versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.3 Rio de Janeiro mar. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018243.28912016
The scope of this article is to conduct a critical identification and analysis, based on the analytical framework of the concept of vulnerability of truck drivers to HIV. The criteria for inclusion were to address the issue of truck drivers’ susceptibility to HIV/AIDS and to adopt the qualitative approach. A total of 445 abstracts were located, of which 17 articles were included in the analysis and categorized as “sociocultural studies”, “evaluative studies” and “risk behavior studies.” The analysis was based on reflections surrounding the concept of vulnerability in health. The study criticizes the predominance of qualitative studies of a behaviorist nature, with an emphasis on the identification of risk behaviors, concepts and representations about HIV/AIDS. Furthermore, it points to studies of a sociocultural and evaluative nature that transcend the barrier of individual behaviors, expanding the scope of analysis, analysis of structural phenomena and interactions of subjects faced with the epidemic, duly approaching the concept of vulnerability. The review reveals the need for studies that take into account the concept of vulnerability, contextualizing the behaviors to the socio-structural dimensions involved in the AIDS epidemic.
Key words: Truck drivers; Health vulnerability; Acquired Immunodeficiency Syndrome; HIV
Em todo o planeta, estima-se cerca 36,7 milhões de pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA)1, sendo que no Brasil, em 2014, a estimativa foi de 781 mil PVHA, o que corresponde a uma prevalência de 0,39% na população em geral. Entretanto, estima-se que ainda 17% deste total de PVHA ainda não sabem do seu status sorológico2. Para avançar na melhoria deste quadro epidemiológico, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) articulou três metas para 2020: 90% de todas as PVHA tendo conhecimento de seu estado sorológico; 90% de todas as PVHA recebendo terapia antirretroviral (TARV); e, por fim, 90% de todas as PVHA e recebendo a TARV, tendo supressão viral3.
Estas metas são ambiciosas e terão pela frente desafios complexos, como o acesso à prevenção e ao tratamento do HIV, o enfrentamento do estigma e da criminalização de pessoas LGBT e a maior atenção aos grupos sociais em contextos de maior vulnerabilidade4 (denominados, atualmente, de populações-chave para epidemia). Além disso, um desafio teórico se redesenha através da atual e necessária reflexão sobre os contextos de vulnerabilidade em que as pessoas estão inseridas e a ideia de comunidade (noções que foram muito importantes para as respostas iniciais bem sucedidas à epidemia)5-7.
Apesar de todos serem considerados vulneráveis ao HIV/aids, alguns grupos sociais merecem uma atenção específica das ações de saúde, pois vários estudos têm mostrado que o processo de disseminação da epidemia, seu impacto e seus determinantes são desiguais entre as populações. O reconhecimento destas especificidades, a partir de uma perspectiva do conceito de vulnerabilidade, não objetiva conformação de “grupos de risco”, mas sim a compreensão de fenômenos sociais para o planejamento e a implementação de políticas de saúde voltadas para o fortalecimento dos direitos8.
Nesse sentido, a população de caminhoneiros tem sido apontada em diferentes regiões do mundo como uma população com maior risco de adquirir o HIV, devido a algumas características laborais peculiares, como a mobilidade por rotas de longa distância e não permanência em suas cidades de origem3, principalmente em regiões do continente africano9-12 e asiático13-16.
Estudos brasileiros também têm se atentado para esta dinâmica peculiar, e apontam para fatores e questões relacionadas à vulnerabilidade de caminhoneiros ao HIV/aids17-22. Comumente, os caminhoneiros são descritos na literatura como indivíduos que se relacionam com parceiras eventuais durante as viagens de longa distância9,15,17,18,22. Estudos também têm apontado para existência de fatores, significados e concepções que apoiam a não utilização do preservativo nas relações sexuais desses sujeitos com suas parceiras12,15,16,22. De acordo com Leal18, muitos dos estudos com esta população foram orientados pela metodologia de aferição de Conhecimentos, Atitudes e Práticas (chamados de CAP, ou KAP em Inglês), que possuem um enquadramento teórico-analítico orientado para o risco.
Numa outra perspectiva, mais estrutural, estudos realizados no Brasil têm relatado que os caminhoneiros vivenciam uma dinâmica de trabalho intenso nas rotas de longa distância23-25. Estas rotas podem ser espaços que submetem esses sujeitos a uma diversidade de situações e relações que podem incidir no processo de vulnerabilidade ao HIV, pois os fazem vivenciar condições precárias relacionadas ao trabalho desenvolvido (ambiente precário, pressões de transportadoras etc.), sem o suporte social próximo (família, amigos etc.) e sob a pena de estarem muitos dias de suas vidas como migrantes entre várias cidades e visitantes no espaço familiar.
Nesse sentido, o presente artigo pretende identificar e analisar criticamente os estudos qualitativos publicados sobre a vulnerabilidade de caminhoneiros ao HIV, com base no quadro analítico do conceito de vulnerabilidade.
