versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.102 no.2 São Paulo fev. 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20130242
As patologias cardiovasculares são a maior causa de morbimortalidade nos países desenvolvidos e emergentes. Sua principal etiologia, a aterosclerose, é doença disseminada acometendo os territórios coronariano, cerebral e periférico. A doença arterial obstrutiva periférica (DAOP), além de suas consequências per se, sinaliza o acometimento do território coronariano. Portanto, seu melhor conhecimento permite tratamento adequado, retardando complicações locais e à distância, diminuindo o custo para o sistema de saúde.
Este estudo estima a porcentagem de DAOP em nipo-brasileiros de Bauru (SP), reconhecidos pela alta prevalência de distúrbios metabólicos, como hipertensão arterial (43%), diabetes melito (33%) e hipercolesterolemia (60 %), e analisa a associação com biomarcadores de risco.
Este estudo transversal populacional avaliou 1.330 nipo-brasileiros de ambos os sexos com idade ≥ 30 anos que foram submetidos a exame físico completo, medidas antropométricas, exames laboratoriais e índice tornozelo-braço (ITB). Participantes com ITB ≤ 0,90 foram diagnosticados como portadores de DAOP. Após aplicação dos critérios de exclusão, 1.038 indivíduos integraram a análise. Empregou-se regressão de Poisson para análise das associações com DAOP.
A idade média foi 56,8 anos e a porcentagem de DAOP foi 21,1%, igual entre os sexos. DAOP associou-se com tabagismo (RP 2,16 [1,33-3,48]) e hipertensão arterial (RP 1,56 [1,12-2,22]).
A porcentagem de DAOP nos nipo-brasileiros foi semelhante à de outras populações de perfil cardiometabólico desfavorável (US PARTNERS e POPADAD). A associação independente de DAOP com tabagismo e hipertensão, mas não com outros clássicos fatores de risco, pode depender das frequências muito elevadas dos distúrbios metabólicos nessa população.
Palavras-Chave: Fatores de risco; Arteriopatia periférica; Migração; Aterosclerose; Diabetes mellitus; Doença das coronárias
Cardiovascular diseases are the major cause of morbidity and mortality in developed and emerging countries. Their main etiology, atherosclerosis, is a disseminated disease that affects the coronary, cerebral and peripheral territories. The peripheral arterial disease (PAD), as well as its consequences, indicates the involvement of the coronary territory. Therefore, its better understanding enables proper treatment, delaying local and long-term complications, reducing the cost to the health system.
This study estimates the percentage of PAD in Japanese-Brazilians from Bauru (SP), recognized by the high prevalence of metabolic disorders such as hypertension (43%), diabetes mellitus (33%) and hypercholesterolemia (60%), and examines the association with risk biomarkers.
This cross-sectional population study evaluated 1,330 Japanese-Brazilians of both genders aged ≥ 30 who underwent a complete physical examination, anthropometric measurements, laboratory tests and ankle-brachial index (ABI). Participants with ABI ≤ 0.90 were diagnosed as having PAD. After applying the exclusion criteria, 1,038 individuals were part of the analysis. We used Poisson regression to analyze associations with PAD.
The mean age was 56.8 years and the percentage of PAD was 21.1%, equal among the genders. PAD was associated with smoking (PR 2.16 [1.33 to 3.48]) and hypertension (PR 1.56 [1.12-2.22]).
The percentage of PAD in Japanese-Brazilians was similar to other populations of adverse cardiometabolic profile (US PARTNERS and POPADAD). The independent association of PAD with smoking and hypertension, but not with other classical risk factors, may depend on the very high frequencies of metabolic disorders in this population.
Key words: Risk factors; Peripheral arterial disease; Migration; Atherosclerosis; Diabetes mellitus; Coronary diseases
Apesar das mudanças no estilo de vida e crescente arsenal terapêutico, as doenças cardiovasculares continuam sendo a maior causa de morbimortalidade em países desenvolvidos e emergentes. Dados do Ministério da Saúde mostraram que elas são a principal causa de morte no Brasil, tendo sido responsáveis, em 2006, por 29,4% dos óbitos no país, enquanto as neoplasias foram 15,1%1.
A DAOP (doença arterial obstrutiva periférica) de etiologia aterosclerótica é cada vez mais prevalente na sociedade moderna devido, em parte, ao aumento da expectativa de vida, acometendo 202 milhões de indivíduos no mundo em 2010. Na última década foi registrado aumento de 28,7% na sua prevalência, nos países de baixa e média renda per capita, e de 13,1% nos de alta renda2. O crescente interesse no diagnóstico precoce da DAOP vem ocorrendo não apenas pelo aumento de sua prevalência associado ao envelhecimento da população, mas também por estar relacionada à doença aterosclerótica em outros territórios, como coronariano e cerebral3.
