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Eugenia e seleção imigratória: notas sobre o debate entre Alfredo Ellis Junior, Oliveira Vianna e Menotti Del Picchia, 1926

Eugenia e seleção imigratória: notas sobre o debate entre Alfredo Ellis Junior, Oliveira Vianna e Menotti Del Picchia, 1926

Autores:

Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.23 supl.1 Rio de Janeiro dez. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702016000500015

Abstract

This text analyzes the bill submitted by Alfredo Ellis Junior to the São Paulo legislature in August 1926, which would allow studies to be made of immigrants in São Paulo in order to orient immigration selection policies. It highlights the opinions of Menotti Del Picchia and Oliveira Vianna about the research agenda put forward by Alfredo Ellis Junior, focusing on the different conceptions about the race issue and immigration held in the 1920s. We suggest that Menotti Del Picchia’s divergence from Alfredo Ellis Junior and Oliveira Vianna could be interpreted as a dispute between literati and scientists over the legitimacy of their respective knowledge about the Brazilian reality and the proposal of policies for the country.

Key words: eugenics; immigration; Alfredo Ellis Junior (1896-1974); Menotti Del Picchia (1892-1988); Oliveira Vianna (1883-1951)

Em 17 de agosto de 1926, o historiador Alfredo Ellis Junior, que ocupava à época o cargo de deputado estadual,1 submeteu à Assembleia Legislativa paulista um projeto de lei com o objetivo de criar um “aparelhamento científico” para estudar os imigrantes que se estabeleciam em São Paulo. No horizonte desse projeto, estava a expectativa da aquisição de conhecimentos que viessem orientar, futuramente, uma seleção imigratória (Câmara..., 18 ago. 1926).

Para Alfredo Ellis Junior, a maioria das discussões sobre a imigração no Brasil, como a polêmica em torno da imigração japonesa, por exemplo, deixava exposta uma fragilidade: a carência de uma base científica. Argumentos como os de que a assimilação dos imigrantes japoneses resultaria em prejuízos para a eugenia do tipo racial brasileiro ou, ainda, de que as colônias japonesas permaneceriam isoladas da cultura nacional, embora carentes de comprovação, eram comumente utilizados pelas vozes contrárias à imigração japonesa (Ellis Junior, 1928, p.70-75). Em vista desse cenário, a execução de sua proposta de lei ofereceria um chão mais seguro para a adoção de políticas imigratórias, por meio da reunião de dados científicos sobre a adaptação das diferentes correntes imigratórias ao meio paulista.

A proposta apresentada por Alfredo Ellis Junior foi aprovada pelo conjunto dos deputados,2 e, no jornal Correio Paulistano, recebeu o apoio de Oliveira Vianna (25 ago. 1926; 15 set. 1926). Nos artigos “Seleção das matrizes étnicas”, de 25 de agosto, e “Seleção Imigrantista”, de 15 de setembro, o sociólogo fluminense recomendou a realização de estudos sobre a adaptação dos imigrantes ao ambiente brasileiro, corroborando a sugestão de Alfredo Ellis Junior. Não era a primeira vez que Oliveira Vianna oferecia a parlamentares um parecer seu sobre a questão imigratória. Em 1923, ele havia apoiado o projeto de lei do deputado Fidélis Reis (MG), que defendia a proibição da entrada de imigrantes negros no Brasil, a restrição parcial da imigração amarela e estímulos à imigração europeia (Ramos, 1996, p.65, 67). Oliveira Vianna era então um importante defensor da tese do branqueamento da população brasileira, a partir da miscigenação com imigrantes europeus (Skidmore, 1976, p.219-221).