Trata-se de um estudo de revisão integrativa da literatura26. Seis etapas27 foram utilizadas para a construção desta revisão, a saber: identificação da questão norteadora da pesquisa, estabelecimento de critérios de inclusão/exclusão de artigos, definição de informações a serem extraídas dos artigos selecionados, análise dos dados, interpretação dos resultados e apresentação da revisão. Também foi utilizado o guideline PRISMA para sistematizar o processo de pesquisa da presente revisão28.
O estudo apresentou a seguinte questão norteadora: quais as evidências disponíveis nos estudos qualitativos sobre a vulnerabilidade de caminhoneiros ao HIV/aids para o quadro analítico do conceito de vulnerabilidade? A coleta dos dados foi realizada no mês de setembro de 2016 na base de dados do PubMed, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS – composta por diversas bases de dados, como por exemplo, LILACS e MEDLINE, para mais informações: http://bvsalud.org/sobre-o-portal/), Web of Science e Scopus. A busca foi feita através da utilização das seguintes palavras-chave: truck, drivers, hiv, aids.
Os critérios de inclusão no estudo foram os seguintes: abordar a temática da vulnerabilidade dos caminhoneiros ao HIV/aids e empregar na seção de metodologia a abordagem qualitativa para produção de dados (entrevista em profundidade, entrevista semi-estruturada, grupo focal, entrevista narrativa, observação participante). Já os critérios de exclusão foram: não ter tido acesso ao artigo completo e estar escrito em outra língua diferente do inglês, português e espanhol.
Para coleta de dados foi utilizada uma planilha do Microsoft Excel® contendo os seguintes termos: palavra-chave utilizada na busca, base de dados, número total de artigos encontrados, nome do periódico, título do artigo, autores, ano de publicação, país de publicação e resumo. Inicialmente, realizou-se a leitura de todos os resumos que foram selecionados na busca através das palavras-chave. A exclusão dos artigos da análise foi realizada durante a leitura dos resumos de acordo com a aplicação dos critérios supracitados. Os estudos com métodos mistos (quantitativo e qualitativo) também foram incluídos.
Na base de dados PubMed foi identificado um total de 145 resumos e, a partir da leitura destes e da aplicação dos critérios de inclusão, foram excluídos 131; após a leitura dos 14 artigos que foram selecionados, um deles foi excluído da análise porque não tinha os caminhoneiros como sujeitos do estudo; no final, incluiu-se 13 artigos elegíveis desta base de dados para análise. Na BVS foram identificados 56 resumos, 50 foram excluídos depois da leitura dos resumos, 5 foram excluídos por estarem repetidos na base PubMed e apenas um foi selecionado.
Na base de dados Web of Science foram identificados 134 resumos, sendo que 120 foram excluídos após leitura dos resumos, enquanto 10 foram excluídos por estarem repetidos na PubMed. Durante a leitura dos artigos, um deles foi excluído porque, apesar de ter sido identificado no resumo como uma etnografia, o estudo apresentou somente dados de um survey; no final, foram elegíveis três artigos nesta base. Na base Scopus não foram encontrados artigos elegíveis, pois todos os resumos que poderiam ser incluídos estavam repetidos em outras bases de dados. Finalmente, foram incluídos 17 artigos na análise (Figura 1).
Figura 1 Fluxograma inspirado no guidelines PRISMA para o processo sistemático de seleção dos artigos para análise.
Realizou-se a leitura dos artigos na íntegra e a análise de conteúdo foi utilizada para a categorização. Posteriormente, procedeu-se a categorização em três grupos temáticos: “estudos socioculturais”29-31, “estudos avaliativos”32-36 e “estudos de comportamentos de risco”19,37-44. Os artigos que foram classificados como “estudos de comportamento de risco” foram marcados pela ênfase nos seguintes temas: quantidade de parceiras sexuais, utilização dos serviços de profissionais do sexo, consumo de álcool e outras drogas, utilização e percepções acerca do preservativo, percepções de risco, práticas sexuais de risco, conhecimentos e representações sociais sobre o HIV/aids.
Os “estudos avaliativos” foram classificados desta maneira por darem ênfase à avaliação de determinadas tecnologias preventivas, como por exemplo, a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), a circuncisão e materiais de campanha. Já os estudos socioculturais foram abordagens baseadas em narrativas dos sujeitos e na descrição densa de elementos culturais de contextos locais, que tinham como objetivo a compreensão de relações intersubjetivas e fenômenos estruturais do processo de vulnerabilidade, sem se limitar estritamente à noção de comportamentos de risco.
A análise crítica da produção dos dados foi realizada através do conceito de vulnerabilidade trabalhado pelos autores Mann45 e Ayres et al.7.
Os artigos analisados foram organizados no Quadro 1, que contempla as seguintes informações: objetivos, autores, periódico/base de dados, ano de publicação, técnicas de produção de dados qualitativos e principais resultados. Estes artigos foram publicados em periódicos diferentes, com destaque para duas publicações na Aids Care19,29. Ao analisar a classificação dos periódicos no portal de revistas da BVS (http://portal.revistas.bvs.br/index.php?lang=pt), verificou-se que todas elas foram classificadas primeiramente na área temática das ciências da saúde, exceto a Social Science and Medicine37, que esteve alocada na área das ciências humanas.