Sendo doença de evolução crônica, os recursos necessários para tratamento são altos. Na população norte-americana, o custo estimado por ano foi de 5.955 dólares por paciente com DAOP4.
Além disso, a progressão da DAOP associa-se à da coronariopatia. Foi observado aumento no risco de eventos cardiovasculares de 2,8 vezes em três anos em portadores de DAOP comparados àqueles sem doença3. Estudo conduzido em pacientes submetidos a angiografia coronariana encontrou concomitância entre DAOP e doença coronariana em 90,7% dos pacientes5.
Imigrantes de origem japonesa nas Américas apresentam taxas elevadas de diabetes melito e outros distúrbios metabólicos6. Acredita-se que a exposição ao ambiente ocidental deva ter exacerbado uma tendência genética de acumular gordura corporal, aumentando o risco cardiovascular. Populações geneticamente homogêneas, com perfil cardiometabólico desfavorável, representam uma oportunidade para se estudar a DAOP, bem como outras manifestações do processo aterosclerótico e sua relação com os fatores de risco6 , 7.
Diante desse cenário, justifica-se o interesse de estudo, nessa população, dos fatores de risco tradicionais e não tradicionais para a DAOP, que são semelhantes aos da doença coronariana, permitindo melhor tratamento da doença, retardando complicações e reduzindo o custo para o sistema de saúde.
Este estudo de delineamento transversal foi baseado em população nipo-brasileira residente em Bauru (SP). Os dados utilizados nesta análise pertencem à segunda fase do estudo matriz conduzido em 2000. Indivíduos de ambos os sexos, com idade ≥ 30 anos, de origem nipônica de primeira e segunda gerações, foram convidados a participar. Detalhes metodológicos foram previamente descritos7. O estudo foi aprovado pelo comitê de ética institucional, e o consentimento foi assinado por todos os participantes. O total de 1.330 indivíduos, que correspondeu a um terço da população nipônica local, aceitou participar do estudo, sendo entrevistados com questionários padronizados sobre o estado clínico (tabagismo e história de doenças prévias) e nutricional. Foram agendados para exame clínico (incluindo medidas antropométricas, de pressão arterial e índice de Doppler tornozelo-braço - ITB) e coleta de sangue. Os critérios de exclusão para a presente análise foram dados incompletos dos questionários e da avaliação clínico-laboratorial (255 participantes), ITB > 1,40 (um participante) e concentração de proteína C reativa (PCR-us) > 10 mg/L (36 participantes). Dessa forma, 1.038 indivíduos foram analisados.
Peso (balança Filizola®) e altura foram obtidos com o mínimo de roupa e sem sapatos para o cálculo do índice de massa corpórea (IMC)8. A circunferência da cintura8foi medida com fita métrica não distensível, no ponto médio entre a última costela flutuante e a crista ilíaca, em plano paralelo ao chão, e a do quadril na altura dos glúteos, passando pela sínfise púbica. A razão cintura-quadril9 foi obtida pelo quociente entre essas circunferências. Para diagnóstico de obesidade e obesidade central empregaram se os valores preconizados pela Japan Society for the Study of Obesity8 e, para a razão cintura-quadril, os da Organização Mundial da Saúde9.
A pressão arterial foi medida em aparelho automático (Omron HEM-712C, Omron Health Care, EUA) após cinco minutos na posição sentada. Foi considerado como valor final de pressão sistólica e diastólica a média das duas últimas medidas. Hipertensão arterial foi diagnosticada naqueles com valores pressóricos > 140 × 90 mmHg ou que referiram tratamento medicamentoso10.
Após jejum de 12 horas e rastreamento prévio com glicemia capilar, os participantes foram submetidos a teste oral de tolerância à glicose com 75 g. Além daqueles que referiram tratamento medicamentoso, foram diagnosticados como diabéticos os que atendiam aos critérios da American Diabetes Association (ADA)11. Dessa forma, participantes com glicemia de jejum < 100 mg/dL e duas horas após sobrecarga < 140 mg/dL foram considerados normais. Aqueles com glicemia de jejum entre 100-125 mg/dL e de duas horas < 140 mg/dL foram considerados portadores de glicemia de jejum alterada (GJA). Tolerância à glicose diminuída (TGD) foi diagnosticada quando a glicemia de jejum era ≥ 100 mg/dL, porém com glicemia após sobrecarga entre 140-199 mg/dL. Diabetes foi diagnosticado por glicemia de jejum ≥126 mg/dL ou pós-sobrecarga ≥ 200 mg/dL.
