versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.2 São Paulo abr./jun. 2018 Epub 07-Maio-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3858
A hidralazina é um vasodilatador de ação direta que tem sido usado no tratamento da hipertensão desde a década de 1950. Também tem sido amplamente utilizada em combinação com betabloqueadores e diuréticos, a fim de evitar taquicardia reflexa e retenção de fluidos, respectivamente, associados à terapia com hidralazina.1 O lúpus induzido por drogas (LID), associado ao uso de hidralazina, foi descrito pela primeira vez em 1953.2 A incidência de lúpus induzido por hidralazina é de 5-8%. Os sintomas típicos incluem artralgia, mialgia, febre, erupção cutânea, pleurite e leucopenia.3 A lesão renal é incomum, encontrada em 5-10% dos casos relatados.4 No entanto, casos demonstrando vasculite induzida por drogas (VID), limitada aos rins, associada ao uso de hidralazina, foram relatados na literatura a partir do início dos anos 80.5-7 Neste artigo, apresentamos dois casos de vasculite associada ao ANCA, induzidas por hidralazina, e chamamos a atenção para eventos adversos graves associados à hidralazina.
Homem caucasiano, 57 anos, com história pregressa de hipertensão arterial sistêmica e osteoartrose discreta, apresentou-se ao serviço de emergência do ambulatório com queixas de hematúria e insuficiência renal aguda (creatinina sérica 3,6 mg/dL, creatinina sérica basal 0,9 mg/dL, seis semanas antes). Quatro dias antes da apresentação, o paciente foi atendido pela clínica médica por conta de possível sinusite, disúria e leve hematúria. Amoxicilina foi prescrita por três dias para uma presumida infecção do trato urinário. O paciente relatou alguma fadiga, negou fumar ou o uso de álcool ou drogas ilícitas. Os medicamentos usados incluíam amlodipina 10 mg/dia e hidralazina 50 mg duas vezes ao dia, iniciada seis semanas antes, para melhor controle da pressão arterial. Não houve achado significativo ao exame físico. O exame de urina rotina revelou hematúria e proteinúria de baixo grau. O exame microscópico do sedimento urinário revelou numerosos glóbulos vermelhos dismórficos, vários grumos de glóbulos vermelhos e glóbulos brancos ocasionais. A ultrassonografia renal foi normal. Foi considerado um diagnóstico de VID associada a hidralazina, e a medicação foi interrompida. A sorologia foi positiva para AHA, cANCA, por imunofluorescência e PR3 por ELISA a 52 AU/mL, e um título de ANA a 1: 1,115 com um padrão homogêneo. Os níveis séricos de complementos C3 e C4 foram normais. Anticorpos para pANCA e MPO não foram detectados. Sorologias para anti-GBM, painel de hepatite e HIV foram negativas. O paciente foi tratado com terapia com esteroides por pulso de alta dose (500 mg/dia por três dias). No entanto, a insuficiência renal continuou a progredir (creatinina sérica 4,0 mg/dL) e o paciente necessitou de diálise devido a hipercalemia (K 5,6 mmol/L) e acidose (bicarbonato sérico 13). A biópsia renal revelou glomerulonefrite necrosante pauci-imune com aumento de 20% dos glomérulos (Figura 1). Foi feito o diagnóstico de VID induzida por hidralazina. O paciente foi tratado com pulso de esteroide e rituximabe. A função renal estabilizou-se e a diálise foi interrompida após quatro sessões. Ele recebeu alta no décimo segundo dia, com eletrólitos normais e creatinina sérica de 3,4 mg/dL; PR3 e ANA estavam indetectáveis (Tabela 1). Dois anos depois, o paciente permaneceu estável, mas com estágio avançado da DRC III (Cr sérica de 2,8 mg/dL e TFGe = 42). Sua pressão arterial permaneceu em torno de 130-140/85-90 mmHg com amlodipina 10 mg/dL, clortalidona 12,5 mg/dia e ramipril 10 mg/dia.