Quadro 1 Estudos qualitativos sobre vulnerabilidade de caminhoneiros ao HIV/AIDS.
Objetivo | Autores | Periódico/Base de dados | Ano | País | Técnica de produção de dados | Principais resultados |
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Relatar a experiência de cientistas sociais com a utilização da ferramenta “Procedimentos de Avaliação Rápida” (Rapid Assessment Procedures – RAP) para pesquisas rápidas na área de prevenção ao HIV/AIDS. | Nyamwaya32 | AIDS soc./ PubMed | 1993 | Quênia | Diversos, através da RAP | A ferramenta RAP, uma forma condensada de procedimentos antropológicos, foi efetiva para abordar a prevenção de DST e AIDS entre caminhoneiros de longa distância em estradas de Mombasa, Nairobi e Uganda. |
Avaliar diversos materiais de campanha de prevenção ao HIV/AIDS de 10 organizações de saúde pública no Quênia de acordo com o Extended Parallel Process Model (EPPM). | Witte et al. 35 | Journal of Health Communication/ PubMed | 1998 | Quênia | Grupo focal | Os participantes do estudo relataram o desejo de ter informações mais detalhadas sobre a maneira correta de usar preservativos, ideias de como negociar o uso do preservativo com parceiros relutantes e informações mais precisas sobre sintomas da AIDS e sobre o que fazer quando se contrai o vírus. |
Avaliar o impacto de um programa de educação entre pares para prevenção de HIV/AIDS entre profissionais do sexo e seus potenciais clientes (caminhoneiros de longa distância) em Malawi. | Walden, Mwangulube & Makhumula-Nkhoma33 | Health Education Research/ PubMed | 1999 | Malawi | Grupo focal | A educação por pares entre caminhoneiros de longa distância foi geralmente considerada inativa. Os dados qualitativos mostraram que os caminhoneiros achavam importante a educação por pares, mas que esta fosse desenvolvida por um profissional de fora da empresa. Motivos para a não uso do preservativo foram relatados: aparência saudável, acusação de adultério (uso com as esposas), questões morais (com mulher casada). |
Descrever os riscos de infecção pelo HIV entre caminhoneiros de longa distância e os contextos e fatores que influenciam comportamentos de risco e proteção. | Stratford et al.42 | Social Science and Medicine | 2000 | EUA | Entrevistas semi-estruturada | Os caminhoneiros foram categorizados em três categorias principais de acordo com comportamentos relatados como arriscados para infecção pelo HIV: os highway cowboys, os old hands e os old married men e Christian truckers. Os autores descrevem o perfil das parceiras sexuais destes caminhoneiros, bem como os conhecimentos e atitudes destes sobre a infecção pelo HIV. É dado pouco espaço para as questões estruturais que envolvem a profissão do caminhoneiro de rota longa nos EUA. |
Analisar a cultura sexual dos caminhoneiros, mediadores e profissionais do sexo em uma parada de caminhões na rodovia Trans-África localizada no sudoeste de Uganda. | Gysels; Pool; Bwanika29 | Aids Care/ PubMed | 2001 | Uganda | Entrevista em profundidade e observação participante | A maioria dos caminhoneiros investigados fazia uso do serviço de intermediários na negociação de serviço sexual, que funcionavam tanto como intérpretes da língua local, quanto como uma garantia de relacionamento sexual com facilidade e proteção dos roubos e das doenças. Esta proteção era vista como crença de que os intermediários poderiam conhecer as mulheres “seguras”, o que garantiria, portanto, a “segurança sexual” dos caminhoneiros. |
Analisar o risco de infecção por doenças sexualmente transmissíveis entre caminhoneiros e seus ajudantes no Paquistão. | Agha44 | Culture, Health and Sexuality/ Web of Science | 2002 | Paquistão | Entrevistas em profundidade | Muitos caminhoneiros não acreditavam que a AIDS existia no Paquistão e nem que o preservativo é uma tecnologia efetiva para prevenção da transmissão do HIV. A autopercepção de risco foi baixa e esteve relacionada à boa moral. |
Investigar se e por que houve mudanças de comportamentos e práticas sexuais, em consequência da epidemia de HIV/AIDS, de cinco grupos de risco em Uganda. | Ntozi et al.38 | African Health Sciences/ PubMed | 2003 | Uganda | Grupo focal | O estudo relata que a epidemia de AIDS não trouxe mudanças significativas de comportamentos sexuais arriscados entre os membros dos grupos investigados. Entre os caminhoneiros foi relatada a necessidade da companhia de mulheres para reduzir o estresse ao longo das longas jornadas em estradas da África. Apesar disso, muitos relataram perceber o risco e usar o preservativo. |
Examinar os comportamentos que poderiam influenciar a transmissão de DST e HIV/AIDS no setor de transporte rodoviário de Bangladesh. | Gibney, Saquib & Metzger37 | Social Science and Medicine/ PubMed | 2003 | Bangladesh | Entrevista em profundidade e grupo focal | Os caminhoneiros se engajam em práticas de risco: número grande de parceiras, sexo desprotegido, uso de álcool e outras drogas. A prática de sexo anal foi apontada como aversiva pelos caminhoneiros. Os motivos para o sexo comercial foram: a pressão dos pares, a ausência das esposas, o desejo de diversão, a vontade de se envolver em práticas que não poderiam ser realizadas com suas esposas e as técnicas das profissionais do sexo. |
