versão impressa ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.31 no.3 Rio de Janeiro mar. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00219113
Vários segmentos da sociedade vêm discutindo a questão da judicialização da saúde. O tema já chamou a atenção inclusive da mídia e com frequência leem-se publicados em reportagens de jornais e revistas resultados de ações judiciais envolvendo questões relacionadas ao direito à saúde. A discussão também está muito ativa entre os setores da saúde e do judiciário. Com base no artigo 196 da Constituição Federal que determina que "a saúde é um direito de todos e um dever do Estado", o número de pessoas que recorrem à justiça para assegurar tal direito tem crescido de forma exponencial.
Os dados do Ministério da Saúde indicam que as ações judiciais têm aumentado ano a ano. Em 2009, 10.486 novos processos surgiram contra a União, em 2010 o número foi de 11.203, em 2011, 12.811 e em 2012, 13.051 novos processos 1. De acordo com dados oficiais, a maioria da demanda está relacionada aos medicamentos 2.
Em função da crescente demanda, estudos têm sido conduzidos, em diferentes estados brasileiros, na tentativa de entender o fenômeno da judicialização, traçando o perfil dos processos, fazendo inferências sobre as causas, caracterizando os diversos aspectos envolvidos e apontando alternativas que possam solucionar os problemas.
Assim, o presente estudo teve por objetivo realizar uma revisão sistemática para identificar e caracterizar artigos disponíveis em periódicos científicos indexados em bases eletrônicas, que realizaram levantamento de dados quantitativos, em processos administrativos ou judiciais, sobre a questão do acesso a medicamentos por meio de ações judiciais no Brasil.
Neste estudo, de natureza descritiva, foram utilizados critérios estabelecidos pelo guia Preferred Reporting Itemsfor Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) 3.
Para a inclusão dos artigos, foram estabelecidos os seguintes critérios: (1) realização de levantamento de dados em processos administrativos de gestores da saúde ou em processos judiciais; (2) os processos obrigatoriamente deveriam requerer medicamentos; (3) os estudos deveriam estar disponíveis na forma de artigos científicos; (4) publicados em revistas científicas indexadas nas bases de dados selecionadas; e (5) com levantamento de dados quantitativos. Estudos que realizassem análises teóricas, sobre o fenômeno da judicialização da saúde em geral ou do acesso a medicamentos; anais, monografias, dissertações, teses e boletins informativos de gestores foram excluídos da revisão.
A localização dos artigos científicos foi realizada por meio das bases de dados SciELO, LILACS, MEDLINE pela interface PubMed, Embase e Scopus. Além do uso das bases de dados isoladamente, também se utilizou a interface de pesquisa da Biblioteca Virtual em Saúde (BIREME). A busca para identificar os estudos iniciou com uma revisão mais ampla no intuito de identificar descritores suficientemente sensíveis que localizassem artigos para cumprir os objetivos da pesquisa. Para compor a estratégia de busca, foram identificados Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) na BIREME em inglês e português.
Os termos encontrados foram aplicados individualmente para testar a sensibilidade e chegou-se à seguinte combinação: "drugs and judicial decisions", "right to health" and "judicial power", "SUS" and "pharmaceutical services", "health policy" and "judicialization". Essas três interseções foram aplicadas sempre uma a uma, pois se observou que o agrupamento entre elas diminuía a sensibilidade da busca. Outro achado foi sobre o termo "judicialization", que, apesar de não constituir um DeCS ou um termo MeSH (Medical Subject Headings), tem sido usado no título de artigos e, em alguns periódicos brasileiros, aceito como palavra-chave, tornando-se termo de localização de artigos. A constatação da ocorrência determinou a inclusão do termo na estratégia de busca. A busca se limitou aos idiomas inglês e português. As referências dos artigos selecionados foram verificadas manualmente para identificar outros artigos que atendessem aos critérios de inclusão que não houvessem sido localizados nas bases de dados. No período de abril e maio de 2012 e em junho de 2014, foi realizada uma atualização das informações da pesquisa nas bases de dados MEDLINE interface PubMed e SciELO.
Duas pesquisadoras, de forma independente, realizaram a busca e a primeira triagem pelo título dos artigos e o resultado foi confrontado para evidenciar resultados semelhantes e em caso de divergência repassado o método e a busca refeita. Os artigos foram inicialmente selecionados, ainda de maneira independente pelas duas pesquisadoras, pelo título e, no caso de dúvidas, os resumos eram lidos. Os artigos selecionados em tal processo foram transferidos ao programa EndNote (Thomson Reuters. http://www.endnote.com/) para armazenamento e gerenciamento das referências e excluídas duplicatas. Havendo divergências de inclusão ou exclusão, um terceiro pesquisador era consultado para dirimir as dúvidas. Os artigos completos foram recuperados e lidos na íntegra pela pesquisadora principal e, caso houvesse dúvidas sobre a inclusão ou não de algum artigo, a tomada de decisão era discutida entre as autoras desta revisão.