Para diagnóstico de dislipidemias foram empregados os critérios do Executive Summary of the Third Report of the National Cholesterol Education Program - Expert Panel on Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Cholesterol in Adults (Adults Treatmenl Panel III)12. Foram considerados normais quanto ao perfil lipídico os participantes com colesterol total ≤ 200 mg/dL, LDL-colesterol ≤ 130 mg/dL, HDL-colesterol ≥ 35 mg/dL para homens e ≥ 45 mg/dL para mulheres, e triglicérides ≤200 mg/dL. Foram considerados dislipidêmicos aqueles com alteração em pelo menos um desses parâmetros.
Concentrações de ácido úrico até 6 mg/dL para mulheres e até 7 mg/dL para homens foram consideradas normais13. Para homocisteína, o valor de corte foi de 15 µmol/L14; para PCR-us, o valor de corte foi correspondente à mediana da população, o valor de 1,1 mg/L.
Glicose plasmática e lipoproteínas foram determinadas por meio de métodos enzimáticos. A determinação da homocisteína baseou-se na metodologia descrita por Pfeiffer e cols.15. As concentrações de PCR foram determinadas por quimioluminescência.
Esse diagnóstico foi realizado com a utilização de aparelho de Doppler de onda contínua da marca Imbracios® de 8 mHz. O valor do ITB foi calculado pelo quociente da pressão auscultada nas artérias do tornozelo pela maior pressão obtida nas artérias braquiais. Conforme preconizado pelo Transatlantic Society Consensus 16, foi considerado alterado índice ≤ 0,9 e > 1,40. Assim, diagnosticou-se DAOP no participante que apresentasse índice ≤ 0,9 em pelo menos uma das artérias analisadas (tibial posterior ou dorsal do pé) e em uma das extremidades.
Os dados são apresentados em porcentagem ou médias e desvios-padrão. Os participantes foram estratificados segundo a presença de DAOP ou de acordo com os valores do ITB (≤ 0,70; 0,71-0,90; ≥ 0,90)17.
As frequências foram comparadas pelo qui-quadrado, e as razões de prevalência (RP) são apresentadas por ponto e intervalo com 95% de confiança. Na comparação de médias foi usado o teste t de Student ou a análise de variância complementada de Bonferroni.
Empregou-se o modelo de regressão de Poisson na obtenção das RP de DAOP segundo os fatores de risco. No modelo inicial, incluíram-se todas as variáveis que na análise bruta associaram-se à DAOP com p < 0,15. Uma a uma foram sendo retiradas do modelo, considerando as estatísticas de máxima verossimilhança. Adotou-se procedimento semelhante na obtenção dos valores das odds ratios na análise de regressão logística ordenada, segundo os valores do ITB (≤ 0,70; 0,71-0,90; ≥ 0,90).
Nas análises foi usado o software Stata 8.0 (Statacorp, 2004. Stata statistical software release 7.0 College Station, TX Stata Corporation). Valor de p < 0,05 foi considerado significante.
A média de idade dos 1.038 participantes (46% do sexo masculino) foi 56,8 (±12,9 anos). Os homens apresentaram valores mais elevados de IMC, razão cintura-quadril, pressão arterial, glicemia de jejum, triglicérides, ácido úrico e homocisteína, enquanto as mulheres tiveram maiores concentrações de colesterol total, LDL-colesterol, HDL-colesterol e PCR (Tabela 1).