Avaliar o contexto de comportamento de riscos entre caminhoneiros e profissionais do sexo em Itajaí, na região sul do Brasil. | Malta et al.19 | AIDS Care/ PubMed | 2006 | Brasil | Entrevista em profundidade, grupo focal e observação de campo | Os caminhoneiros geralmente se engajam em comportamentos de risco, tais como o sexo desprotegido com múltiplas parceiras (incluindo profissionais do sexo e empregadas dos pontos de parada do caminhão) e o uso de álcool e anfetaminas (talvez influenciando práticas desprotegidas). |
Examinar o contato sexual de caminhoneiros com profissionais do sexo, estimando a frequência do uso de preservativos e verificando o conhecimento destes indivíduos sobre HIV/aids | Bacak & Soh43 | Coll. Antropol./ PubMed | 2006 | Croácia | Entrevista semi-estruturada | A maioria dos caminhoneiros assumiu que possui contato com profissionais do sexo enquanto fazem suas viagens, principalmente por conta dos longos períodos na estrada. Eles reportaram o uso do preservativo durante os contatos sexuais com profissionais do sexo por conta do medo de adquirir uma infecção sexualmente transmissível e de gravidez. |
Analisar dados de uma pesquisa formativa sobre o comportamento sexual de indivíduos de grupos que podem ter tido experiência com fatores de risco (caminhoneiros, profissionais do sexo, usuários de drogas, etc.) e que estão vivendo com HIV. | Sri-Krishnan et al.41 | AIDS Educ Prev./ PubMed | 2007 | Índia | Entrevista em profundidade | As pessoas vivendo com HIV apresentaram modificação de comportamentos de risco depois do diagnóstico da infecção, principalmente para promover proteção aos seus parceiros sexuais e para não serem infectadas com outros subtipos virais. O estigma relacionado ao HIV demonstrou ser uma barreira para negociação do preservativo. Além disso, muitos caminhoneiros citaram a dificuldade de lembrar-se do preservativo quando estão usando substâncias psicoativas. |
Examinar o compromisso inicial com a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e circuncisão, entre caminhoneiros na Índia, através do Modelo de Redução do Risco de AIDS (AIDS Risk Reduction Model). | Schneider et al.36 | PLoS One. / PubMed | 2010 | Índia | Entrevista em profundidade | Os caminhoneiros apresentaram baixo nível de compromisso inicial para a PrEP e a circuncisão. O custo foi uma barreira importante para ambas as intervenções de prevenção do HIV. Também foram identificadas normas sociais e religiosas que poderiam influenciar as decisões sexuais e as percepções acerca da circuncisão. |
Avaliar a relevância, utilização dos serviços, eficiência e sustentabilidade de uma clínica noturna na província de Tete, Moçambique. | Lafort et al.34 | BMC Health Services Research/ PubMed | 2010 | Moçambique Zimbabwe e Malawi | Entrevista em profundidade e grupo focal | Os caminhoneiros se sentiram satisfeitos com a clínica noturna, principalmente por conta do atendimento gratuito e do trabalho da equipe. Os participantes solicitam uma ampliação do horário de funcionamento da clínica. |
Analisar representações sociais de caminhoneiros de rota curta sobre a AIDS, transmissão do HIV e prevenção. | Sousa, Silva & Palmeira39 | Psicol. Soc. / BVS | 2014 | Brasil | Entrevista em profundidade | As representações sociais sobre AIDS estavam ancoradas nos constructos: “doença ruim”, “doença perigosa”, “doença incurável” e “doença que mata”. A transmissão do HIV relacionou-se ao sexo desprotegido com profissionais do sexo, gays e contato com sangue contaminado; a prevenção da AIDS foi representada pelo uso da camisinha nas relações extraconjugais e pela fidelidade da esposa. |
Explorar como as experiências de saúde dos caminhoneiros se relacionam com o risco de infecção pelo HIV/AIDS na Índia, utilizando a abordagem centrada na cultura para a comunicação em saúde (Culture-Centered Approach to Health Communication). | Sastry30 | Health Commun. / PubMed | 2015 | Índia | Entrevistas narrativas | As narrativas dos caminhoneiros trazem o relato de experiências de violência, hostilidade e medo de morrer nas estradas. A profissão é relatada como insegura. Os comportamentos de risco são vistos como resultante da configuração do trabalho. O risco de infecção pelo HIV é situado dentro da pobreza estrutural e da destruição de ocupações tradicionais. A sexualidade é demarcada em dois caminhos: a “casa”, segura, sexo monogâmico; e a “estrada”, sexo com profissionais do sexo. |
