | 1,21,2 | 2,31,3 | 3,42,5 | 5,31,7 | 6,32,3 | 7,42,2 | 0,815 | 0,000 |
EGCSV | MédiaDP | 3,32,6 | 6,43,9 | 11,63,4 | 16,13,5 | 183,6 | 22,34,6 | 0,937 | 0,000 |
DP: Desvio Padrão; CS: Coeficiente de Correlação de Spearman. EVAD: Escala Visual Analógica de Dor. EGCSV: Escala de Gravidade Clínica dos Sintomas Venosos.
Foi verificada também a presença de uma correlação negativa entre os sinais clínicos da doença (Classificação CEAP) e o Questionário de Qualidade de Vida SF-36, sobretudo nos quesitos físicos: Capacidade Funcional: -0,791, p<0,000 ; Limitação Física: -0,839, p<0,000; Dor: -0,684; Estado Geral de Saúde: -0,617; p<0,000. Nos quesitos que avaliam os aspectos mentais e sociais, houve correlação positiva apenas com os Aspectos Emocionais: -0,691; p< 0,000, mas não houve correlação com a Vitalidade: -0,003, p=0,979; os Aspectos Sociais: -0,188, p=0,740, e a Saúde Mental: -0,085, p=0,421 (Tabela 4; Figura 1).
Tabela 4. Correlação entre a classificação clínica CEAP e os quesitos do Questionário de Qualidade de Vida SF-36.
CEAPN | 122 | 223 | 310 | 411 | 510 | 615 | CCS | Valorp | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
CapacidadeFuncional | MédiaDP | 97,75,0 | 95,68 | 52,429,6 | 59,721,2 | 45,615,5 | 50.114,3 | –0,791 | 0,000 |
LimitaçãoFísica | MédiaDP | 99,52,1 | 959,6 | 4828,9 | 54,521,5 | 5111 | 22,916,5 | –0,839 | 0,000 |
Dor | MédiaDP | 81,413,6 | 63,618,2 | 55,217,9 | 61,616,4 | 48,210,9 | 44,28,28 | –0,684 | 0,000 |
EstadoGeral | MédiaDP | 86,914,3 | 70,8713,4 | 69,315,4 | 61,619,5 | 62,96 | 5114,1 | –0,617 | 0,000 |
Vitalidade | MédiaDP | 61,418,8 | 53,315,1 | 62,315,3 | 64,217,9 | 64,814,2 | 5110,9 | –0,003 | 0,979 |
AspectosEmocionais | MédiaDP | 96,99,7 | 83,721,5 | 52,738,9 | 65,320,5 | 59,425 | 5118,2 | –,691 | 0,000 |
AspectosSociais | MédiaDP | 62,518,9 | 63,415,5 | 58,824,3 | 65,221,3 | 65,114,6 | 46,615,7 | –0,188 | 0,740 |
SaúdeMental | MédiaDP | 69,414,53 | 64,815 | 64,421,7 | 68,716,9 | 63,613,7 | 62,816,2 | –,0850 | 0,421 |
N: Membros avaliados. CCS: Coeficiente de Correlação de Sperman. DP: Desvio Padrão.
A gravidade da DVC é classificada (CEAP) com o objetivo de padronizar a avaliação e melhor compreender a progressão da doença19. Essa classificação, entretanto, não quantifica ou qualifica os sintomas, apenas acusa a sua presença, através da observação dos sinais clínicos presentes no membro acometido. Foi verificada uma correlação positiva entre a gravidade dos sinais e a gravidade do refluxo e/ou obstrução encontrada no eco-Doppler venoso colorido, em indivíduos acometidos pela DVC19 , 23 , 24.
O sintoma dor nem sempre é presente na DVC; em nosso estudo, ela esteve presente em 53,8% dos casos. A queixa principal, muitas vezes, é expressa como sensação de peso, queimação, cansaço, câimbra, etc. Isso pode confundir e dificultar o diagnóstico, postergar o encaminhamento do paciente ao especialista e dificultar o acesso ao tratamento da doença. Além disso, apesar de esses sintomas poderem ser importante motivo de desconforto e perda de qualidade de vida, poucos estudos avaliaram a intensidade dos sintomas e a qualidade de vida na DVC10 , 11 , 14 - 18 , 25. A maioria desses estudos foi realizada em países de clima temperado, em que predominam dias frios e onde há menor exposição dos membros; consequentemente, há menor preocupação estética, ao contrário do que ocorre em países de clima tropical. Ainda assim, foi verificado que, mesmo nos estágios iniciais da doença, podem ocorrer limitações funcionais na qualidade de vida do indivíduo acometido26.
