versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.32 no.2 São Paulo 2020 Epub 31-Jan-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192019023
A neuropsicologia foi recentemente reconhecida como uma especialidade da fonoaudiologia pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFF) através da resolução nº 453/2014(1) sendo que as atribuições e competências neste campo foram também descritas pela resolução do CFF de nº 466/2015(2). A contribuição do fonoaudiólogo na área data de muito antes do reconhecimento da especialidade, quando já se fazia uso de princípios da neuropsicologia para a avaliação e reabilitação de distúrbios da comunicação. Além disso, muitos fonoaudiólogos brasileiros foram decisivos no desenvolvimento de instrumentos neuropsicológicos que são atualmente utilizados por profissionais de diversas áreas(3).
A neuropsicologia é uma ciência interdisciplinar que tem como foco o comportamento e a cognição, sendo o comportamento coordenado por funções cognitivas, tais como memória, linguagem, atenção, percepção, funções executivas e praxias(4,5). Estas funções cognitivas são objeto de estudo do profissional fonoaudiólogo especialista em neuropsicologia, pois ele atua na prevenção, avaliação, e tratamento dos distúrbios da comunicação afetados pela cognição e pelo funcionamento cerebral(3). O diferencial deste profissional é sua capacidade de fazer uso da neuropsicologia aplicada às dificuldades linguísticas decorrentes de quadros neurológicos, psiquiátricos, neuropsiquiátricos e desenvolvimentais(3).
Para entendermos a relação da fonoaudiologia com a neuropsicologia, podemos exemplificar citando condições neurológicas específicas associadas. As afasias, por exemplo, são distúrbios de linguagem causados, na maioria das vezes, por Acidente Vascular Encefálico (AVE)(6,7). A neuropsicologia tem contribuição nesses casos, pois baterias de avaliação cognitiva e de linguagem são usadas para diagnosticar e planejar a terapia fonoaudiológica nas afasias(6,8).
O processamento auditivo também depende de processos cognitivos adicionais, como a atenção seletiva e sustentada na percepção de figura-fundo(9,10). Há inclusive evidências indicando que alterações no processamento auditivo podem ser um biomarcador pré-clínico de doença de Alzheimer (DA)(11).
A neuropsicologia também possui uma vertente que estuda as alterações desenvolvimentais, como as dificuldades de aprendizagem. A aprendizagem é um processo mental que necessita de um certo nível de ativação e atenção, de vigilância e seleção de informações, ou seja, depende diretamente de funções cognitivas(12). As dificuldades de aprendizagem se dividem em dois subtipos: verbais e não verbais. As verbais, estão associadas às dificuldades na aquisição dos processos simbólicos de leitura escrita, como na dislexia e disgrafia. As não verbais, são caracterizadas por déficits significativos na percepção, memória visual e tátil, praxias, cálculos, habilidades psicomotoras complexas, atenção, funções executivas e estão comumente associadas aos distúrbios neurológicos, como o Traumatismo Cranioencefálico (TCE), hidrocefalia, epilepsia, síndromes austísticas, tumores cerebrais e paralisia cerebral(13,14).
Outro exemplo da aplicação da relação entre a fonoaudiologia e a neuropsicologia ocorre nos casos de demência. Esta condição neurológica é caracterizada por um importante declínio cognitivo e funcional, em que o indivíduo apresenta uma dependência significativa do cuidador com relação às tarefas simples do dia a dia(15). Habilidades de comunicação vão gradualmente diminuindo sobre o curso da doença e os indivíduos podem apresentar alterações linguísticas ou até mesmo mutismo(16,17). Em um tipo específico de demência, a Demência Frontotemporal (DFT), além das alterações cognitivas de funções executivas, há também mudanças na linguagem propriamente dita e na cognição social(18).