Explorar as ideias de caminhoneiros e aldeões de zona rual da Tanzânia sobre sexo anal heterossexual e sua associação com riscos à saúde. | Mtenga et al.40 | Sex Transm Infect. / PubMed | 2015 | Tanzânia | Entrevista em profundidade e grupo focal | As razões para o sexo anal foram: prazer sexual, crença de que o sexo anal é mais seguro que o sexo vaginal, uma prática alternativa, exploração e prova de masculinidade. Existem crenças relacionadas à ideia de que não é possível a transmissão de doenças através do sexo anal e, portanto, o uso do preservativo não precisa ser adotado. |
Analisar como fatores sociais, culturais e estruturais e a agência individual influenciam o uso de preservativos entre caminhoneiros de longa distância na Índia. | Sastry31 | Culture, Health and Sexuality/ Web of Science | 2016 | Índia | Entrevistas individuais, entrevistas em grupo e observação sistemática | O preservativo foi entendido como uma tecnologia efetiva para prevenção de doenças (longe de casa, nas estradas, com profissionais do sexo) e para contracepção (na “casa”, com as esposas). O uso do preservativo esteve relacionado à diminuição do prazer sexual e visto por alguns como uma escolha individual necessária para evitar prejuízos (como doenças). As questões estruturais foram a disponibilidade, o custo do preservativo e o prazer sexual como maneira de desviar a atenção das más condições de trabalho ao longo das estradas. |
Os países em que foram realizadas estas pesquisas são caracterizados pela intensa desigualdade social e pobreza. No presente estudo, o continente africano, mais especificamente a África subsaariana, teve o maior número de pesquisas realizadas, seguido da Ásia e América Latina (2 estudos realizados no Brasil).
Ressalta-se que apesar destes países possuírem baixos valores do Índice de Desenvolvimento Humano (menor que 0,57, exceto o Brasil com 0,75 e a Índia com 0.60), o contexto da pobreza e desigualdade social não foi destacado na maior parcela dos estudos. Dados oriundos da United Nations Development Programme, 2014 (http://hdr.undp.org/en/composite/HDI)
Embora diversos estudos internacionais indiquem que fatores estruturais podem facilitar a transmissão do HIV e sua concentração em áreas geográficas e populações específicas46, apenas alguns estudos refletiram sobre a pobreza existente nos cenários investigados. Estes artigos trouxeram para tela a discussão das condições precárias de vida de profissionais do sexo como fatores que poderiam influenciar o sexo comercial com caminhoneiros29,38.
No que tange às abordagens metodológicas, percebe-se que a utilização de dados quantitativos e qualitativos foi marcante em quatro artigos. A integração de diferentes métodos fomenta o enriquecimento dos dados dos estudos ao promover a integração interdisciplinar entre diversas abordagens metodológicas47.
Os estudos de comportamentos de risco foram marcados pela ênfase em conhecimentos e representações sobre HIV/aids e em comportamentos, atitudes e práticas arriscadas. Vale a pena relembrar que as iniciais compreensões a respeito da epidemia de aids foram marcadas principalmente pelo enfoque biomédico, epidemiológico e comportamentalista. Mann45, em seu clássico livro Aids in The World, propõem três períodos históricos ligados às respostas dadas frente ao desafio da doença. O primeiro deles foi o período da descoberta do vírus HIV (1981-1984), que foi caracterizado principalmente pelos estudos epidemiológicos sobre a doença. Estes estudos ofereceram a descrição de informações a respeito das vias de transmissão do vírus e identificaram os comportamentos de risco associados com a infecção. Neste período, as ações em saúde pública foram direcionadas para a divulgação de informações a respeito de “grupos de risco” e “comportamentos de risco” associados à doença com o objetivo de estimular mudanças de comportamentos individuais.
A produção de estudos epidemiológicos, com base no conceito de risco, no início da epidemia de aids foi intensa, o que promoveu a identificação de subgrupos populacionais que possuíam uma maior probabilidade de se encontrar pessoas com a doença, em comparação com a população geral7.
A propagação do termo “grupo de risco” foi realizada pela mídia de massa e ganhou conotações prejudiciais para a prevenção. Ao invés de promover a prevenção, houve a promoção de preconceitos e discriminação, tornando complicada a situação social e clínica das pessoas infectadas pelo vírus7 e reforçando conotações estigmatizadoras de grupos sociais marginalizados, com destaque para os homossexuais48.
O segundo período histórico (1985-1988), denominado de período das primeiras respostas ao HIV/aids, foi balizado pela consideração de que a prevenção e o cuidado eram processos distintos e programaticamente separados. Dessa maneira, o alvo principal da atenção neste período foi a diminuição dos comportamentos de risco individuais. Para alcançá-lo foram criados diversos programas nacionais e internacionais (como o World Health Organizaton’s Global Program on AIDS - WHO/GPA), que tinham como meta três elementos básicos para a redução de riscos: informação e educação, serviços sociais e de saúde e não discriminação das PVHA45.