Tabela 1 Média (DP) de variáveis demográficas, antropométricas, clínicas e bioquímicas segundo o sexo de uma amostra de 1.038 nipo-brasileiros da cidade de Bauru (SP)
Homens N = 473 | Mulheres N = 565 | Total N = 1.038 | p | |
---|---|---|---|---|
Média (DP) | Média (DP) | Média (DP) | ||
Idade (anos) | 56,7 (12,9) | 56,9 (12,4) | 56,8 (12,6) | 0,364 |
Cigarros por dia* | 18,1 (7,5) | 16,8 (7,7) | 17,7(7,6) | 0,138 |
Índice de massa corporal (kg/m2) | 25,2 (3,8) | 24,5 (3,8) | 24,8 (3,8) | 0,001 |
Razão cintura-quadril | 0,91 (0,06) | 0,84 (0,07) | 0,88 (0,08) | < 0,001 |
Pressão arterial diastólica (mmHg) | 81,5 (13,5) | 77,5 (13,0) | 79,3 (13,4) | < 0,001 |
Pressão arterial sistólica (mmHg) | 135,5 (23,0) | 131,7 (25,5) | 133,4 (24,5) | 0,006 |
Glicose de jejum (mg/dL)* | 127,2 (31,3) | 122,3 (36,8) | 124,5 (34,4) | < 0,001 |
Glicose 2 horas (mg/dL)* | 168,5 (85,8) | 159,9 (68,8) | 163,9 (77,2) | 0,169 |
Colesterol total (mg/dL) | 211,9 (41,8) | 216,9 (42,9) | 214,6 (42,5) | 0,030 |
Triglicérides (mg/dL)* | 279,9 (244,0) | 198,7 (139,6) | 231,6 (197,5) | < 0,001 |
HDL-colesterol (mg/dL)* | 49,7 (12,5) | 52,4 (10,3) | 51,2 (11,4) | < 0,001 |
LDL-colesterol (mg/dL) | 127,3 (37,8) | 132,9 (38,0) | 130,4 (38,0) | 0,009 |
Homocisteina (mg/dL)* | 13,1 (7,5) | 9,9 (4,1) | 11,4 (6,1) | < 0,001 |
PCR-us (mg/L)* | 1,6 (1,7) | 1,9(1,8) | 1,8(1,8) | 0,015 |
Ácido úrico (mg/L)* | 7,0(1,8) | 5,3(1,3) | 6,1 (1,8) | < 0,001 |
*Valores transformados em logaritmo para análise.
A população total apresentou alta porcentagem de obesidade abdominal (51,4%), hipertensão arterial (45,4%), diabetes melito (34,9%), hipercolesterolemia (62,2%), aumento de LDL-colesterol (48,4%) e aumento de triglicérides (64,3%). As porcentagens de fatores de risco estratificadas por sexo estão na Tabela 2. Especialmente entre os homens, observou-se elevada frequência de tabagismo (p = 0,01). A de hipertensão arterial não diferiu entre os sexos. Quanto aos distúrbios de tolerância à glicose, a porcentagem de DM foi significantemente maior nos homens (38,7% versus 31,7%, p = 0,008). Estes também apresentaram mais frequentemente hipertrigliceridemia, HDL-colesterol baixo, hiperuricemia e hiper-homocisteinemia, mas valores altos de LDL-colesterol e PCR-us foram mais frequentes nas mulheres.
Tabela 2 Porcentagens dos principais fatores de risco cardiovascular de uma amostra de 1.038 nipo-brasileiros da cidade de Bauru (SP) segundo o sexo
Masculino n = 473 | Feminino n = 565 | Valor de p | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |||
Idade | ≤ 60 anos | 284 | 60,0 | 335 | 59,3 | 0,806 |
< 60 anos | 189 | 40,0 | 230 | 40,7 | ||
Tabagismo | Não | 218 | 46,2 | 499 | 88,8 | < 0,001 |
Sim (passado) | 91 | 19,3 | 39 | 6,9 | ||
Sim (atual) | 163 | 34,5 | 24 | 4,3 | ||
Obesidade central | Não | 350 | 74,3 | 153 | 27,1 | < 0,001 |
Sim | 121 | 25,7 | 411 | 72,9 | ||
Índice de massa corporal | < 23 kg/m2 | 131 | 27,8 | 213 | 37,7 | 0,001 |
23,0-24,9 kg/m2 | 107 | 22,6 | 130 | 23,0 | ||
≥ 25 kg/m2 | 234 | 49,6 | 222 | 39,3 | ||
Hipertensão arterial | Não | 250 | 52,8 | 317 | 56,1 | 0,295 |
Sim | 223 | 47,2 | 248 | 43,9 | ||
Tolerância à glicose | Normal | 16 | 3,4 | 42 | 7,5 | 0,008 |
GJA | 170 | 35,9 | 207 | 36,7 | ||
TGD | 104 | 22,0 | 136 | 24,1 | ||
DM | 183 | 38,7 | 179 | 31,7 | ||
Hipercolesterolemia | Não | 189 | 40,0 | 203 | 35,9 | 0,182 |
Sim | 284 | 60,0 | 362 | 64,1 | ||
HDL baixo | Não | 395 | 83,5 | 514 | 91,0 | < 0,001 |
LDL aumentado | Sim | 78 | 16,5 | 51 | 9,0 | 0,002 |
Não | 269 | 56,9 | 267 | 47,3 | ||
Sim | 204 | 43,1 | 298 | 52,7 | ||
Hipertrigliceridemia | Não | 131 | 27,7 | 236 | 41,8 | < 0,001 |
Sim | 342 | 72,3 | 329 | 58,2 | ||
PCR-us | ≤ 1,1 mg/L | 252 | 53,3 | 257 | 45,5 | 0,012 |
1,1-9,9 mg/L | 221 | 46,7 | 308 | 54,5 | ||
Homocisteína | ≤ 15 mg/dL | 286 | 77,3 | 414 | 92,2 | < 0,001 |
> 15 mg/dL | 84 | 22,7 | 35 | 7,8 | ||
Hiperuricemia | Não | 216 | 45,7 | 139 | 24,6 | < 0,001 |
Sim | 257 | 54,3 | 426 | 75,4 |
GJA: glicemia de jejum alterada; TGD: Tolerância à glicose diminuída; DM: Diabetes mellitus.