Após a seleção dos artigos e leitura completa, foi criado um banco de dados no programa Excel (Microsoft Corp., Estados Unidos) para gerenciar as informações dos artigos. A confiabilidade e a validade dos dados foram avaliadas pela descrição dos métodos em cada estudo e a generalização no contexto de estudo. Não foi encontrada uma escala de pontuação para avaliar a qualidade de artigos com as características dos estudos de judicialização, por isso as informações dos artigos foram extraídas e analisadas com base na lista de verificação Strengthening the Reporting of Observational studies in Epidemiology (STROBE) 4, que serve como uma recomendação da forma mais adequada para relatos de estudos observacionais. Mesmo não sendo avaliador de qualidade, serviu de parâmetro para encontrar informações relevantes nos artigos comparativamente aos critérios da lista de verificação. As seguintes informações foram coletadas e registradas: título do artigo, autores, periódico, ano, país e idioma de publicação, objetivos, métodos (delineamento, sujeitos do estudo, variáveis, fontes de dados, tamanho do estudo), resultados, conclusões e limitações dos estudos.
Foram encontrados 1.023 estudos por meio de busca nas bases de dados eletrônicas, sendo selecionados para leitura completa 45 deles. Após análise mais detalhada e aplicando-se os critérios de exclusão, chegou-se a um número de 15 artigos. Posteriormente, na atualização dos dados em junho de 2014, foram localizados mais cinco artigos e, dentre eles, três foram excluídos por não se enquadrar nos critérios de seleção. Ao final, foram selecionados e incluídos 17 artigos (Figura 1). Em relação à adequação das informações nos artigos ao critério STROBE de apresentação de limitações dos estudos, 7 artigos não fizeram referência às limitações e os que fizeram indicaram como principais limitações o número baixo de processos analisados, que prejudicava a validação externa, acesso a dados dos pacientes e das doenças envolvidas na solicitação dos medicamentos.
Dos estudos analisados, 43,7% foram publicados nos anos de 2010 e 2011 no Brasil (93,7%). Os estados brasileiros que mais apresentaram publicações sobre a questão da judicialização de medicamentos foram: São Paulo (31,2%) e Rio de Janeiro (25%). No total, foram analisados 17.783 processos de aquisição de medicamentos por via judicial no período de 2005 a 2013. A revista que mais apresentou publicações sobre o tema foi a Revista de Saúde Pública (Tabela 1).
Tabela 1 Caracterização dos estudos sobre a judicialização de medicamentos no Brasil publicados entre 2005 e 2013.
Informações sobre as publicações | n | % |
---|---|---|
Ano de publicação | ||
2013-2012 | 5 | 29,4 |
2011-2010 | 8 | 47,0 |
2009-2008 | 2 | 11,8 |
2007-2006 | 1 | 5,9 |
2005 | 1 | 5,9 |
Entes envolvidos nas pesquisas | ||
União | 1 | 5,9 |
São Paulo | 5 | 29,4 |
Rio de Janeiro | 4 | 23,5 |
Minas Gerais | 2 | 11,8 |
Rio Grande do Sul | 2 | 11,8 |
Santa Catarina | 2 | 11,8 |
Pernambuco | 1 | 5,9 |
Idioma de publicação | ||
Português | 16 | 94,1 |
Inglês | 1 | 5,9 |
País de publicação | ||
Brasil | 16 | 94,1 |
Estados Unidos | 1 | 5,9 |
Revista | ||
Ciência & Saúde Coletiva | 2 | 11,8 |
Revista de Saúde Pública | 8 | 47,0 |
Cadernos de Saúde Pública | 5 | 29,4 |
Health and Human Rights | 1 | 5,9 |
Revista do Direito Sanitário | 1 | 5,9 |
Delineamento do estudo | ||
Descritivo quantitativo | 14 | 82,3 |
Descritivo misto (teórico/quantitativo) | 3 | 17,7 |
Processos analisados (tamanho da amostra) | ||
≤ 500 | 8 | 47,0 |
500-1.000 | 2 | 11,8 |
1.000-1.500 | 2 | 11,8 |
1.500-2.000 | 0 | 0,0 |
2.000-2.500 | 3 | 17,6 |
2.500-3.000 | 2 | 11,8 |
Nas Tabelas 1 e 2, são sumarizados os dados gerais relativos às publicações, características dos estudos e as fontes usadas na coleta de dados das pesquisas. Ressalta-se que o ano de início das publicações incluídas é 2005 e tem seu auge nos anos de 2010 e 2011. Os dados referem-se a estudos desenvolvidos nos estados de Pernambuco 5, Rio Grande do Sul 2,6, Minas Gerais 7,8, Rio de Janeiro 9,10,11,12, São Paulo 13,14,15,16,17 e um artigo coletou dados diretamente no Ministério da Saúde, em Brasília 18. Os artigos que apresentaram maior número de processos analisados (faixa entre 2.000 e 2.927 processos) foram conduzidos nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina 7,12,14,16,19.