Dessa maneira, o conceito de grupos de risco foi dando lugar ao conceito de comportamentos de risco, que ampliou o leque de possibilidades de entendimento da dinâmica da epidemia, incluindo também outros grupos sociais ao focar os comportamentos individuais7. Os principais avanços deste novo conceito foi ampliar o espectro de estratégias de prevenção para todos os indivíduos e a tentativa de mitigar o estigma entre os grupos com maior incidência da doença. Por outro lado, ao responsabilizar unicamente os indivíduos pela mudança de seus comportamentos, este conceito propiciou a “culpabilização” de pessoas infectadas7.
Em nossa revisão, apesar dos estudos analisados na categoria “estudos de comportamentos de risco” terem sido publicados nos anos 2000, observa-se que o arcabouço teórico-metodológico se ancorou na matriz teórica comportamentalista, classificada por Man e Tarantola como típica dos dois primeiros períodos da epidemia (de 1981 a 1988).
Por exemplo, o estudo realizado em Bangladesh teve como objetivo examinar os comportamentos que poderiam influenciar a transmissão de DST e HIV/aids no setor de transporte rodoviário de Bangladesh37; um dos estudos brasileiros visou avaliar o contexto de comportamentos de risco entre caminhoneiros e profissionais do sexo em Itajaí19, enquanto o outro analisou as representações sociais de caminhoneiros de rota curta sobre a AIDS e sobre a prevenção e transmissão do HIV39.
Um estudo realizado na Tanzânia buscou explorar as ideias de caminhoneiros sobre o sexo anal heterossexual e sua associação com o risco de infecção pelo HIV40; um estudo em Uganda se propôs a investigar se houve mudanças nos comportamentos e nas práticas sexuais entre os grupos de risco depois da epidemia de aids38; um estudo no Paquistão buscou analisar o risco de infecção por doenças sexualmente transmissíveis entre caminhoneiros44; um estudo na Croácia analisou o contato sexual de caminhoneiros com profissionais do sexo com foco em comportamentos de risco e conhecimento sobre HIV/aids43.
Em 2007 foi publicada uma pesquisa formativa realizada na Índia sobre os comportamentos sexuais de pessoas (provenientes de grupos com comportamentos de risco, dentre eles, caminhoneiros) vivendo com HIV. Este estudo demonstrou a mudança de comportamentos dos indivíduos após o diagnóstico de infecção pelo HIV, mostrou diferenças importantes na negociação do preservativo de acordo com o gênero e as práticas sexuais e revelou que os caminhoneiros tinham dificuldade de usar o preservativo quando estavam sob o efeito de substâncias psicoativas41.
Semelhantemente, alguns estudos classificados aqui como “avaliativos” também demonstraram matriz teórico-conceitual comportamentalista. Walden et al.33, por exemplo, investigaram o impacto de um programa educativo de pares com caminhoneiros e profissionais do sexo em Malawi, através da mensuração quantitativa da autopercepção de risco, do conhecimento da aids e dos comportamentos de risco (uso de preservativo e sexo casual nas últimas 3 semanas) entre grupos de intervenção e controle. Neste estudo, os dados qualitativos foram utilizados para aprofundamento das razões do uso inconsistente de preservativo e para avaliar a aceitação de educação por pares.
O estudo de Nyamwaya32 destacou principalmente a ferramenta intitulada “Procedimentos de Avaliação Rápida” (Rapid Assessment Procedures - RAP), que tinha o objetivo de simplificar a pesquisa antropológica através do uso de técnicas básicas desta disciplina, tais como entrevistas, observação participante e grupos focais, para pesquisas rápidas na área de prevenção da transmissão de HIV. Para descrever a efetividade desta ferramenta, o autor focou especialmente na produção de dados sobre aspectos comportamentais arriscados de caminhoneiros africanos.
A maior parcela destes estudos comportamentalistas veem os caminhoneiros como um dado “grupo de risco” ou como uma determinada população que possui “comportamentos sexuais arriscados”, naturalizando a vulnerabilidade como uma condição intrínseca do sujeito e não como um contexto complexo.
O estudo conduzido por Stratford et al.42 faz um esforço de contextualizar o contexto socioestrutural em os caminhoneiros de rota longa nos Estados Unidos estão inseridos, porém decidimos classificá-lo como um estudo de “comportamentos de risco”, pois os autores dedicam grande parte da apresentação dos resultados e da discussão às questões relacionadas aos comportamentos de risco dos sujeitos da pesquisa para infecção pelo HIV. Neste estudo, os caminhoneiros são categorizados em três categorias principais: os highway cowboys, aqueles mais jovens, com relato de uso de substâncias psicoativas e com práticas sexuais arriscadas, como o não uso do preservativo; os old hands eram mais velhos que os primeiros, geralmente casados ou divorciados, e com relato comportamentos sexuais de risco “moderados” quando comparados os primeiros, motivados principalmente pela relação com a família e com o declínio físico. Por fim, os old married men e Christian truckers relatavam um relacionamento mais estável com suas mulheres e avessos aos comportamentos de risco, motivados principalmente por crenças morais e religiosas.