Figura 1 Glomerulonefrite Crescente. Um glomérulo mostrando um crescente celular circunferencial (estrelas). Remanescentes do tufo glomerular são demonstrados (setas)
Tabela 1 Dados laboratoriais de pacientes com vasculite associada a ANCA induzida por hidralazina
Caso 1 | Caso 2 | |
---|---|---|
Valores laboratoriais | Homem branco 57 anos | Homem branco 87 anos |
Dose mais alta da hidralazina | 50 mg 2xdia | 100 mg 3xdia |
Duração do tratamento com hidralazina | 6 semanas | 5 anos |
BUN, mg/dL | 33 | 102 |
Cr sérica, mg/dL | 3,6 | 10,41 |
Cr basal, mg/dL | 0,9 | 2,27 |
Urina rotinas | Sangue amplo /+1proteína | Sangue amplo /+1proteína |
Padrão IF/título ANCA | cANCA | 1:160/pANCA |
Título MPO, AU/mL | - | 25 |
Título PR3, AU/mL | 52 | - |
Abs Anticromatina (normal < 19 Unid.) | Não checado | 31 |
Título ANA/padrão IF | 1:1,115/homogêneo | 1:640/homogêneo |
Anti-dsDNA | - | + |
Anti-dsDNA por Critidia | - | 1:160 |
AHA IgG (normal < 0.9 Unid.) | 8,7 | 3,1 |
C3 (normal 85-170 mg/dL) | 88 | 50,4 |
C4 (normal 16-40 mg/dL) | 22,8 | 11,1 |
ESR, (normal < 20 mm/hour) | 39 | 41 |
Desfecho | DRC estágio IIIb | Óbito secundário a sepse por cateter |
Um homem caucasiano de 87 anos de idade com histórico médico de hipertensão (HA), demência e DRC III se apresentou ao hospital com estado mental alterado e IRA. Não houve relato de febre, calafrios, disúria, hematúria, erupções cutâneas, artralgia ou mialgia. Seus medicamentos incluíam hidralazina, mononitrato de isossorbida, furosemida, doxazosina, atorvastatina, aspirina, duloxetina e pantoprazol. O paciente já usava hidralazina há cinco anos com a dose mais recente de 100 mg três vezes por dia, aumentada de 50 mg três vezes por dia, três anos atrás. Não houve achado significativo ao exame físico. O exame laboratorial revelou Cr 10,41 mg/dL, BUN de 102 mg/dL (valores basais 2,27 e 42, respectivamente um ano antes). A urina rotina mostrou hematúria e proteinúria +1. A relação Proteína/Cr foi de 3,1 gm e VHS 41 mm/h. A sorologia foi positiva para pANCA por imunofluorescência a 1: 160, MPO por ELISA a 25 UA/mL, AHA a 3,1 unidades, anticorpos anticromatina a 31 U, título de ANA a 1: 640 com padrão homogêneo, dsDNA positivo por ELISA e critidia a 1: 160, C3 a 50,4 mg/dL e C4 a 11,1 mg/dL. Sorologia para anti-GBM, cANCA/PR3 e painel de hepatite foram todos negativos (Tabela 1). A ultrassonografia renal estava normal. O paciente foi iniciado em hemodiálise de emergência. VID induzida por hidralazina foi suspeitada, dado a sorologia positiva para vasculite. O paciente recebeu um curso de esteroide com dose de pulso e, em seguida, iniciou a plasmaferese. Subsequentemente, ele foi submetido a uma biópsia renal, que mostrou glomerulonefrite rapidamente progressiva, focal, pauci-imune, confirmando o diagnóstico (Figura 2). Infelizmente, a função renal não mostrou sinais de recuperação e a terapia com rituximabe foi iniciada. Depois de receber duas doses, no entanto, o tratamento foi interrompido devido à bacteremia induzida por cateter de diálise. Devido à rápida deterioração do estado mental e das condições gerais do paciente, a família decidiu suspender o tratamento e transferir o paciente para o serviço de cuidados paliativos.
A apresentação clínica da VID induzida por hidralazina é geralmente mais grave do que o LID. Geralmente envolve a pele, com envolvimento de rins e pulmões também.8
Os pacientes podem apresentar glomerulonefrite necrosante e rapidamente progressiva, juntamente com artralgia, comprometimento das vias aéreas superiores, doença pulmonar e achados vasculíticos cutâneos.9 Os dois casos aqui apresentados sublinham a importância de acontecimentos adversos graves (isto é, o desenvolvimento de IRA grave e subsequente DRC e óbito) associados a vasculite por ANCA induzida por hidralazina. Clinicamente, esta doença assemelha-se à vasculite idiopática associada ao ANCA (VAA), como a granulomatose com poliangiite e poliangiite microscópica.10 As sorologias revelam um alto título de ANCA para MPO com padrão de coloração pANCA característico, anticorpos anti-nucleares (ANA), anticorpos anti-histona (AHA), bem como ANCAs “atípicos”.8 Os ANCAs, que têm como alvos a lactoferrina e a elastase de leucócitos humanos, mostraram-se fortemente associados à VID induzida por hidralazina.11 Ambos os casos relatados foram positivos para anticorpos anti-histona. O caso número 2 foi positivo para pANCA com título de MPO de 25 AU/mL. Nosso caso número 1 foi positivo para cANCA com título PR3 de 52 AU/mL. Vários relatos mostraram positividade para os anticorpos cANCA e PR3 na DIV induzida por propiltiouracil.12-14 No entanto, um caso relatado anteriormente de VID induzida por hidralazina por Agarwal et al. foi positivo para PR3, mas também para anticorpos MPO.15 Neste contexto, o nosso caso número 1 é o primeiro caso relatado de vasculite com cANCA isolada induzida por hidralazina, positiva para PR3. Além disso, nosso paciente desenvolveu DRC avançada (estágio IIIb) após lesão renal aguda, enquanto no caso de Agarwal a função renal se recuperou, com creatinina sérica retornando a 1,1 mg/dL em comparação a 2,13 mg/dL no momento da admissão.