Tabela 2 Caracterização do tipo de documento e órgãos usados como fonte nas pesquisas.
Fonte de dados (tipo de documento e local) | n | % |
---|---|---|
Documentos | ||
Decisões interlocutórias de ações judiciais e relatório de custos de medicamentos | 1 | 5,9 |
Dossiês sobre judicialização do Ministério da Saúde | 1 | 5,9 |
Processos judiciais | 14 | 82,3 |
Arquivo de autorizações financeiras para compra de medicamentos | 1 | 5,9 |
Local de onde foram coletados os dados | ||
Secretaria Municipal de Saúde * | 2 | 11,8 |
Secretaria Estadual de Saúde | 7 | 41,2 |
Arquivos físicos e eletrônicos do Ministério da Saúde | 1 | 5,9 |
Sítio eletrônico do Tribunal de Justiça | 2 | 11,8 |
Procuradoria Geral de Estado (PGE) | 2 | 11,8 |
Sistema de Controle Jurídico (SCJ) | 3 | 17,6 |
* Uma pesquisa também usou como local para coleta de dados a Secretaria da Criança, Adolescente, Idoso, Família e Desenvolvimento Social e a Associação Florianopolitana de Voluntários.
Em relação à fonte de dados, a maioria dos estudos analisou processos judiciais (83,3%), e um estudo avaliou apenas as sentenças proferidas em 1ª instância 13 e outro, ações iniciadas em 1ª instância e julgadas em 2ª instância 9. Os locais de coleta dos dados mais frequentes foram: Secretarias Estaduais de Saúde (41,2%) e Sistema de Controle Jurídico Online do Estado de São Paulo (17,6%) (Tabela 2).
A Tabela 3 apresenta as variáveis jurídicas relevantes apresentadas nos estudos. Do total das pesquisas, 64,7% (n = 11) determinaram qual a representação jurídica da ação. Em seis estudos 2,9,10,11,14,17 predominaram a representação pública (Defensoria Pública, Ministério Público, Procuradorias Municipais, Estaduais e Procuradoria Geral da União). Em cinco 6,7,8,16,20 predominaram as representações de advogados particulares. Em um estudo a assistência gratuita foi concedida para todos os demandantes 6. Dois estudos observaram que um pequeno número de advogados e médicos estava associado a um grande número de processos 7,17. Em um dos estudos os autores conseguiram verificar, por exemplo, que em um dos escritórios de advocacia que representou ações (165 ações), 43,6% tiveram um único médico prescritor para o adalimumabe (terapia para artrite reumatoide), sugerindo que pode haver uma associação entre o laboratório produtor, prescritores e advogados 7.
Tabela 3 Variáveis jurídicas de maior relevância presentes nos estudos sobre judicialização de medicamentos.
Variáveis jurídicas analisadas | n | % |
---|---|---|
Representação jurídica dos autores (pública, privada e assistência jurídica gratuita) | 11 | 64,7 |
Alegação dos autores da ação e argumento dos juízes para justificar a demanda judicial | 4 | 23,5 |
Natureza da ação (individual ou coletiva) | 2 | 11,8 |
Pedido de antecipação de tutela ou outras liminares | 3 | 17,6 |
Réus (União, Estado, Município ou a combinação deles) | 4 | 23,5 |
Outro achado importante foi o estudo realizado em Pernambuco, no qual os pesquisadores encontraram que no primeiro semestre de 2009 o custo com aquisição dos medicamentos das ações analisadas foi de aproximadamente R$ 4,5 milhões e 70,9% dos medicamentos requisitados tinham solicitação de carta patente no Brasil ou pedido no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, caracterizando domínio de mercado. Além disso, 80% desses medicamentos eram fabricados por oito empresas farmacêuticas e 90,95% dos recursos financeiros da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) para aquisição desses medicamentos destinavam-se a sete laboratórios produtores 5.