Em contrapartida, o escritor modernista e também deputado estadual, Menotti Del Picchia,3 criticou o projeto de Alfredo Ellis Junior num artigo publicado no Correio Paulistano, em 26 de agosto. Para Menotti Del Picchia (26 ago. 1926), uma seleção imigratória que estabelecesse critérios mais rígidos para a entrada de imigrantes no Brasil seria incompatível com a urgência do povoamento ou da colonização do território brasileiro. A proposta não levaria em conta a realidade da miscigenação no Brasil, que, diferente do que os estudos raciais tradicionalmente atestavam, havia produzido um tipo racial “prodigioso de energia física e iniciativas” que desbravou e fixou as fronteiras do país (Del Picchia, 26 ago. 1926). Com isso, Menotti Del Picchia reiteraria um discurso elogioso da formação racial mestiça da população brasileira, apoiada nos elementos indígena, branco e negro.

Ao se deter sobre esse debate, o presente texto analisa o projeto de Alfredo Ellis Junior, destacando a congruência entre sua proposta de lei e os interesses de sua pesquisa histórica, nos anos 1920. Ao ressaltar as opiniões de Menotti Del Picchia e de Oliveira Vianna acerca da agenda de estudos sugerida por Alfredo Ellis Junior, focaliza, também, concepções distintas sobre a questão racial e a imigração. A aproximação com o tema sugere a divergência de Menotti Del Picchia com Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna, como tradução de uma disputa, entre literatos e cientistas, pela legitimação de seus respectivos conhecimentos sobre a realidade brasileira, e pela proposição de políticas para o país. Trata-se de uma reflexão inicial sobre temas que vêm sendo estudados no âmbito da tese de doutorado, em desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, no que diz respeito aos diálogos do modernismo brasileiro com as ciências, focalizando, especialmente, a temática racial.

Alfredo Ellis Junior e o estudo da formação racial paulista

No mesmo ano em que apresentou sua proposta de lei para o estudo da imigração em São Paulo, Alfredo Ellis Junior publicou o livro Raça de gigantes.4 Nele, definiu o paulista como uma sub-raça resultante do cruzamento eugênico, ou benéfico, entre ibéricos e indígenas. As características positivas desse tipo racial foram assinaladas pelo historiador, a partir de índices de fecundidade, longevidade e varonilidade dos paulistas.5 Tal conformação teria persistido até o século XIX, quando ocorreu o aumento da população escrava, negra, requerida para o trabalho nas lavouras de café, e, posteriormente, quando, a partir das políticas imperiais, foi atraído para São Paulo um grande contingente de imigrantes europeus.

Em vista da continuidade dessa imigração, nas primeiras décadas do século XX, o historiador considerou a necessidade de realizar um novo estudo da população paulista, como seguimento das análises desenvolvidas em Raça de gigantes. De acordo com a justificativa apresentada à Câmara Estadual, um estudo das correntes imigratórias que se dirigiam para São Paulo, do ponto de vista das suas características raciais e da assimilação, permitiria adotar uma seleção dos imigrantes que preservasse a qualidade da população paulista no futuro (Câmara..., 18 ago. 1926).

A sugestão de que o antropólogo Edgar Roquette-Pinto fosse convidado para conduzir as pesquisas previstas em seu projeto sugere a preocupação de Alfredo Ellis Junior com o estabelecimento de um conhecimento crível no âmbito científico (Câmara..., 18 ago. 1926). Sua admiração pelo antropólogo carioca é notável pelas referências recorrentes a Rondônia (1916) e Seixos rolados (1927) nos artigos reunidos em Pedras lascadas (Ellis Junior, 1928, p.41, 49, 58). Em “Eugenia e imigração”, Alfredo Ellis Junior chegou a comparar os procedimentos metodológicos adotados por Roquette-Pinto e por Oliveira Vianna, para o estudo da população brasileira, e concluiu que as informações obtidas por Roquette-Pinto, a partir “das mensurações diretas”, isto é, dos cálculos biométricos, eram mais confiáveis do que as apresentadas por Oliveira Vianna em Populações meridionais do Brasil (1920), sustentadas pela consulta de “velhos recenseamentos federais” (Ellis Junior, 1928, p.66-67).