A fundamentação conceitual em noções de “grupo de risco” e “comportamento de risco”, que promoveu estigmatização do PVHA e restringiu as ações de prevenção, parece não ter mudado muito o tom de muitas das pesquisas publicadas. Na história da aids, pode-se observar que os movimentos sociais organizados, como os movimentos pelo direito das mulheres e homossexuais, questionaram tais categorias comportamentalistas e individualistas. Esta crítica fundamentou-se na ideia de que o uso do preservativo não se resumiria a simples decisão individual, a partir de informações e da própria vontade das pessoas, mas estaria intrinsecamente relacionado a aspectos de ordem social e interpessoal7.
O terceiro período da epidemia de aids, proposto por Man45, iniciou-se em 1989 e se estenderia até a data da publicação do texto pelos autores, e é descrita pelos autores como sendo marcada pelo conceito de vulnerabilidade. A emergência do conceito de vulnerabilidade na década de 1990 foi visto como tentativa de apreensão da predisposição à infecção através de uma perspectiva completamente diferente daquelas orientadas pelo conceito de risco48.
Este conceito aplicado ao campo da saúde foi resultado de um processo de interseções entre o ativismo político frente à epidemia e o movimento dos Direitos Humanos7. A vulnerabilidade coloca em cena o entendimento das conexões existentes entre o suporte para as PVHA e os esforços para diminuição da propagação da epidemia, levando em consideração as questões sociais, culturais, políticas e econômicas. Assim, a partir do marco teórico-conceitual da vulnerabilidade, dever-se-ia ocorrer o deslocamento do foco das pesquisas de questões exclusivamente individuais, tais como comportamentos, atitudes e práticas, para a atenção aos aspectos sociais, tais como o estigma, o acesso aos serviços de saúde, a pobreza etc.45.
Mann45 propõem três categorias explicativas interdependentes para a vulnerabilidade: a individual, a programática e a social. Ayres et al.49 em meados dos anos 2000 fazem uma síntese conceitual ao abordar o objetivo da vulnerabilidade individual como a identificacão dos fatores físicos, mentais ou comportamentais por meio de avaliações de risco e de outras abordagens; a vulnerabilidade social como a análise das dimensões da cultura, religião, moral, política, economia e fatores institucionais pelos quais podem determinar os meios de exposição ao vírus; e a vulnerabilidade programática como a análise das políticas, dos programas e dos serviços que interferem no cotidiano social e individual das pessoas.
Em revisão conceitual mais atual, Ayres et al.7 ressaltam a necessidade de levar-se em consideração a sinergia entre estas três dimensões da vulnerabilidade com o objetivo de tornar os conceitos de prevenção e promoção da saúde “mais realistas, pragmáticos e eticamente orientados”. Além disso, seria imprescindível ressaltar que a dimensão individual não se limitaria a vontade cognitiva e individual de tomada de decisões, mas que esta dimensão parte do pressuposto de que o indivíduo - ou porque não o sujeito? - é um ser “em relação”. Assim, “o indivíduo é compreendido como intersubjetividade e como ativo coconstrutor, e não apenas resultado (efeito) das relações sociais, que devem, então, ser remodeladas para garantir o ‘comportamento saudável’”7.
A perspectiva do conceito de vulnerabilidade trabalhada pelos autores brasileiros desloca a valorização inicial da dimensão individual, proposta pelo grupo de Mann e colaboradores, para uma reconfiguração conceitual das categorias de vulnerabilidade individual e programática, que é inspirada principalmente pela matriz teórica dos Direitos Humanos e por conceitos como o de intersubjetividades. Vale a pena ressaltar que a perspectiva brasileira trouxe muitos ganhos e ampliou o escopo de análise com a incorporação de novos conceitos à reflexão em torno da vulnerabilidade. Entretanto, apesar do deslocamento apresentado, temos a hipótese de que a produção de dados empíricos nesse campo ainda confunde muito o conceito de vulnerabilidade com o conceito de risco ou reduzem a intensa dinâmica social em cisões entre a vulnerabilidade individual e coletiva.
No campo da vulnerabilidade de caminhoneiros ao HIV/aids, os estudos de cunho sociocultural29,30 e alguns dos estudos avaliativos35,36 destacaram-se por contribuições significativas à análise da vulnerabilidade, pois não se restringiram à dimensão individual, mas ampliaram o leque analítico para questões da vulnerabilidade social e programática. Estes estudos situaram a problemática para além do comportamentalismo, aproximando-se, portanto, da análise de dimensões do conceito de vulnerabilidade.
Por exemplo, o estudo realizado por Sastry30, ao analisar narrativas de caminhoneiros em rodovias indianas, mostrou que estes sujeitos vivenciam um contexto de vulnerabilidade social intenso, marcado pela marginalização, informalidade laboral, violência e condições precárias de trabalho. O autor argumenta que apesar de muitos artigos terem sido publicados ressaltando a importância dos fatores estruturais para o risco de infecção pelo HIV, as pesquisas sobre os caminhoneiros, realizadas neste país, ignoram os efeitos do contexto cultural, social e econômico no processo do risco. Através da análise das narrativas dos sujeitos, o autor argumenta que o risco de infecção pelo HIV está situado dentro da opressão estrutural, que é operada pela pobreza e destruição das ocupações laborais tradicionais. Em outro artigo31, com base na mesma pesquisa etnográfica, o autor aborda as questões sociais, culturais e estruturais que podem influenciar o uso do preservativo, como por exemplo, a disponibilidade e o custo do preservativo e o prazer sexual como maneira de desviar a atenção das más condições de trabalho.