A porcentagem de DAOP foi de 21,1% (IC95% 18,4-24,1; n = 219) sem diferença entre os sexos (19,2% versus 22,7%). Estratificando-se por sexo, os resultados de participantes com e sem DAOP mantiveram o mesmo padrão, sendo, portanto, apresentados em conjunto. A média de idade dos participantes com DAOP foi maior comparada à daqueles sem doença (60 versus 56 anos, p < 0,001).
Cerca de 53% dos portadores de DAOP eram hipertensos e sua média de pressão sistólica foi estatisticamente maior que naqueles sem a doença (dado não mostrado). Da mesma forma, apresentaram média dos valores de homocisteína maiores (12,2 versus 11,1 mg/dL, p = 0,004).
As porcentagens de DAOP foram significantemente maiores no grupo etário mais velho, nos hipertensos e portadores de hiper-homocisteinemia (Tabela 3). Não foram detectadas diferenças na distribuição dos participantes com ou sem DAOP nas categorias de tabagismo, adiposidade corporal, tolerância à glicose e dislipidemias. O mesmo aconteceu com as categorias de PCR-us e ácido úrico.
Tabela 3 Número, porcentagem e razões de prevalência (intervalos com 95% de confiança) de categorias de variáveis demográficas e clínicas de uma amostra de 1.038 nipo-brasileiros da cidade de Bauru (SP) estratificados segundo a presença de DAOP
Com DAOP n = 219 | Sem DAOP n = 819 | Total n= 1.038 | Qui-quadrado RPIC95% | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | |||||
Sexo | Feminino | 128 | 22,7 | 437 | 77,3 | 565 | 100 | 1,80 | 1 | |
Masculino | 91 | 19,2 | 382 | 80,8 | 473 | 100 | 0,85 | 0,67-1,08 | ||
Idade | ≤ 60 anos | 110 | 17,8 | 509 | 82,2 | 619 | 100 | 10,2 | 1 | |
> 60 anos | 109 | 26,0 | 310 | 74,0 | 419 | 100 | 1,46 | 1,16-1,85 | ||
Tabagismo | Não | 150 | 20,9 | 567 | 79,1 | 717 | 100 | 0,39 | 1 | |
Sim (passado) | 38 | 20,3 | 149 | 79,7 | 187 | 100 | 0,97 | 0,71-1,33 | ||
Sim (atual) | 30 | 23,1 | 100 | 76,9 | 130 | 100 | 1,10 | 0,78-1,56 | ||
Razão cintura-quadril | Não | 101 | 20,1 | 402 | 79,9 | 503 | 100 | 0,57 | 1 | |
Sim | 117 | 22,0 | 415 | 78,0 | 532 | 100 | 1,10 | 0,86-1,39 | ||
Índice de massa corporal | < 23 kg/m2 | 76 | 22,1 | 268 | 77,9 | 344 | 100 | 3,10 | 1 | |
23,0-24,9 kg/m2 | 57 | 24,1 | 180 | 75,9 | 237 | 100 | 1,09 | 0,81-1,47 | ||
≥25 kg/m2 | 85 | 18,6 | 371 | 81,4 | 456 | 100 | 0,84 | 0,64-1,11 | ||
Hipertensão | Não | 101 | 17,8 | 466 | 82,2 | 567 | 100 | 8,1 | 1 | |
Sim | 118 | 25,1 | 353 | 74,9 | 471 | 100 | 1,41 | 1,11-1,78 | ||
Tolerância à glicose | Normal | 8 | 13,8 | 50 | 86,2 | 58 | 100 | 4,40 | 1 | |
GJA | 73 | 19,4 | 304 | 80,6 | 377 | 100 | 1,40 | 0,71-2,76 | ||
TGD | 59 | 24,6 | 181 | 75,4 | 240 | 100 | 1,78 | 0,90-3,52 | ||
DM | 79 | 21,8 | 283 | 78,1 | 362 | 100 | 1,58 | 0,81-3,10 | ||
Hipercolesterolemia | Não | 81 | 20,7 | 311 | 79,3 | 392 | 100 | 0,07 | 1 | |
Sim | 138 | 21,4 | 508 | 78,6 | 646 | 100 | 1,03 | 0,81-1,32 | ||
HDL baixo | Não | 190 | 20,9 | 719 | 79,1 | 909 | 100 | 0,17 | 1 | |
Sim | 29 | 22,5 | 100 | 77,5 | 129 | 100 | 1,08 | 0,72-1,52 | ||