Em pelo menos uma ocasião, Roquette-Pinto também utilizou o argumento da autoridade científica para tecer elogios aos estudos de Alfredo Ellis Junior. Numa resenha, publicada em 1º de setembro de 1926, Roquette-Pinto se referiu à Raça de gigantes como “um dos poucos livros nacionais desta natureza, em que o assunto é tratado com carinho de verdadeiro pesquisador” (Roquette-Pinto, 1 set. 1926, p.4). Ainda segundo Roquette-Pinto, Raça de gigantes era “um livro de sociologia brasileira, pensado e composto por alguém que se mostra habituado com os métodos da ciência” (Roquette-Pinto, 1 set. 1926, p.4). Ao lado de elogios como esses, o antropólogo registrou, também, algumas ponderações, entre elas a de que Alfredo Ellis Junior havia gasto “sua boa cera” para criticar Georges V. de Lapouge, “um defunto de pouca valia” e, com isso, passava a impressão de que não teria se emancipado do “sedutor bacharel de Montpellier”, já bastante desacreditado pelas pesquisas científicas (Roquette-Pinto, 1 set. 1926, p.4).

Entretanto, não foi só de elogios a relação dos dois pesquisadores. Houve, entre Alfredo Ellis Junior e Edgar Roquette-Pinto, divergências importantes com relação à recepção de correntes teóricas da biologia que avaliavam o transformismo das espécies. A antropologia de Roquette-Pinto ligava-se à escola mendeliana; já Alfredo Ellis Junior, mesmo considerando válida a tese da transmissão dos caracteres hereditários, não desacreditava da interferência dos fatores ambientais sobre a herança genética humana (Ellis Junior, 1928, p.47-48). Suas concepções estavam, portanto, mais próximas da perspectiva lamarckista, e, mesmo nos anos 1930, com a maior popularização dos estudos mendelianos sobre a hereditariedade, o lamarckismo continuou sendo um referencial teórico importante em Populações paulistas (1934) e Os primeiros troncos paulistas (1936).

Alfredo Ellis Junior costumava definir-se como adepto de um ecletismo teórico, não considerando conflitantes as contribuições específicas do darwinismo, do lamarckismo e do mendelismo. Em sua opinião, as seleções natural e social (darwinismo), a influência do meio sobre os caracteres hereditários (lamarckismo), como também o esquema de transmissão das características genéticas, com base nas relações de dominância e recessividade (mendelismo), configuravam forças distintas que teriam agido em favor da eugenia racial da população paulista (Ellis Junior, 1976, p.38). Diante desse quadro, é precisa a imagem de um emaranhado cientificista (Monteiro, 1994, p.80), embora a ideia de desatualização não pareça ser sua explicação mais adequada.

Pelo menos no que diz respeito à conciliação dessas teorias, ela não teria sido atípica nessa época (Stepan, 2004, p.347). Entre os brasileiros, o eugenista Renato Kehl, por exemplo, “referia-se geralmente ao neolamarckismo e à genética mendeliana como se fossem variações compatíveis da mesma ciência da hereditariedade” (p.347). A aproximação de Renato Kehl com a eugenia anglo-saxônica e alemã, de base mendeliana, ocorreria somente a partir do final dos anos 1920, e teria implicações sobre seu conceito de eugenia. Renato Kehl passaria então a defender a ideia de que medidas mais extremas, como a seleção imigratória e a esterilização, por exemplo, eram mais eficazes para a melhoria das qualidades raciais que o investimento em políticas de higiene e educação (Wegner, Souza, 2013, p.265-266, 268-269).

Alfredo Ellis Junior e Edgar Roquette-Pinto tiveram também pontos de vista distintos com relação à interpretação da mestiçagem brasileira. Na visão do antropólogo carioca, não se poderia atestar que a miscigenação fosse um fator de degeneração racial. Para ele, interpretar as doenças que acometiam as populações do interior do país como sintoma de máculas raciais, ignorando fatores sociais como o acesso precário à saúde e à educação era um equívoco (Souza, 2011, p.296, 298, 321). Já o otimismo de Alfredo Ellis Junior não chegava a tanto. Mesmo descrente da superioridade das ditas raças arianas e salientando o intenso processo de miscigenação que teria formado historicamente os indivíduos das diferentes nacionalidades, o historiador paulista não descartou a hierarquização dos tipos de mestiçagens segundo seus resultados eugênicos ou disgênicos (Ellis Junior, 1976, p.46-47).