Em Uganda, a pesquisa realizada por Gysels et al.29 sobre a cultura sexual de caminhoneiros, intermediários (“cafetões”) e profissionais do sexo também trouxe importante contribuição à análise de vulnerabilidade, pois revelou uma complexa rede de significados sobre os serviços sexuais. Nesta pesquisa, a maioria dos caminhoneiros investigados fazia uso do serviço de intermediários na negociação de serviço sexual, que funcionavam tanto como intérpretes da língua local, quanto como uma garantia de relacionamento sexual com proteção de roubos e, até mesmo, de doenças. A crença de que os intermediários conhecem as mulheres “seguras” garantiria, portanto, a segurança sexual e física dos caminhoneiros daquela região estudada.
Alguns estudos avaliativos também estiveram mais próximos da análise de vulnerabilidade. O estudo desenvolvido por Schneider et al.36 examinou o compromisso inicial para com a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e circuncisão entre caminhoneiros através do AIDS Risk Reduction Model. Este estudo, embora tivesse abordado questões sobre comportamentos de risco, não limitou o escopo de análise a estas questões, mas realizou também o escrutínio de normas sociais e religiosas que poderiam influenciar as diversas decisões sexuais e as percepções acerca da circuncisão.
Nesta categoria de estudos, destacou-se também o estudo de Witte et al.35, que avaliou a eficácia de materiais de campanha contra a aids no Kenya entre grupos de caminhoneiros e seus assistentes, bem como de profissionais do sexo e homens jovens. Os principais resultados que os autores demonstraram foi que em populações com alta percepção de risco de infecção pelo HIV (como no caso dos caminhoneiros), os panfletos que mostravam as estratégias de prevenção eram mais eficazes do que os cartazes que focavam excessivamente na ameaça do vírus.
Observou-se a presença de poucos estudos qualitativos publicados que investigassem a temática da vulnerabilidade de caminhoneiros ao HIV/aids. Este fato suscita a hipótese de que os estudos qualitativos ainda possuem um lugar marginal na produção de dados no campo da saúde pública sobre a temática. Além disso, chama-se atenção para alguns artigos que utilizaram o método qualitativo apenas para suplementação de informações para dados quantitativos, sem aprofundamento teórico-reflexivo, como por exemplo os estudos realizados no Paquistão44 e na Croácia43. Apesar das críticas apontadas, os estudos qualitativos aqui revisados trouxeram muitas contribuições ao campo das investigações sobre HIV/aids, principalmente por aprofundar e resgatar questões relevantes que outra metodologia não abordaria.
A maioria dos estudos apresentou a população de caminhoneiros como um grupo social em um contexto de maior vulnerabilidade ao HIV/aids, e demonstrou principalmente aspectos individuais, majoritariamente comportamentais, tais como a prática do sexo desprotegido com diversos tipos de parcerias sexuais ao longo das estradas (com destaque para as profissionais do sexo). Este fato, portanto, poderia justificar a devassa, realizada por muitos estudos, dos vários aspectos sociais e culturais relacionados à sexualidade e às práticas sexuais dos caminhoneiros, bem como a intervenção de serviços de prevenção de HIV e sua avaliação (clínicas noturnas, PrEP, circuncisão, materiais de campanha). Entretanto, apesar da maioria dos trabalhos publicados terem populações de países pouco desenvolvidos e desiguais, pouco espaço é reservado à análise da vulnerabilidade socioestrutural em que estão submetidos estes trabalhadores, principalmente o que se refere aos contextos do processo de trabalho. Existe, portanto, uma lacuna importante na literatura sobre a relação entre estes contextos estruturais e a epidemia de HIV/aids.
Sabe-se que o conceito de vulnerabilidade não se limita à gênese do agravo, mas engloba a interação entre agente, hospedeiro e meio7. E também considera que as características do processo saúde-doença são intrinsecamente determinadas pelo cenário dos serviços de saúde, incluindo os seus saberes e tecnologias. A partir deste pressuposto, pode-se afirmar que as ações de saúde não são apenas soluções, mas também parte do problema a ser resolvido, isto é, “os problemas de saúde são, portanto, sempre processos saúde-doença-cuidado”7.
Portanto, acreditamos que o conceito de vulnerabilidade poderá, ainda na vigência da meta 90-90-903, oferecer subsídios para a compreensão da complexidade dos diversos fatores envolvidos no processo de saúde-doença-cuidado, porque oportuniza a integração de conhecimentos de áreas distintas em um grande esforço de compreensão dos quadros mais amplos em que as práticas e realidades sociais especificamente vividas pelos sujeitos em situação de vulnerabilidade se estruturam. Tal esforço poderá colaborar para o entendimento das complexas relações existentes entre fatores individuais, programáticos e sociais, responsáveis pela intensificação da vulnerabilidade dos sujeitos ao HIV/aids.