Dados referentes à população brasileira, mostram que há um aumento da longevidade e um crescimento do peso relativo da população idosa. Esses dados indicam uma maior necessidade de políticas públicas voltadas para as doenças crônicas do envelhecimento, como é o caso da demência(19). Por esta razão, um documento publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Banco Mundial estima que até 2030 sejam necessários 40 milhões de novos empregos que envolvam assistência social e saúde ao redor do mundo. Estima-se que cerca de 18 milhões de trabalhadores adicionais na área da saúde serão necessários para prover atenção às pessoas com demência, principalmente em serviços de saúde com poucos recursos(20). No Brasil, a demência também vem crescendo, mas ainda é difícil definir as medidas de prevalência e incidência, visto que há uma carência de informações para todo o território nacional(21). A necessidade de aumento do número de profissionais que estejam aptos para lidar com a demência e outras condições neurológicas e psiquiátricas nos leva a priorizar a formação destes e, neste cenário, a neuropsicologia é essencial.
A fonoaudiologia tem trajetória e conhecimento na área de neuropsicologia, e isso vem sendo desenvolvido desde o século passado, quando foram criados os primeiros instrumentos padronizados de linguagem, como as baterias Minnesota, Boston e Montreal-Toulouse, que foram introduzidas no Brasil graças ao empenho de fonoaudiólogos(3). Observa-se também um crescimento da pesquisa e da atuação clínica da neuropsicologia em fonoaudiologia nos últimos anos.
Considerando que o fonoaudiólogo pode agora se especializar em neuropsicologia, é esperado que antes disso ele desenvolva conhecimentos e habilidades básicas neste campo de conhecimento durante sua formação. As diretrizes curriculares do curso de fonoaudiologia preconizam a formação de um profissional generalista e, para isso, o graduando precisa perpassar por todas as áreas de atuação da fonoaudiologia. Desta forma, o contato com a neuropsicologia durante a graduação permite que o estudante conheça a área e desperte interesse pelo seu aprofundamento, possibilitando que, no futuro, este profissional busque a especialização em neuropsicologia ou outras formas de pós-graduação nesta área. No entanto, não se sabe se os cursos de graduação em fonoaudiologia no Brasil oportunizam este contato através de disciplinas específicas sobre neuropsicologia, pois não há estudos investigando essa questão. Desta maneira, este estudo teve como objetivo identificar a presença do ensino da neuropsicologia nos cursos de graduação em fonoaudiologia no Brasil, através de uma análise exploratória dos currículos dos cursos de graduação.
Estudo documental exploratório quantitativo.
Foram incluídas no estudo todas as instituições de ensino superior (IES) que ofereciam o curso de fonoaudiologia no Brasil, que estavam registradas no Ministério da Educação (MEC), e que disponibilizaram o Projeto Pedagógico de Curso (PPC), ementário e/ou matriz curricular do curso para esta pesquisa. O fluxo de inclusão das instituições participantes está ilustrado na Figura 1.
Os documentos (PPC, ementário e/ou matriz curricular) para esta pesquisa foram buscados nos websites das instituições de ensino ou, quando não estavam disponíveis nos websites, foram solicitados via e-mail. O contato por e-mail foi realizado com os coordenadores dos cursos de graduação em fonoaudiologia.
A busca das informações necessárias para o estudo foi realizada por três pesquisadores através de um checklist elaborado em consenso (Quadro 1). Foram coletadas informações para caracterizar as IES, tais como: região demográfica, categoria da IES (pública/privada), a carga horária total do curso, ano de atualização do currículo e qual o tipo de documento fornecido (PPC, ementário, matriz curricular).