Entre as mestiçagens deste último tipo, estava a miscigenação com o negro, em face das características peculiares do planalto paulista. Para Alfredo Ellis Junior, as condições climáticas dessa região, marcada por acentuadas variações de temperatura, impunham ao negro uma rigorosa seleção natural, cujo resultado era o rápido branqueamento da população paulista. O preconceito do autor com relação ao negro relativizou questões sociais ou mesmo o crescimento do número de imigrantes europeus em São Paulo, no começo do século XX. Assim, após analisar dados estatísticos oficiais do estado paulista, Alfredo Ellis Junior (1928, p.42-43) assinalou que “uma inferioridade de natureza fisiológica” provocava a alta mortalidade de negros e mestiços por doenças do aparelho respiratório, como a tuberculose. Apoiando-se nessas pesquisas, chegou a alertar sobre “o excessivo espírito democrático” das conclusões de Roquette-Pinto, que o induzia a ignorar a evidente concorrência de fatores biológicos, ou de ordem racial, tais como os observados nas suas pesquisas sobre a mortalidade em meio à população negra (p.43-44).

Oliveira Vianna e a defesa da seleção imigratória

A questão do eugenismo paulista também permeou os estudos de Oliveira Vianna, e, conforme assinala Maria Stella Martins Bresciani, foi objeto de algumas polêmicas nas quais o sociólogo se envolveu. Em 1925, por exemplo, Oliveira Vianna divergiu de Afonso de Taunay, quanto à origem dos chefes bandeirantes. Em História geral das bandeiras, o historiador havia assinalado a ascendência espanhola, enquanto Oliveira Vianna acreditava ter sido germânica. No mesmo ano, o sociólogo também discordaria da afirmação de Paulo Prado, feita em Paulística, de que o elemento judeu teria sido predominante nos troncos bandeirantes mais antigos. Em 1927, Oliveira Vianna voltaria ao tema e, ao comentar três textos sobre o movimento bandeirante publicados por Afonso de Taunay, assinalou a permanência das matrizes eugênicas da população paulista (Bresciani, 2007, p.282-283). Contudo, não era essa questão o único ponto de contato entre os interesses de Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna.

Em uma publicação no Correio Paulistano, poucos dias após Alfredo Ellis Junior ter seu projeto discutido pela Câmara Estadual paulista, Oliveira Vianna endossava a relevância de se estabelecer parâmetros científicos para uma seleção imigratória, com o artigo “Seleção das matrizes étnicas”. O argumento de Oliveira Vianna (25 ago. 1926) para recomendar a realização de estudos sobre as correntes imigratórias do ponto de vista de sua aclimatação é semelhante ao de Alfredo Ellis Junior. Trata-se do pressuposto neolamarckista de que os caracteres raciais sofreriam alterações na interação com o meio físico, alterando, desse modo, a eugenia das raças. Nesse sentido, o recolhimento de informações sobre a adaptação dos imigrantes de diversas origens ao ambiente paulista consistia numa etapa que subsidiaria, posteriormente, o estabelecimento de uma política de seleção dos imigrantes.

Desde o início da década de 1920, o tema da imigração vinha recebendo a atenção na Câmara Federal. Em 1921, os deputados Cincinato Braga (SP) e Andrade Bezerra (PE) submeteram um projeto que visava à proibição da entrada de imigrantes negros no país. Já em 1923, o deputado Fidélis Reis (MG) apresentou um novo projeto que, além de atualizar a matéria do projeto anterior, pretendia restringir a imigração amarela e estimular a vinda de imigrantes europeus (Ramos, 1996, p.65). Essas propostas, que ecoavam as leis imigratórias norte-americanas, em vigor desde 1921, estabeleciam um regime de cotas para entrada de imigrantes, de acordo com a nacionalidade, e foram rejeitadas pela Câmara (p.66). O projeto de Alfredo Ellis Junior, submetido à esfera estadual, dava, portanto, continuidade ao debate vigente, inspirando-se, igualmente, na política imigratória norte-americana, porém dando ênfase aos estudos que a teriam embasado.