LDL elevado | Não | 112 | 20,9 | 424 | 79,1 | 536 | 100 | 0,03 | 1 | |
Sim | 107 | 21,3 | 395 | 78,7 | 502 | 100 | 1,02 | 0,81-1,29 | ||
Hipertrigliceridemia | Não | 76 | 20,7 | 291 | 79,3 | 367 | 100 | 0,05 | 1 | |
Sim | 143 | 21,3 | 528 | 78,7 | 671 | 100 | 1,03 | 0,80-1,32 | ||
PCR-us | ≤ 1,1 mg/L | 100 | 19,6 | 409 | 80,4 | 509 | 100 | 1,26 | 1 | |
1,1-9,9 mg/L | 119 | 22,5 | 410 | 77,5 | 529 | 100 | 1,15 | 0,90-1,45 | ||
Homocisteína | ≤ 15 mg/dL | 140 | 20,0 | 560 | 80,0 | 700 | 100 | 5,36 | 1 | |
> 15 mg/dL | 35 | 29,4 | 84 | 70,6 | 119 | 100 | 1,47 | 1,07-2,02 |
RP: razão de prevalência; IC95%: intervalo de confiança. DAOP: doença arterial obstrutiva periférica; GJA: glicemia de jejum alterada; DM: Diabetes mellitus.
Na análise ajustada dos dados foram detectadas associações de DAOP com tabagismo e hipertensão arterial (Tabela 4).
Tabela 4 Razões de prevalência (RP) de DAOP e respectivos intervalos com 95% de confiança (IC95%) em uma amostra de 1.038 nipo-brasileiros da cidade de Bauru (SP) segundo a presença de variáveis selecionadas (modelo inicial e final)
Variável | Modelo inicial | Modelo ajustado | |||
---|---|---|---|---|---|
RP | IC95% | RP | IC95% | ||
Sexo | Feminino | 1 | 1 | ||
Masculino | 0,66 | 0,42-1,02 | 0,66 | 0,44-1,01 | |
idade | ≤ 60 anos | 1 | 1 | ||
> 60 anos | 0,98 | 0,71-1,36 | 0,94 | 0,69-1,23 | |
Tabagismo | Não | 1 | 1 | ||
Sim (passado) | 1,45 | 0,91-2,31 | 1,44 | 0,92-2,33 | |
Sim (atual) | 2,14 | 1,32-3,50 | 2,16 | 1,34-3,48 | |
Hipertensão arterial | Não | 1 | 1 | ||
Sim | 1,61 | 1,12-2,31 | 1,56 | 1,12-2,22 | |
Tolerância à glicose | Normal | 1 | |||
GJA | 0,67 | 0,38-1,21 | 0,71 | 0,40-1,32 | |
TGD | 0,76 | 0,42-1,38 | 0,65 | 0,43-1,44 | |
DM | 0,66 | 0,37-1,17 | 0,65 | 0,39-1,23 | |
Homocisteína | ≤ 15mg/dL | 1 | 1 | ||
> 15mg/dL | 1,25 | 0,88-1,77 | 1,26 | 0,89-1,78 |
RP: razão de prevalência; IC95%: intervalo de confiança; GJA: glicemia de jejum alterada; TGD: Tolerância à glicose diminuída; DM: Diabetes mellitus.
Quando estratificamos o ITB em três categorias (≤ 0,70, 0,71-0,90 e > 0,90), o comportamento desses resultados se manteve (dado não mostrado). A média da idade dos participantes com ITB ≤ 0,70 foi estatisticamente maior que nas outras categorias (p < 0,001). Com relação aos distúrbios de tolerância à glicose, as maiores médias de glicemia de jejum e glicemia de duas horas foram observadas nos pacientes com ITB ≤ 0,70 (p = 0,002 e p = 0,001, respectivamente), sendo que 70% daqueles com ITB ≤ 0,70 apresentaram diabetes melito. Os tabagistas apresentaram a maior proporção de ITB ≤ 0,70 (3,9%). Aqueles que apresentaram os menores valores de ITB (≤ 0,70) foram os que fumaram o maior número de cigarros por dia (22,5 cigarros). Já com relação à RCQ, 70% daqueles com ITB ≤ 0,70 apresentaram valores aumentados dessa variável. As médias de pressão sistólica e de homocisteína foram maiores nos participantes com ITB ≤ 0,70 (p < 0,001 e p = 0,031, respectivamente) e 85% destes eram hipertensos (dados não mostrados).