Os fatores de risco para o desenvolvimento de VID associado ao uso de hidralazina incluem maior duração da terapia e especialmente doses diárias e cumulativas mais elevadas.16,17 O estado do acetilador parece ser um forte fator preditivo para o desenvolvimento da doença, com os acetiladores lentos apresentando diminuição da síntese hepática de N-acetiltransferase.18,19 A metilação do DNA é essencial para a regulação da expressão gênica e da função das células T.20 A hipometilação do DNA é responsável pela ativação da transcrição gênica do antígeno 1 associado ao linfócito (LFA-1) (CD11a/CD18) e indução da auto-reatividade no LES.21-23 De maneira similar, a hidralazina demonstrou inibir a metilação do DNA afetando a DNA metiltransferase (DNMT) através da inibição da via da cinase regulada pelo sinal extracelular (ERK).24 Semelhante aos pacientes com VAA idiopática, a hipometilação do DNA na VID associada à hidralazina pode ser responsável por interromper o silenciamento da PR3 e da MPO. Isso aumenta a expressão de autoantígenos em neutrófilos.9,25,26 Em um estudo que avaliou o potencial antineoplásico da hidralazina, ela atuou como um inibidor não-nucleosídeo da metilação do DNA, revertendo o silenciamento epigenético de genes supressores de tumor.27
Estabelecer o diagnóstico de vasculite induzida por drogas (VID) em um paciente com múltiplas comorbidades que inicialmente apresenta insuficiência renal é um desafio para o clínico. A insuficiência renal secundária a doenças como diabetes e hipertensão pode mascarar e retardar o diagnóstico de VID. Na ausência de envolvimento de outros órgãos, especialmente da pele, o diagnóstico baseia-se nas sorologias positivas e na histopatologia renal. A suspensão da hidralazina é o primeiro passo no tratamento e isso por si só pode ser suficiente; entretanto, um manejo mais agressivo envolvendo imunossupressão é frequentemente necessário. As opções disponíveis incluem esteroides, ciclofosfamida, rituximabe e plasmaferese. A abordagem terapêutica varia com base nas comorbidades do paciente, gravidade da lesão renal, envolvimento de órgãos e idade.
A escolha da hidralazina no manejo da hipertensão foi amplamente substituída por novas drogas anti-hipertensivas, com perfis de efeitos colaterais mais aceitáveis.1 De acordo com o Oitavo Comitê Nacional Conjunto (JNC8), a hidralazina não é recomendada como terapia de primeira linha para hipertensão, uma vez que não houve ensaios controlados randomizados de qualidade boa ou razoável comparando as quatro classes recomendadas de medicamentos.28 No entanto, ainda é amplamente utilizada em pacientes grávidas e pacientes com insuficiência cardíaca, especialmente em países em desenvolvimento, devido ao seu baixo custo.1 A adição de uma combinação de hidralazina-nitrato a uma terapia padrão em pacientes afro-americanos com insuficiência cardíaca e fração de ejeção reduzida mostrou reduzir a mortalidade em 43%, bem como o número de hospitalizações por insuficiência cardíaca e tempo de internação hospitalar.29,30 No entanto, dado um perfil de efeitos colaterais extremamente desfavorável e várias alternativas disponíveis no mercado, a hidralazina deve ser geralmente evitada. Em situações em que seu uso é necessário devido à indisponibilidade de outros agentes, intolerância ou ineficiência, é imperativo que o clínico monitore de perto os pacientes em uso de hidralazina a longo prazo/alta dose.
Embora o lúpus induzido por drogas tenha sido frequentemente relatado com o uso de hidralazina, este medicamento também pode causar vasculite por ANCA induzida por drogas. Os dois casos apresentados aqui fornecem evidências dos efeitos adversos prejudiciais da hidralazina, incluindo a lesão renal aguda, levando à doença renal crônica e até à morte.