Quatro estudos 2,5,6,12 (23,5%) analisaram a alegação dos autores da ação judicial para justificar a demanda. As principais alegações referem-se à urgência quanto à situação de saúde, risco de morte, existência de prescrição e/ou laudos médicos comprovando a necessidade do medicamento. Em um estudo, realizado no Rio Grande do Sul, a alegação de demora ou negação de pedido administrativo foi usado em 29% dos casos analisados 2. O direito fundamental à saúde assegurado pela Constituição Federal aparece como justificativa em pelo menos três artigos 2,6,12.
Apenas dois 6,10 (11,8%) estudos observaram se a ação era coletiva ou individual, e nas duas pesquisas a prevalência era de ações individuais. Três 2,6,10 (17,6%) artigos avaliaram os pedidos de antecipação de tutela ou outro tipo de liminar, e os resultados observados foram os seguintes: em dois estudos houve 100% de pedidos 6,10; em um, 98% 2. A maioria dos estudos (76,5%; n = 13) coletou dados específicos para diferenciar se havia mais de um réu nas ações, quatro realizaram essa análise 2,6,9,10, em dois deles os réus foram estados e municípios 9,13 e os demais estados, municípios e União 2,6.
As características relacionadas ao tipo de medicamento solicitado, a origem do serviço, se público ou privado, atendimento do paciente, presença em listas padronizadas e registro no país são apresentados na Tabela 4. Dois artigos tratam especificamente de ações judiciais para doenças raras 6,18; um teve como foco as ações movidas por pacientes com câncer 17. Dos cinco estudos que avaliaram mais de 2 mil processos, somente um verificou se a origem do atendimento era do setor de saúde público ou privado e se os medicamentos solicitados tinham registro na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) 14 e três estudos verificaram se os medicamentos solicitados por via judicial faziam parte de listas oficiais 12,14,19. Ainda em relação aos estudos com maior número de processos analisados, um deles realizou a pesquisa compreendendo um período mais longo dez anos 7, os outros realizaram num período compreendido entre 1 e 3 anos 12,14,16,19. Dois desses estudos são de um mesmo grupo de pesquisa e publicaram análises do mesmo universo amostral em períodos diferentes e com análises diferentes 14,16.
Tabela 4 Análise dos artigos quanto às indicações terapêuticas mais frequentes, medicamentos mais solicitados, origem dos serviços de saúde, registro dos medicamentos na ANVISA e presença em listas oficiais.
Autor | Indicações terapêuticas | Medicamentos mais solicitados | Serviços de saúde | % sem registro ANVISA | Presenças em listas oficiais |
Ano de publicação |
---|---|---|---|---|---|---|
Stamford et al. 5 (n = 105) |
NA | Antineoplásicos e agentes moduladores do sistema imunológico | NA | NA | NA | 2012 |
Campos Neto et al. 7 (n = 2.412) |
Artrite reumatoide, diabetes mellitus tipo I, outras doenças pulmonares obstrutivas crônicas e espondilite anquilosante. | Adalimumabe, etanercepte, ácido ursodesoxicólico, infliximabe e insulina glargina. | NA | NA | NA | 2012 |
Sartoni Junior et al. 6 (n = 13) |
Doença de Fabry * | Alfagalsidase ** | Privado | 0% | NA | 2012 |
Diniz et al. 19 (n = 196) |
Mucopolissacaridose tipo IV *** |
Galsulfase ** | NA | NA | NA | 2012 |
Biehl et al. 2 (n = 1.080) |
Hipertensão essencial, diabetes mellitus, hepatite viral crônica, doenças isquêmicas do coração e doenças pulmonares obstrutivas crônicas | Teriparatida, clopidogrel, insulina glargina, rituximabe, infliximabe | Púbico | NA | Essenciais 28%; excepcionais 27%; especiais 11%; uma ação estratégica; 56% fora de lista |
2012 |
Macedo et al. 13 (n = 81) |
NA | NA | NA | NA | 14,3% atenção básica e 19,5% excepcional | 2011 |
Machado et al. 8 (n = 827) |
NA | Adalimumabe, etanercepte, insulina glargina, omeprazol, aripiprazol |
Privado | 5% | 19,6% presente na RENAME, 11,1% essenciais pela lista da Organização Mundial da Saúde; 24,3% alto custo; 10,9% atenção básica, 3,5% estratégico. 56,7% fora de lista | 2011 |
Sant’Ana et al. 9 (n = 27) |