Oliveira Vianna mantinha-se atualizado sobre essas discussões e, em texto já mencionado, chegou a sugerir uma metodologia para a realização dos estudos brasileiros sobre imigração. Em sua opinião, eles deveriam versar “sobre a ‘resistência’ das diversas raças ao meio tropical”, “sobre a fecundidade de cada uma delas” e “sobre sua ‘eficiência’ ou capacidade de trabalho” (Vianna, 25 ago. 1926). Outra preocupação seria determinar o “eugenismo positivo” e o “eugenismo negativo” de “cada um dos tipos étnicos aqui confluentes” (Vianna, 25 ago. 1926). Tratava-se, nesse caso, de produzir índices que determinassem qual raça produzia a “maior porcentagem de homens de elite e de tipos superiores nas ciências, nas artes, nas indústrias, na política” e, por outro lado, “o maior número de indivíduos de segunda ordem” ou que não conseguiam “ascender às classes médias e superiores, bem como de indivíduos decaídos ... ou poor whites” (Vianna, 25 ago. 1926).

O viés arianista presente na obra de Oliveira Vianna não teria, contudo, correspondência nos estudos de Alfredo Ellis Junior. Oliveira Vianna (25 ago. 1926) defendia que os estudos determinassem quais das raças – arianas, ibérica, germânica e céltica – apresentavam melhor adaptação ao meio tropical. Seu posicionamento era muito claro em meio ao debate em torno da imigração japonesa que, em grande medida, tinha em conta seu crescimento acentuado a partir de meados dos anos 1920.6 Em 1926, por exemplo, os japoneses representariam 11,6% do total dos imigrantes que chegaram a São Paulo (Lesser, 2015, p.215). Em Raça e assimilação, Oliveira Vianna (1932, p.204-205) justificaria a sua opinião contrária à imigração japonesa, argumentando que, embora os tests de inteligência americanos indicassem a igualdade e, por vezes, mesmo sua superioridade ante as raças arianas, a imigração japonesa constituía um sério problema do ponto de vista da assimilação. Já Alfredo Ellis Junior tinha um ponto de vista favorável aos japoneses e, durante a discussão do seu projeto na Câmara paulista em 1926, buscou refutar a ideia de que permanecessem enquistados em suas colônias no estado de São Paulo (Câmara..., 18 ago. 1926).

Em “Seleção imigrantista”, artigo publicado em 15 de setembro, no Correio Paulistano, Oliveira Vianna retomaria sua defesa de uma avaliação do grau de eugenismo das raças considerando, para além dos aspectos biológicos, a interação com o ambiente. Numa avaliação sobre a política imigratória dos Estados Unidos, Oliveira Vianna ressalta que o favorecimento ou a restrição a determinados imigrantes havia tido em conta o resultado de estudos rigorosos que puderam orientar a questão eugenismo das raças em relação ao meio americano. O texto avançaria, também, sobre uma discussão que não tivera destaque no projeto de Alfredo Ellis Junior: a implementação de uma seleção negativa, que proibisse a entrada no país dos indivíduos que “trazem patentes, os estigmas de profundas hereditariedades mórbidas: surdos, loucos, retardados, criminosos” (Oliveira Vianna, 15 set. 1926). Ao mencionar isso, Oliveira Vianna reforçava sua postura favorável à adoção de medidas eugênicas mais extremas, que estiveram mais comumente associadas aos adeptos da genética mendeliana.