Quadro 1 Checklist utilizado na busca das informações do estudo
Características das instituições de ensino superior (IES) | - Nome da IES - Região demográfica de localização - Categoria da IES (pública ou privada) - Carga horária total do curso de fonoaudiologia - Ano de atualização do PPC em investigação - Fonte de dados (e-mail ou website) - Tipo de documento obtido (PPC, ementário ou matriz curricular) |
Características das disciplinas de neuropsicologia | - Presença ou não de disciplina de neuropsicologia - Número de disciplinas de neuropsicologia na IES - Categoria da disciplina (obrigatória ou optativa) - Carga horária da disciplina |
Legenda: IES = Instituição de Ensino Superior; PPC = Projeto Pedagógico de Curso
Em seguida, foi verificado quais IES ofereciam disciplinas que abordassem o tema da neuropsicologia a partir da pesquisa de palavras-chave nos nomes das disciplinas. As palavras-chave utilizadas foram: “neuropsicologia”, “neuropsicológico(s)”, e “neuropsicológica(s)”. Foi computado então o número de disciplinas sobre neuropsicologia, sua carga horária e sua categoria (obrigatória ou optativa).
O desfecho primário deste estudo foi o número de IES que ofereceram disciplinas sobre neuropsicologia. Os desfechos secundários foram as características das instituições de ensino que ofereceram ou não disciplinas sobre neuropsicologia, as características das disciplinas de neuropsicologia e associações entre esses dados.
Os dados foram armazenados e analisados utilizando o software SPSS, versão 25. Variáveis categóricas foram descritas através de frequência absoluta e relativa (n e percentual), enquanto que as variáveis contínuas foram descritas em média e desvio padrão. Associações foram testadas utilizando o teste estatístico Quiquadrado com nível de significância de 5%.
Este estudo não envolveu a participação direta de seres humanos e, portanto, não necessitou da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e de aprovação por comitê de ética. O estudo foi registrado na Comissão de Pesquisa da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) sob número 042/2018.
Foram incluídas no estudo 72 IES, e as características destas instituições encontram-se descritas da Tabela 1. A análise dos documentos curriculares demonstrou que apenas nove destas 72 IES ofereciam a disciplina de neuropsicologia, sendo que a descrição das disciplinas de neuropsicologia se encontra na Tabela 2.
Tabela 1 Descrição das IES incluídas no estudo
N (%) ou Média (DP) | |
---|---|
Região – N (%) | |
Sul | 17 (23,6) |
Sudeste | 26 (36,1) |
Norte | 5 (6,9) |
Nordeste | 17 (23,3) |
Centro-Oeste | 7 (9,7) |
Natureza da Instituição – N (%) | |
Pública | 23 (31,9) |
Privada | 49 (68,1) |
Carga Horária do Curso – M (DP) | 3695,98 (513,91) |
Ano do PPC – N (%) | |
A partir de 2014 | 20 (27,8) |
Anterior a 2014 | 14 (19,4) |
Documento obtido – N (%) | |
PPC | 24 (33,3) |
Ementário | 11 (15,3) |
Matriz Curricular | 37 (51,4) |
Legenda: IES = instituições de ensino superior; M = média; PPC = projeto pedagógico de curso; DP = desvio padrão
Tabela 2 Descrição das disciplinas de neuropsicologia e das IES que oferecem essas disciplinas
N (%) ou Média (DP) | |
---|---|
Carga Horária – M (DP) | 42,11 (13,62) |
Natureza da disciplina – N (%) | |
Obrigatória | 6 (67,7) |
Optativa | 3 (33,3) |
Ano do PPC – N (%) | |
A partir de 2014 | 3 (33,3) |
Anterior a 2014 | 2 (22,2) |
Informação ausente | 4 (44,4) |
Natureza da IES que oferece a disciplina – N (%) | |
Pública | 4 (44,4) |
Privada | 5 (55,6) |
Região da IES – N (%) | |
Sul | 5 (55,6) |
Sudeste | 3 (33,3) |
Centro Oeste | 1 (11,1) |
Nordeste | 0 (0) |
Legenda: IES = instituições de ensino superior; M = média; PPC= projeto pedagógico de curso; DP = desvio padrão
Foram realizadas associações entre as IES que ofereciam disciplinas em neuropsicologia e as características dessas instituições utilizando o teste Quiquadrado, a fim de verificar se o perfil das IES poderia explicar uma maior ou menor oferta de disciplinas nesta área do conhecimento. Ao testar a associação entre a presença da disciplina de neuropsicologia e a natureza da universidade (pública ou privada), não foi encontrada diferença estatisticamente significativa (p=0,390) (Tabela 3). Também não houve associação significativa da presença de disciplina de neuropsicologia com o ano do PPC (p=0,954), nem com a região demográfica de localização da IES (p=0,106) (Tabela 3).