NA | Furosemida, digoxina, clonazepam, ácido acetilsalicílico, enalapril e bromazepam | 50% privado, 50% público | 0,9% | 45,2% RENAME; 13,9% excepcionais | 2011 |
Borges & Ugá 12 (n = 2.062) |
NA | NA | NA | NA | 52% presentes em listas do Ministério da Saúde | 2010 |
Chieffi & Barata 16 (n = 2.927) |
NA | Insulina glargina e lispro, adalimumabe, etanercepte, infliximabe | NA | NA | NA | 2010 |
Lopes et al. 17 (n = 1.220) |
Câncer # | Bevacizumabe, capecitabina, cetuximabe, erlotinibe, imatinibe, rituximabe, temozolomida | Privado | 2006: 14% 2007: 10% ## | NA | 2010 |
Pepe et al. 10 (n = 185) |
Doenças hipertensivas, diabetes mellitus, outras doenças degenerativas do sistema nervoso, doenças crônicas das vias aéreas inferiores e insuficiência renal | NA | NA | NA | 35,8% dos medicamentos estavam presentes na RENAME e 48,1% estavam presentes em alguma lista oficial | 2010 |
Pereira et al. 20 (n = 622) |
Artrite reumatoide, espondilite anquilosante, artrite psoriática, hepatite viral C, cardiopatia isquêmica, hipertensão arterial, câncer e diabetes | Infliximabe, leflunomida, etanercepte, adalimumabe propatilnitrato, clopidogrel, enalapril,carvedilol, sinvastatina, insulina glargina |
Privado | 1,4% | Medicamentos excepcionais/alto custo 26,4%, assistência farmacêutica básica 2,4%, saúde mental 1,5%, estratégicos 1,4%, fibrose cística 1% |
2010 |
Chieffi & Barata 14 (n = 2.927) |
NA | NA | Público | 3% | 23% fornecidos pelo SUS, 13% pertenciam ao Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional | 2009 |
Leite et al. 18 (n = 2.426) |
NA | NA | NA | NA | 32% dos medicamentos solicitados eram padronizados no SUS | 2009 |
Vieira & Zucchi 15 (n = 170) |
Diabetees mellitus, câncer, comorbidades relacionadas à hipertensão e diabetes | NA | Público | 2 sem registro | 62% fazem parte da REMUME – São Paulo, ou na lista do Programa de Medicamentos de Dispensação Excepcional (Alto Custo) | 2007 |
Messeder et al. 11 (n = 389) |
Até 1998: HIV. 2000: doença de Crohn, hepatite viral crônica C e doença renal 2001 e 2002: hipertensão essencial e doença isquêmica crônica do coração |
2000: toxina botulínica A, riluzol e olanzapina. 2001: acetatos de ciproterona e de goserelina. 2002: hidrocloreto de sevelamer e mesalazina | Público |
NA | 31,4 % excepcional, 18,2% estratégicos, 14,08% atenção básica, 19% saúde mental, 3,7% estadual, 30,8% sem financiamento definido |
2005 |
ANVISA: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; n: números de processos e ações analisadas; NA: não analisou; RENAME: Relação Nacional de Medicamentos Essenciais; REMUME: Relação Municipal de Medicamentos Essenciais;
* Estudo realizado apenas com pessoas portadoras de doença de Fabry;
** Mais frequentes;
*** Estudo realizado apenas com dossiês de ações judiciais demandando medicamentos para o tratamento da mucopolissacaridose;
# Estudo realizado em São Paulo com os sete medicamentos antineoplásicos de maior impacto financeiro para o SUS;
## Análise com base na indicação terapêutica aprovada nas agências: EMA (Agência Europeia de Medicamentos), FDA (Agência Americana de Alimentos e Medicamentos) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Em dois estudos os autores tentaram, mediante dados disponíveis, classificar os autores das ações com base em critérios socioeconômicos. Em um estudo, 53% dos autores das ações alegaram renda inferior a um salário mínimo 2 e em outro a situação socioeconômica foi avaliada pela localidade de moradia. Nesse caso, 63% dos impetrantes de ações, que tiveram o endereço localizado, residiam nas áreas com menor grau de exclusão social 18.
Em oito estudos, os autores analisaram a indicação terapêutica mais frequente. O diabetes mellitus e a hipertensão estavam entre as principais indicações terapêuticas (n = 5 e 4, respectivamente), seguido de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), hepatite viral crônica C, câncer (n = 3), artrite reumatóide e doença renal (n = 2). Onze artigos também analisaram os medicamentos mais frequentemente solicitados. Insulina glargina figurou entre os medicamentos mais solicitados (n = 5) e adalimumabe, etanercepte e infliximabe (n = 4).