Menotti Del Picchia e o lirismo da ciência

No artigo “O problema racial”, de 26 de agosto, Menotti Del Picchia se colocou contrário à maneira como Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna tratavam a questão imigratória. Para o escritor, o horizonte do projeto de lei submetido à apreciação dos deputados paulistas traria empecilhos à solução do povoamento do território brasileiro. Em sua opinião, o argumento de Oliveira Vianna de que o Brasil tinha a vantagem da possibilidade de escolha dos seus elementos étnicos, sobre os “velhos povos civilizados”, apesar da “força persuasiva”, esbarrava em objeções práticas (Del Picchia, 26 ago. 1926). A primeira delas era a “relativa escassez de oferta nos mercados de braços que representam para nós o tipo ideal do colono”, que Menotti Del Picchia caracterizou como sendo o “homem habituado ao trato da terra”. Já o segundo entrave era a “necessidade de colonizar rapidamente imensas reservas de terras” (Del Picchia, 26 ago. 1926).

Ao valorizar a perspectiva do trabalho, Menotti Del Picchia deixou em segundo plano o critério racial empregado por Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna, para orientar uma agenda de estudos sobre a imigração. Na visão de Menotti Del Picchia (26 ago. 1926), o Brasil havia realizado com êxito o cruzamento de raças “diametralmente opostas”, “o luso, o preto e o índio”. O país não abrigava o mesmo “drama racial dos Estados Unidos”, e, para isso, teriam contribuído a “faculdade absorvente e vitoriosa do português” e o clima como fator de unificação racial. O resultado dessa mistura racial sob as peculiares condições do ambiente brasileiro era, segundo Menotti Del Picchia (26 ago. 1926), “um tipo tão prodigioso de energia física e de iniciativas, que conseguiu desbravar, fixar-lhe as fronteiras, possuir e defender uma das pátrias geograficamente maiores do mundo”.

O escritor contrapõe essa imagem heroica do bandeirante à personagem criada por Monteiro Lobato, o Jeca Tatu, como representação da apatia e da preguiça do brasileiro rural. Ao denominá-la “ilusão literária criada pelo humorismo cético de Lobato” (Del Picchia, 26 ago. 1926), não faz referência à reescrita desse personagem, que se deu após o envolvimento de Lobato nas campanhas sanitaristas. Já no final na virada para a década de 1920, Monteiro Lobato redimiria o Jeca Tatu, que então passaria de símbolo das mazelas raciais, para vítima da falta de políticas de saneamento e educação nas regiões rurais brasileiras.7 Mesmo assim, o argumento de Menotti Del Picchia (26 ago. 1926), de que “poligenitismo” não resultou, no Brasil, em “nenhum mal para a raça”, implicava um desfecho semelhante.

Ao considerar que a mestiçagem não resultou em prejuízos raciais para a população brasileira, Menotti Del Picchia aproxima-se do ponto de vista de Roquette-Pinto, cujas pesquisas receberiam a atenção dos modernistas verde-amarelos por corroborar um discurso positivo da mestiçagem, que foi caro ao ideário daquele grupo. Conforme assinala Maria José Campos (2007), o tema da contribuição das três raças para a constituição do brasileiro foi recriado por Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo, em diversos poemas publicados na segunda metade dos anos 1920.8 Além disso, a tese do intelectual mexicano José Vasconcelos acerca da formação de um mestiço cósmico, na América, resultante da mestiçagem entre todas as raças (Vasconcelos, 1948), também foi, frequentemente, referenciada por Menotti Del Picchia e outros participantes do movimento de verde-amarelo, especialmente por Cassiano Ricardo e Plínio Salgado.

A explicação de Menotti Del Picchia para a bem-sucedida mestiçagem ocorrida no Brasil, ao destacar a contribuição de fatores ambientais geológicos e climáticos na unificação do tipo racial brasileiro, recorda os princípios teóricos lamarckistas e não faz qualquer alusão às premissas mendelianas que orientavam as pesquisas de Roquette-Pinto. Mesmo assim, a defesa de Menotti Del Picchia de uma seleção imigratória baseada em critérios individuais, e não raciais, que evitasse a entrada dos “defeituosos, ou pouco sadios, rebeldes à disciplina social, perigosos ... à ordem” (Del Picchia, 26 ago. 1926), foi coincidente com o ponto de vista de Roquette-Pinto (Souza, 2011, p.323). Conforme já assinalado, para Oliveira Vianna, a defesa desse tipo de seleção não excluía a necessidade de impor uma seleção baseada no critério racial.