Em nosso estudo, verificamos a presença de sintomas através da EVAD20 , 21 e da EGCSV, sistema de classificação proposta pelo American Venous Forum (Venous Clinical Severity Scale - VCSS)27.
Foi observada a existência de uma correlação positiva entre os sinais clínicos(CEAP) da DVC e a EVAD e a EGCSV. Outros estudos não encontraram os mesmos resultados. Bradbury et al.15, estudando uma população de 1500 portadores de DVC, entre 18 e 64 anos de idade, demonstraram uma baixa correlação entre a quantidade de varizes tronculares e a presença de dor, independentemente do sexo investigado15. Howlader et al. verificaram que a média da EVAD foi de 2,8 para a CEAP C2; 4,5 para a CEAP C3, apenas 0,5 na CEAP C4, e 0,0 na CEAP C525. Foram encontradas médias bastante semelhantes nas classificações CEAP C 2 e 3; entretanto, observaram-se médias superiores para o grupo de pacientes portadores de CEAP C4, C5 e C6.
Esses diferentes achados podem ser justificados por uma série de teorias sobre os mecanismos fisiopatológicos da dor. Aparentemente, acontecem alterações na inervação sensitiva da parede venosa nos pacientes portadores de DVC avançada, secundárias à isquemia venosa microangiopática e ao aumento da pressão venosa endoneural28 , 29. Além disso, fatores demográficos, socioculturais, ambientais e epigenéticos30, e a presença de inflamação ou infecção31 , 32 , podem também influenciar na intensidade dos sintomas. Esta casuística apresenta algumas características peculiares: os pacientes apresentavam invariavelmente baixas condições socioeconômicas e culturais, e na classificação CEAP C 5-6, foi verificada a presença de infecção associada em 78% dos casos, condição sabidamente relacionada à presença de inflamação e à intensificação da dor. Além disso, os pacientes aqui observados faziam parte do ambulatório de DVC, em que a constância do retorno nas consultas ambulatoriais ocorria na dependência da permanência dos sintomas.
Foi observada a presença de correlação negativa entre a classificação CEAP e o questionário de Qualidade de Vida SF-36 na maioria dos quesitos: Capacidade Funcional, Limitação Física, Dor, Estado Geral de Saúde e Aspectos Emocionais. Quanto mais avançada a doença, maior foi o comprometimento desses quesitos.
Não houve correlação com os quesitos Vitalidade, Aspectos Sociais e Saúde Mental, pois foi verificado que esses quesitos encontravam-se já comprometidos nos estágios iniciais da doença. A sensação de cansaço que limita a execução de tarefas habituais, a vergonha em expor os membros e o nervosismo foram queixas constantemente encontradas nos estágios iniciais da doença em nosso estudo. Esses resultados coincidem com aqueles encontrados por Andreozzi et al.12, que verificaram a existência de um comprometimento dos quesitos físicos e emocionais mesmo nos estágios inicias da doença (CEAP C1-3). Interessantemente, os mesmos autores verificaram que, nos estágios mais avançados, esse comprometimento assemelha-se àquele presente em doenças consideradas mais graves, como diabetes, câncer, doença pulmonar obstrutiva crônica e até mesmo insuficiência cardíaca12. Em semelhante estudo, realizado em San Diego, EUA, com 2.257 trabalhadores de uma universidade, observou-se também uma importante piora da qualidade de vida, sobretudo nos aspectos físicos, mas não nos mentais33. Em nosso meio, dos Santos et al. também verificaram comprometimento progressivo da qualidade de vida em pacientes portadores de DVC14.
Esta casuística apresenta algumas limitações. Os pacientes atendidos em hospital público, muitas vezes conseguem acesso ao atendimento médico apenas quando acentuadamente sintomáticos ou encontram-se em estágios mais graves da doença. Estudos de coorte populacionais devem ser realizados para uma melhor compreensão da correlação dos sinais clínicos da DVC e os sintomas e a qualidade de vida.
Estes dados demonstram a complexidade da fisiopatologia e a importância da influência do meio e dos aspectos socioeconômicos e culturais na evolução clínica da DVC. Entretanto, é notória a perda da qualidade de vida já nas formas mais precoces da doença.
Nesta amostra de pacientes com DCV, houve uma correlação positiva entre a gravidade dos sinais clínicos e a intensidade dos sintomas, e uma correlação negativa com a qualidade de vida, que é gravemente comprometida, em seus aspectos físicos e emocionais. A vitalidade, a saúde mental e os aspectos sociais podem estar comprometidos já nos estágios iniciais da doença. Estudos de coorte populacionais devem ser realizados para uma melhor compreensão da correlação dos sinais clínicos da DVC e os sintomas e a qualidade de vida.