Sete estudos avaliaram a presença de registro dos medicamentos na ANVISA e em nenhum dos estudos a porcentagem de medicamentos sem registro foi maior que 5%. Um estudo avaliou apenas dois medicamentos, um possuía registro na agência reguladora, à época do estudo, e outro não. Um estudo conduzido em São Paulo (2010) comparou a indicação presente na ação judicial com a do registro dos medicamentos. O uso para indicações não aprovadas foi de 14% em 2006 e 10% em 2007, foram consultadas as agências ANVISA, EMA (Agência Europeia de Medicamentos) e FDA (Agência Americana de Alimentos e Medicamentos). Dez estudos analisaram os medicamentos quanto à presença nas listas oficiais dos componentes da assistência farmacêutica, bem como da RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais).
A publicação de artigos que tratam de demandas judiciais para o acesso a medicamentos cresceu significativamente a partir de 2005, como visto nos dados apresentados nesta revisão. O Brasil apresenta quatro instituições que trabalham resguardando os direitos dos cidadãos e o cumprimento das leis: (1) a advocacia privada em que atuam os profissionais liberais e bacharéis em direito que defendem direitos contratados por pessoa ou iniciativa privada; (2) advocacia pública, representada pela Advocacia Geral da União e Procuradorias que são responsáveis pela defesa de todos os poderes do Estado; (3) o Ministério Público, que é a instituição que tem por dever a defesa da ordem jurídica, a fiscalização das leis e; (4) a Defensoria Pública, que é uma instituição bastante nova e tem por objetivo garantir o acesso à justiça a pessoas hipossuficientes 21.
As ações analisadas nos estudos foram frequentemente movidas de forma individual, fato que motiva o debate acerca da distribuição de recursos do SUS, que tem, entre os seus pilares, a universalidade como pressuposto ao acesso e o questionamento de que o gasto de recursos para atender uma demanda individual poderia gerar falta de recursos para o suprimento das necessidades coletivas 21. A discussão entre os envolvidos na judicialização da saúde não tem consenso, pois envolve análises de concepções distintas, que levam a tomada de decisão dos magistrados e que de maneira geral tem dado ganho de causa ao cidadão que solicita o acesso aos medicamentos por tal via.
Um dos recursos utilizado nas pesquisas para identificar se os autores das ações judiciais pertenciam a estratos sociais de maior renda foi analisar a representação jurídica, se pública ou privada, que em alguns casos poderia representar perda de equidade no sistema de saúde. Dez estudos realizaram análise sobre a representação jurídica 2,6,7,8,9,10,14,16,17,20 e três deles 7,14,16 representavam estudos que avaliaram mais de 2 mil processos, nos quais predominavam advogados particulares na defesa dos autores. Os estudos foram realizados nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, estados populosos da federação e dois são dos mesmos pesquisadores. Uma característica relevante do estudo conduzido em São Paulo é o fato de a maioria dos processos terem sido acionados por cidadãos em menor vulnerabilidade social e os medicamentos solicitados no estudo de Minas Gerais fazem parte dos medicamentos de custo mais elevado e mais recentes no mercado. O estudo faz uma associação entre as demandas e pequeno número de médicos e advogados envolvidos nos processos. Em que pesem o número elevado de processos analisados e as características das demandas, é difícil estabelecer uma relação entre a defesa pública/privada e o conflito com a equidade como uma prática corrente em todo o país.
Em alguns estados, como o Rio Grande do Sul e São Paulo, por exemplo, para acessar a Defensoria Pública é necessário ter renda máxima de até três salários mínimos 2, já em outros estados como no Rio de Janeiro e no Distrito Federal é necessário comprovação de hipossuficiência financeira por meio de documentos e declaração do requerente 10. Nesse caso, poder-se-ia inferir que as pessoas que buscam veicular sua demanda judicial por intermédio da Defensoria Pública são, a priori, as que possuem menores condições socioeconômicas. Contudo, o contrário não é possível afirmar, pois a advocacia privada não é um bom indicador de condição de classe. Muitas vezes os custos advocatícios podem estar sendo financiados por instituições interessadas na judicialização como laboratórios farmacêuticos e distribuidoras de medicamentos 22. Além disso, tais custos não poderiam ser administrados por pessoas com renda muito baixa, mas não seria um empecilho para a maioria da população. Outro fator relevante, e discutido entre os autores, é que em estados onde não há Defensoria Pública ou onde o número de defensores é insuficiente há a possibilidade de ser contratado um escritório particular e requerer judicialmente a assistência jurídica gratuita. Fato que ocorreu em pelo menos um estudo, onde todos os autores obtiveram assistência jurídica gratuita 6. Portanto, a tese não pode ser seguramente comprovada, além de ser temerário extrapolar a informação de que o acesso a medicamentos por meio de judicialização se dá por indivíduos com maior poder aquisitivo em todo o país.