Ao apresentar novas perspectivas ao debate sobre a imigração, Menotti Del Picchia parece ter pretendido apontar a parcialidade dos pontos de vista expressos por Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna. Empregando os próprios termos do escritor paulista, “a função do aparelhamento técnico imaginada por Alfredo Ellis seria de certa forma puramente lírica” (Del Picchia, 26 ago. 1926). O escritor modernista colocava em xeque a prerrogativa da ciência para interpretar e intervir sobre a realidade brasileira, ao caracterizar como lirismo e idealização a ciência praticada por aqueles intelectuais. Em outras palavras, questiona exatamente o que poderia qualificar o discurso científico ante o literário ou estético na função de guia da nação, isto é, na capacidade de agir de maneira objetiva sobre os problemas brasileiros.

Com efeito, Menotti Del Picchia devolveria aos portadores do discurso da ciência a mesma crítica recebida à época pelos literatos.9 Sem rechaçar o conhecimento científico, propõe outro modo de se aproximar do tema racial e imigratório, deslocando o lugar de autoridade ocupado pela ciência, na argumentação de Alfredo Ellis Junior e de Oliveira Vianna. A apreensão direta dos cruzamentos inter-raciais ocorridos no Brasil, isto é, não interposta pelas teorias raciais, indicava, na visão de Menotti Del Picchia, o quão infundadas eram as apreensões em torno da miscigenação. Sobressai de seu discurso, portanto, outro tipo de interpretação histórica, que enalteceria as três raças formadoras da população brasileira.

Considerações finais

A análise do projeto de lei submetido por Alfredo Ellis Junior à Câmara Estadual de São Paulo, em 1926, bem como de sua recepção por Oliveira Vianna e Menotti Del Picchia põe em evidência perspectivas distintas com relação ao tema racial e imigratório. O mesmo objeto focaliza também interlocuções entre atores importantes desse debate, com destaque para a recepção da obra do antropólogo Edgar Roquette-Pinto, bem como para a leitura de preceitos teóricos concorridos, à época, como o darwinismo, o mendelianismo e o neolamarckismo, considerando suas vinculações com os projetos eugênicos.

A esse respeito nota-se, na divergência de Menotti Del Picchia com Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna, que os preceitos neolamarckistas estiveram associados a avaliações e ações distintas em relação à imigração no Brasil. Se, em Menotti Del Picchia, as ideias neolamarckistas relativizaram o pressuposto de um determinismo racial,10 em Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna, o neolamarckismo sustentou a proposição de políticas de seleção dos imigrantes, que em geral foram implicações do próprio determinismo racista. Nesse sentido, a orientação neolamarckiana não resultou, necessariamente, na rejeição de medidas radicais, como a seleção imigratória, as quais foram comumente associadas à eugenia anglo-saxã de base mendeliana. Tais relações, vindas ao encontro de pesquisas recentes sobre a história da eugenia no Brasil (Souza, 2011; Wegner, Souza, 2013), permitem problematizar a associação entre o neolamarckismo e a defesa de uma eugenia mais “suave”, isto é, orientada essencialmente para as medidas de saneamento e para os cuidados com a maternidade e a infância, por exemplo (Stepan, 2004).

Por fim, observou-se que do debate entre Alfredo Ellis Junior, Oliveira Vianna e Menotti Del Picchia, norteado por leituras particulares das pesquisas científicas, se destaca um ângulo particular de aproximação às disputas entre literatos e cientistas pela legitimação de seus respectivos conhecimentos da realidade brasileira, capaz de iluminar o cenário intelectual brasileiro dos anos 1920.

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