Tabela 3 Associação entre características das IES e presença de disciplinas de neuropsicologia
Presença de disciplina de neuropsicologia (%) |
Ausência da disciplina de neuropsicologia (%) |
P*** | |
---|---|---|---|
Natureza da IES | |||
Pública | 44,4 | 30,2 | 0,390 |
Privada | 55,6 | 69,8 | |
Ano do PPC | |||
A partir de 2014 | 60 | 58,6 | 0,954 |
Anterior a 2014 | 40 | 41,4 | |
Região Demográfica | |||
Sul | 55,6 | 19 | 0,106 |
Sudeste | 33,3 | 36,5 | |
Norte | 0 | 7,9 | |
Nordeste | 0 | 27 | |
Centro-Oeste | 11,1 | 9,5 |
***O Quiquadrado (x2) foi o teste estatístico utilizado
Legenda: IES = instituição de ensino superior; PPC= projeto pedagógico de curso
A neuropsicologia foi recentemente considerada uma especialidade da fonoaudiologia no Brasil(1). Para que um profissional da fonoaudiologia decida por especializar-se nesta área, é necessário que ele tenha tido um contato prévio com esta área durante a sua graduação, a fim de adquirir o conhecimento básico em neuropsicologia e conhecer esta especialidade. Por esta razão, o objetivo deste estudo foi analisar o ensino de neuropsicologia nos cursos de fonoaudiologia das IES brasileiras.
Pelo fato de a neuropsicologia ser uma especialidade da fonoaudiologia, era esperado que grande parte das IES oferecessem disciplinas sobre o tema. No entanto, os resultados deste estudo demonstraram que apenas nove (12,5%) destas IES corresponderam a esta expectativa, sendo que três das disciplinas oferecidas por estas instituições eram de caráter optativo. Não foram encontrados outros estudos com objetivo e metodologia semelhantes aos da presente pesquisa, porém algumas limitações neste panorama científico já foram demonstradas. Um estudo realizado em 2008 havia verificado que, naquela época, havia um restrito número de pesquisas envolvendo a avaliação de linguagem no contexto da neuropsicologia. Por outro lado, este mesmo estudo indicou um crescimento de artigos científicos sobre avaliação de linguagem no contexto neuropsicológico, predominantemente nos últimos seis anos(22). Deste então, não foram mais encontrados estudos que tivessem estudado a atuação da neuropsicologia especificamente em campos da fonoaudiologia.
Adicionalmente, nossa pesquisa procurou compreender qual o motivo da oferta insuficiente de disciplinas de neuropsicologia nos cursos de graduação em fonoaudiologia através da análise estatística da associação entre a presença de disciplinas em neuropsicologia e características das IES. As associações investigadas e as hipóteses a elas relacionadas foram as seguintes: 1) Ano do PPC: hipotetizamos que cursos com PPCs que foram atualizados após a criação da especialidade em neuropsicologia(1,3), isto é, após 2014, teriam maior oferta de disciplinas na área. Apesar de os resultados apresentarem uma tendência indicando uma maior oferta de disciplinas a partir deste período, esta associação não foi significativa (p=0,954). 2) Região demográfica da IES: hipotetizou-se que as regiões sul e sudeste pudessem ter uma maior oferta de disciplinas em decorrência de um maior envolvimento histórico de fonoaudiólogos dessas regiões do desenvolvimento de instrumentos neuropsicológicos. Os resultados absolutos sugeriram uma tendência que corrobora esta hipótese, porém esta associação não foi significativa (p= 0,106). 3) Natureza da IES (pública ou privada): a hipótese foi de que as universidades públicas ofereceriam mais disciplinas de neuropsicologia por possuírem maior carga horária do que as universidades particulares, contudo esta associação também não foi confirmada (p= 0,390).