Quatro estudos analisaram as alegações dos autores das ações, advogados ou defensores e juízes, para justificar a demanda judicial. Os pesquisadores constataram que o argumento dominante dos juízes foi o direito fundamental à saúde, que é garantido pelo artigo 196 da Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 8.080/1990. Segundo Stamford & Cavalcanti 5, a Constituição tem a capacidade de certificar a execução das políticas públicas instituídas com base nela. Quanto à alegação dos autores das ações e advogados/defensores, elas se baseiam na necessidade de urgência/emergência, risco de morte ou necessidade do medicamento atestado pelo médico, sem que haja, no geral, solicitação de informações adicionais por parte dos juízes.
As doenças mais frequentemente observadas nos estudos são as crônicas como o diabetes mellitus, hipertensão essencial, DPOC e hepatite viral crônica C, doença isquêmica do coração e câncer. Segundo dados da Federação Internacional de Diabetes, de 2012, o diabetes melittus atingiu cerca de 13,4 milhões de adultos, no Brasil, o que corresponde a 6,5% da população entre 20 e 79 anos 23. Outro fator que também deve ser levado em consideração em relação à prevalência de doenças crônicas, é a mudança no perfil epidemiológico da população relacionada ao envelhecimento e às condições socioeconômicas 14. Os dados sobre a indicação terapêutica dos medicamentos foram analisados por 9 dos 17 artigos revisados 2,6,7,10,11,15,17,18,20 e sobre isso é possível observar que na maioria dos casos os medicamentos indicados podem ser classificados como de médio ou alto custo e, quatro dos estudos foram desenhados para esclarecer pontos sobre doenças com perfil epidemiológico mais raro. Logo, não é possível inferir que a alta taxa de demandas judiciais seja, por exemplo, pela desorganização da atenção básica. Aliás, os dados apresentados nos estudos são pontuais e não conseguem responder a essa questão.
Em todo caso, os dados mais recentes coletados datam de 2011, e algumas alterações já ocorreram na gestão da assistência farmacêutica. Hoje, medicamentos que constavam dos pedidos judiciais já se encontram em protocolos de financiamento do Ministério da Saúde. Os medicamentos para o controle da artrite reumatoide (adalimumabe, etanercepte e infliximabe) 7 são um exemplo de incorporação à lista padronizada do SUS em 2012. Desde 2006 já faziam parte das alternativas terapêuticas constantes dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas da doença, que prevê o uso de agentes anticitocinas como tratamento alternativo em casos de refratariedade. Essa defasagem se dá porque a maioria dos dados publicados se refere a processos que tramitaram entre 2002 e 2006. Não foram encontrados dados mais recentes publicados e as políticas públicas avançaram, e pode-se creditar até mesmo às demandas criadas judicialmente.
Uma limitação desta revisão é a falta de homogeneidade entre os estudos, pois cada estudo observou um aspecto específico da judicialização, sendo isso um fator que dificulta a análise e a comparação entre os artigos. Também o método adotado nesta revisão, como a aplicação dos descritores e o critério de inclusão de artigos publicados em revistas indexadas, pode ter promovido a perda de pesquisas relevantes, conduzidas em diferentes estados da Federação. Outra limitação foi em relação à análise de qualidade dos artigos com as características dos estudos de judicialização, obrigando o uso do STROBE, não recomendado para tal fim, como balizador da análise.
Os artigos analisados apresentaram como principal limitação a validade externa; por outro, os estados envolvidos, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo são estados que têm uma população mais esclarecida e alto percentual de demanda judicial, e pode-se supor com mais facilidade para reconhecer e buscar os direitos. E como a maioria dos medicamentos envolvidos nas ações é de médio e alto custo, acredita-se que as demandas judiciais tenham contribuído para incorporações de produtos nas listas oficiais da política de assistência farmacêutica atual, mesmo que o volume de informações analisadas e os diferentes modelos de pesquisa não permitam uma análise conjunta dos dados. Algumas características das ações, como o fato de a maioria dos autores das ações serem portadores de doenças crônicas que buscam a Defensoria Pública ou advogados particulares para terem acesso aos medicamentos de médio e alto custo, não possibilita inferir sobre a gestão da atenção básica e quebra da equidade. Sugere-se a necessidade de novas análises e o acompanhamento do fenômeno na gestão do sistema de saúde, visto que medicamentos que até o ano de 2011 não constavam da lista padronizada do Ministério da Saúde foram incorporados ao setor público de saúde. Avaliar as terapias, elaborar protocolos e ter propostas especificas para o tratamento de doenças mais raras, pode inibir a necessidade de demandas judiciais e consequentemente diminuir o custo dessas aquisições.