Neste estudo de base populacional, 21,1% dos nipo-brasileiros avaliados residentes na cidade de Bauru eram portadores de DAOP. Considerando o perfil cardiometabólico desfavorável previamente descrito18, essa alta porcentagem já era esperada. Apesar de terem sido observadas maiores frequências de fatores de risco cardiovascular entre os homens, a DAOP foi semelhante entre os sexos.
Similares ao nosso, outros estudos em populações de alto risco cardiovascular encontraram altas cifras de DAOP. O programa US PARTNERS, desenhado para estudar a prevalência de DAOP e outras doenças cardiovasculares, encontrou prevalência de DAOP de 29% em indivíduos > 70 anos ou com idade > 50 anos com comorbidades (diabetes e tabagismo)19. Já o programa POPADAD avaliou 8.000 indivíduos diabéticos com idade ≥ 40 anos e encontrou prevalência de DAOP de 20,1%20.
No nosso meio, estudo multicêntrico sobre prevalência de DAOP, conduzido na população geral de 72 centros urbanos (n = 1.170), encontrou prevalência de apenas 10,5%. Vale ressaltar que a faixa etária era mais baixa (≥ 18 anos) e a amostra representava melhor a população brasileira por não incluir indivíduos geneticamente homogêneos nem de alto risco cardiovascular21. Publicações do nosso grupo comprovaram ser os nipo-brasileiros da cidade de Bauru de alto risco com base nas cifras de obesidade, diabetes melito, hipertensão arterial e dislipidemia22.
Fatores de risco clássicos se associaram independentemente à DAOP, como o tabagismo (atual) e a hipertensão arterial na população estudada. O tabagismo tem sido considerado o mais importante fator de risco passível de prevenção de DAOP23. Esse fator de risco está mais fortemente associado à DAOP que a coronariopatia24 , 25. Relata-se o risco de DAOP, ajustado para sexo e idade, de 1,9 para tabagistas moderados e de 3,9 para os tabagistas pesados, em contraste com riscos de doença coronariana de 1,6 e 1,7, respectivamente25.
Hipertensão arterial esteve presente em mais da metade da população nipo-brasileira de Bauru portadora de DAOP e associou-se a essa complicação independentemente dos demais fatores de risco. Nossos achados concordaram com Lip e cols.26, que detectaram hipertensão em 55% dos arteriopatas estudados em revisão sistemática. Avaliando isoladamente nossa população de hipertensos, encontramos 25% de arteriopatas, valor estatisticamente superior ao de não hipertensos (25% versus 17%, p < 0,05). Na mesma linha, Wiinberg e cols.27, avaliando uma população de 1.044 indivíduos de 20 centros (591 mulheres, média de idade de 71 anos), também verificaram porcentagem de DAOP maior nos hipertensos (10,5% versus 6,2%; p < 0,05).
O diagnóstico de diabetes melito em si não se associou à DAOP nesse estudo. Porém, as médias de glicemia de jejum e de duas horas pós-sobrecarga foram significantemente maiores nos indivíduos com ITB ≤ 0,70, sendo que 70% deles eram diabéticos. Para a American Diabetes Association, diabetes e tabagismo representam os mais importantes fatores de risco para DAOP; havendo diabetes, esse risco aumenta com a idade, o tempo da doença e a presença de neuropatia diabética28. No nosso estudo, 32,3% dos nipo-brasileiros de Bauru diabéticos sabiam ser portadores da doença (n = 117), sendo 11,8 anos o tempo médio de diagnóstico. É possível que a duração da doença na população estudada ainda não tenha causado impacto maior nessa complicação, já que foi descrito 16,2 anos de tempo médio de diabetes para o desenvolvimento da DAOP29.
Interessante foi o encontro de RCQ aumentada em 70% dos nipo-brasileiros de Bauru com ITB ≤ 0,70, diferentemente do IMC, que não mostrou associação com a DAOP. Nossos achados concordaram com os de Planas e cols.30, que encontraram associação positiva entre DAOP e RCQ, mas não com IMC em europeus. Esses autores consideraram não ser o IMC um bom indicador de doença aterosclerótica, principalmente na população de faixa etária mais avançada, pois a massa adiposa pode aumentar sem alterar ou até mesmo reduzir o peso corporal devido à perda de massa magra. Na nossa população, os participantes com ITB ≤ 0,70 de fato eram os mais idosos, supostamente com alguma redução de massa magra.