Na metodologia deste estudo, foram incluídas apenas as disciplinas que continham as palavras-chave de interesse no nome da disciplina. Desta forma, disciplinas que descrevem o ensino da neuropsicologia em suas ementas, objetivos ou conteúdo programático, mas não no seu nome, podem não ter sido incluídas no estudo. Essa limitação ocorreu, pois informações das ementas, objetivos e conteúdos só eram possíveis de se obter nos PPCs ou ementários dos cursos, e poucas IES disponibilizaram esses documentos. Deste modo, optou-se por analisar as matrizes curriculares, pois estes documentos estavam disponíveis em maior número (as matrizes eram disponibilizadas individualmente ou estavam dentro dos PCCs e ementários) apesar de serem documentos que contêm apenas o nome da disciplina e a sua carga horária. Foi considerado que disciplinas exclusivas de neuropsicologia oferecem a oportunidade de integrar conhecimento das áreas de neurologia cognitiva, linguística, psicologia, e outras, a fim de dar sentido à aplicação prática da neuropsicologia. Contudo, é importante destacarmos que há disciplinas que apesar de não serem intituladas com o termo neuropsicologia fornecem conhecimentos que constituem as bases da neuropsicologia, como disciplinas de neurologia e psicolinguística, e apenas não as consideramos neste estudo para evitar possíveis vieses devido à dificuldade de padronização na coleta dos dados.
Os PPCs são os documentos institucionais mais completos a respeito dos cursos de graduação. Os pesquisadores realizaram, além das buscas nos websites, contato via e-mail com as IES a fim de solicitar os PPCs. Em resposta aos e-mails enviados, muitas universidades privadas afirmaram não estarem autorizadas a disponibilizar os documentos, o que contribuiu para um baixo número de PPCs obtidos e para a decisão de utilizar as matrizes curriculares nas análises do estudo.
O reconhecimento da neuropsicologia como especialidade da fonoaudiologia foi uma importante conquista dos profissionais brasileiros. No contexto internacional, que muitas vezes utilizamos como modelo, a formalização desta especialidade fonoaudiológica não é comum. Nos Estados Unidos da América (EUA), a neuropsicologia não é reconhecida como uma especialidade da fonoaudiologia, porém a American Speech-Language-Hearing Association (ASHA) encoraja o referenciamento de pacientes e colaborações entre fonoaudiólogos e neuropsicólogos clínicos(23). A ASHA afirma também que as tentativas de tornar testes e intervenções exclusivos entre uma área e outra estão destinadas a falhar no fornecimento de um serviço de alta qualidade para o paciente. Ela também entende que o foco desses esforços deve ser voltado para a utilidade clínica de determinada informação visando à colaboração entre profissionais com habilidades e conhecimentos distintos, a fim de influenciar os resultados dos pacientes de maneira benéfica(23). Nos EUA, os cursos de graduação de fonoaudiólogos estão repletos de disciplinas base para entendimento da neuropsicologia, e os fonoaudiólogos estão protegidos da restrição de testes por intermédio da ASHA.
Na Europa, a especialidade da neuropsicologia já tem uma trajetória sólida e antiga. Em uma pesquisa realizada na Itália, grande parte dos participantes que exercem a neuropsicologia não possuíam formação em psicologia, sendo que dentre eles estiveram inclusos fonoaudiólogos(24). Na Itália, a lei não estabelece qualquer limite para a prática da neuropsicologia; sendo assim, outros profissionais da saúde podem usar algumas ferramentas de diagnóstico neuropsicológico que não são classificados como de uso exclusivo de psicólogos ou oferecer reabilitação neuropsicológica, mesmo que nunca tenham frequentado qualquer formação em neuropsicologia(24). Em estudo semelhante realizado na Espanha, apenas dois participantes que atuavam em neuropsicologia tinham formação em fonoaudiologia(25). Neste país, até o momento da referida publicação, a acreditação em neuropsicologia ou programas de treinamento em neuropsicologia não eram reconhecidos pelo governo(25).