Nos artigos analisados, 25% discutem que em algum momento houve pedido de antecipação de tutela ou outro tipo de liminar e, ainda, que na maioria dos casos os juízes não solicitaram maiores esclarecimentos para conceder esses pedidos, baseando-se apenas na prescrição médica e nos documentos apresentados no início do processo. Não há, por parte do judiciário, de acordo com os estudos incluídos nesta revisão, no que se refere à concessão de antecipação de tutela, uma análise mais detalhada da situação de saúde do paciente, comprovado por provas legais como exames complementares, laudos médicos ou da necessidade de urgência em fornecer o medicamento antes de conceder o pedido liminar.
Para todos os agravos mais frequentes, existem tratamentos de primeira escolha, descritos em protocolos clínicos nacionais e internacionais. A incorporação de novas tecnologias e práticas assistenciais deve se dar com base em estudos clínicos que comprovem a segurança e eficácia do novo medicamento, além de custo-benefício em relação aos tratamentos já existentes. Assim sendo, no momento em que as decisões para aquisição de determinado medicamento se dão sem uma análise prévia das alternativas terapêuticas já incorporadas aos componentes de financiamento do SUS, a política de saúde está sendo desconsiderada e pode haver prejuízo tanto ao usuário quanto ao sistema como um todo. Essa é uma possibilidade e outra é que realmente há falhas na organização da assistência farmacêutica, que pode levar ao desabastecimento das farmácias públicas.
Dos quatro medicamentos que apresentaram maior frequência de demanda nas pesquisas (insulina glargina, adalimumabe, etanercepte e infliximabe), o único que não está presente na RENAME de 2013 é a insulina glargina, apesar de estar padronizada em alguns estados como é o caso de Minas Gerais 10. A insulina glargina é uma insulina análoga de longa duração. Em 2010, foi publicado o Boletim Brasileiro sobre Avaliação em Tecnologias de Saúde, comparando as insulinas determir e glargina para o tratamento de diabetes mellitus tipo I, no qual, por meio de revisão da literatura de ensaios clínicos, os desfechos de eficácia e segurança da insulina glargina e detemir foram comparados à insulina NPH (Neutral Protamine Hagedorn).
As evidências clínicas apresentadas e vieses metodológicos identificados nos estudos não permitiram afirmar que há diferença entre as insulinas detemir, glargina e NPH, referente ao controle glicêmico, sendo a insulina glargina superior apenas no que se refere à prevenção de episódios de hipoglicemia noturna. Em estudo de custo-efetividade realizado pela agência canadense, os autores concluíram que a substituição da insulina NPH no tratamento da diabetes mellitus tipo I pelas insulinas detemir e glargina seria dispendioso para o sistema de saúde canadense 24.
Dez estudos trataram sobre a questão do financiamento dos medicamentos e a presença em listas gratuitas de distribuição, contudo não foi possível agrupar os resultados, pois os estudos utilizam classificações distintas entre si e daquelas estabelecidas pelo Ministério da Saúde. Pode-se verificar que em todos os estudos que fizeram esse tipo de análise, medicamentos com distribuição gratuita no setor público foram solicitados pela via judicial, com destaque para os medicamentos do componente especializado. A presença de tais medicamentos pode ser justificada, visto que o seu fornecimento está atrelado aos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas e muitos pacientes podem estar fazendo uso para outras indicações terapêuticas, não contempladas. A presença dos medicamentos na RENAME, quando avaliada, variou de 19,6% a 52% nas pesquisas analisadas.
Por fim, os pesquisadores constataram não haver dados suficientes para traçar um perfil socioeconômico dos demandantes. Os processos, geralmente, não continham dados sobre naturalidade, escolaridade, profissão, emprego e renda. Bem como, em alguns casos, o nome do medicamento pleiteado e condição patológica do autor da ação. Sendo assim, muitos pesquisadores consideraram a falta desses dados nas ações judiciais uma limitação de seus estudos.