As concentrações de homocisteína associaram-se à DAOP na análise bruta e também foram maiores nos indivíduos com ITB ≤ 0,70. Vários estudos demostraram tal associação, inclusive no nosso grupo. Em homens nipo-brasileiros também residentes em Bauru havíamos detectado associação positiva e independente entre essas variáveis14. Uma metanálise concluiu que os portadores de DAOP apresentaram concentrações mais elevadas de homocisteína que controles sem a doença, embora uma relação causal ainda não possa ser assegurada31.
Seria esperada associação de anormalidades do perfil lipídico com DAOP. Porém, publicação anterior do nosso grupo mostrou quão elevada é a frequência de dislipidemia nessa população de nipo-brasileiros de Bauru, o que pode ter dificultado atingir significância estatística32. A literatura é escassa quanto às evidências de relação de variáveis lipídicas com o território periférico. Murabito e cols.33 encontraram relação positiva da DAOP apenas com baixas concentrações de HDL-colesterol.
A PCR-us não se mostrou associada à DAOP no nosso estudo. Apenas os pacientes com ITB ≤ 0,70 apresentaram valores mais elevados, porém sem significância estatística. A PCR-us tem sido empregada como marcador de inflamação crônica subclínica, que está presente precocemente na história natural da aterosclerose, bem como do diabetes melito, hipertensão arterial, dislipidemias e outras. Há muita controvérsia sobre a relação entre PCR-us e DAOP na literatura. Os indivíduos incluídos no presente estudo apresentam-se na maioria em fase adiantada da evolução dessas doenças, de modo que seu valor prognóstico pode estar reduzido. A grande maioria dos estudos da literatura que avalia a relação da PCR-us com doença aterosclerótica tem enfocado as artérias coronárias. Um estudo realizado na Clínica Mayo, em 247 indivíduos encaminhados para pesquisa de DAOP assintomática por meio do ITB, também não encontrou associação entre níveis elevados de PCR-us e DAOP34.
Há evidências de que a concentração da PCR tem componente hereditário. Verificou-se que certos polimorfismos no gene da PCR foram capazes de influenciar suas concentrações sanguíneas35. A epidemiologia genética tem auxiliado na obtenção de evidências sobre o envolvimento da PCR na doença aterosclerótica porque, estando a PCR causalmente envolvida na aterosclerose, indivíduos portadores de alelos que promovam elevação das concentrações plasmáticas de PCR apresentariam risco aumentado de doença cardiovascular, sendo esse risco proporcional ao aumento da PCR35 , 36. Entretanto, os estudos publicados35 , 36 ainda não são capazes de assegurar um papel causal da PCR na doença aterosclerótica.
Nossos dados indicaram que, com a gravidade da DAOP, ocorreu aumento das cifras dos principais fatores de risco cardiovascular, sendo os indivíduos com valores de ITB ≤ 0,70 os que apresentaram o pior perfil cardiometabólico. Há necessidade de se antecipar o diagnóstico e o tratamento da DAOP, já que sua presença indica processo aterosclerótico disseminado, comprometendo a sobrevida do indivíduo. Belch e cols.37 consideraram a DAOP uma síndrome aterotrombótica distinta, capaz de predizer a ocorrência de AVC, IAM e óbito. Na ausência da concomitância com a doença coronariana, a DAOP tem sido subtratada e pouco controlada38.
O REACH Registry39, estudo multicêntrico de portadores de doença arterial estabelecida (doença coronariana, cerebrovascular ou periférica), concluiu que o perfil dos fatores de risco é semelhante nas diversas regiões analisadas, com alta proporção de hipertensos (81,8%), diabéticos (44,3%) e portadores de hipercolesterolemia (72,4%). O tratamento desses fatores está inadequado e há disparidade entre as diretrizes estabelecidas e a prática clínica em doentes ou portadores de risco para doença aterotrombótica.
Nosso estudo aponta alta porcentagem de doença aterosclerótica subclínica semelhante à de outras populações de perfil cardiometabólico desfavorável. As frequências muito elevadas de distúrbios metabólicos nessa população podem explicar a relação independente da DAOP apenas com tabagismo e hipertensão, mas não com os outros clássicos fatores de risco. As associações encontradas com fatores de risco modificáveis (tabagismo e hipertensão) devem servir para motivar e orientar intervenções e, consequentemente, diminuir o custo para o sistema de saúde.