Em países como China e Japão, a neuropsicologia está limitada a poucos departamentos e institutos com interesses em pesquisa na neuropsicologia e, além disso, os testes neuropsicológicos estão limitados somente aos médicos. No restante da Ásia, incluindo Tailândia, Vietnã, Laos e Brunei, ainda não há a prática da neuropsicologia clínica, assim como no restante da África com exceção da África do Sul(26). Em outros países como Singapura, Taiwan, Hong Kong e Filipinas, a profissão é liderada por neuropsicólogos que estudaram nos EUA ou Austrália e retornaram aos seus países. Entretanto, muitos não retornam e isso acaba sendo um fator de limitação do desenvolvimento da neuropsicologia em países subdesenvolvidos(26). No sul da África, na Índia, Israel e Nova Zelândia também existem oportunidades abrangentes de formação em neuropsicologia e oportunidade de se especializar trabalhando na área(26).
Pensando na América Latina, alguns países não têm nenhum treinamento formal de pós-graduação em neuropsicologia, como a Bolívia, Cuba, Uruguai, Venezuela, El Salvador, Honduras e Panamá. Por outro lado, há formação em outros países da América Latina, tais como o Brasil, México, Colômbia, Argentina, Chile, Equador, Paraguai, Costa Rica e Guatemala(27). A maioria dos profissionais que atuam em neuropsicologia nesses países possuem formação em psicologia, porém não são todos(27).
Dentre os vários obstáculos para o crescimento da neuropsicologia, a literatura menciona a falta de treinamento acadêmico e de supervisões clínicas(24-27), o que também foi observado na realidade brasileira a partir dos resultados do presente estudo. Além disso, no Brasil, houve tentativas de restrição do uso de instrumentos de avaliação neuropsicológica pela fonoaudiologia, mas muitas restrições não se concretizaram e ainda foram um dos pontos importantes que levaram à necessidade do reconhecimento da especialidade. Já a reabilitação neuropsicológica no cenário brasileiro, assim como em outros países da américa latina como Cuba, é descrita na literatura como oferecendo um padrão de cuidado que supera o de muitos países ocidentais(27). Isso demonstra a qualidade da atuação profissional da neuropsicologia no Brasil e seu potencial para expandir o seu alcance e beneficiar a população, apesar das limitações e obstáculos existentes.
Finalmente, vale mencionar que este estudo teve como limitações: a impossibilidade de incluir todas as IES no estudo; a dificuldade em se obter o mesmo tipo de documento de todas as IES (tendo como ideal a obtenção dos projetos pedagógicos); a impossibilidade em analisar o ensino da neuropsicologia em outros contextos além das disciplinas específicas neste tema. Para permitir avanços nesta área, sugere-se a elaboração de outros métodos para investigar de modo mais profundo o ensino da neuropsicologia em outros contextos, assim como a replicação do presente estudo futuramente para verificar se adequações foram feitas nos currículos dos cursos de fonoaudiologia.
Este estudo é o primeiro a avaliar o ensino da neuropsicologia nos cursos de graduação em fonoaudiologia do Brasil, especialmente após o reconhecimento da neuropsicologia como especialidade. Foi possível concluir que há uma carência na oferta de disciplinas de neuropsicologia para os estudantes de fonoaudiologia, e que esta carência não tem relação nenhuma com o tipo de IES, o ano do PPC ou com a região demográfica de localização da instituição. Os achados chamam a atenção para a importância de um currículo que considere todo o escopo de atuação profissional e se ajuste à epidemiologia dos distúrbios da comunicação, pois este é um fator significativo na formação destes profissionais.
É importante destacar que a neuropsicologia é uma área interdisciplinar que abrange diversos conhecimentos. Este aspecto deve ser considerado ao se pensar na aplicação das diretrizes desta área de atuação nos cursos de graduação, pois ela não deve ser restrita a apenas uma única profissão.