versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.15 no.1 Porto Alegre jan./mar. 2016 Epub 23-Mar-2016
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.001215
A desnutrição é subdiagnosticada nos pacientes internados em geral, estando associada a maiores taxas de morbidade em pacientes portadores de doença arterial periférica (DAP), como maior incidência de infecções, maior demora na cicatrização das feridas, diminuição da deambulação e maior tempo de internação1-3. A desnutrição leve tem sido associada a uma taxa de complicação quase duas vezes maior que em pacientes nutridos4. Enquanto isso, a desnutrição grave tem sido associada a uma taxa de complicação 10 vezes maior que em nutridos4. O aumento dessas taxas de morbidade, além do impacto na vida do indivíduo com vasculopatia, implica em maiores custos à saúde pública, já que resulta em aumento dos custos do tratamento5,6. Dessa forma, a identificação do estado nutricional do paciente com doenças vasculares é fundamental para que medidas de suporte sejam tomadas a fim de mitigar o efeito desse fator.
Foram selecionados artigos indexados no National Center for Biotechnology Information (NCBI) escritos em qualquer idioma até fevereiro de 2015 e que incluíssem as palavras-chave “desnutrição” e “doença arterial periférica”. Artigos anteriores a 1980 apenas foram selecionados se houvesse mais de duzentas citações.
Na investigação, os autores revisaram os resumos dos artigos pré-selecionados, e aqueles considerados de interesse para a elaboração do artigo de revisão foram lidos na íntegra antes de serem incluídos na base de dados.
A DAP é uma enfermidade relativamente comum. A prevalência mundial da DAP varia de acordo com a idade e é estimada de 3 a 10% em menores de 70 anos e entre 15 e 20% na população acima de 70 anos7,8. O estudo Hearts Brazil, publicado em 2008, avaliou 1.170 indivíduos de 72 cidades brasileiras. Como resultado, encontrou prevalência em 10,5% na população geral9.
A principal etiologia da DAP é a aterosclerose, que consiste no acúmulo de lipoproteínas e células inflamatórias na parede do vaso periférico. É assintomática em 40% dos casos, e sua progressão pode ser insidiosa, com manifestação de dor apenas ao exercício, a chamada claudicação intermitente. A dor é consequência da redução ou da ausência de fluxo sanguíneo para a musculatura dos membros, o que provoca modificação no metabolismo, resultando em dor local. Enquanto a doença for assintomática ou com claudicação intermitente, não afetando a qualidade de vida do paciente, o tratamento baseia-se em mudanças dos hábitos de vida, medicações e fisioterapia vascular. Entretanto, quando a claudicação é limitante, ou nos casos mais avançados de dor em repouso ou perda tecidual, o tratamento cirúrgico geralmente está indicado.
A cirurgia para o tratamento da DAP, por vezes, requer grandes intervenções que visam salvar o membro afetado. Tais abordagens podem impor limitações à capacidade funcional do indivíduo, o que afeta diretamente a sua qualidade de vida e a sua possibilidade de viver independente10. Acredita-se que a alta prevalência de graves comorbidades contribuam significativamente para o pior prognóstico desses pacientes11,12. Grande parte daqueles acometidos pela DAP são idosos, tabagistas e portadores de doenças sistêmicas crônicas, como diabetes melito13, hipertensão arterial sistêmica13 (HAS), doença pulmonar obstrutiva crônica14, insuficiência cardíaca (IC)15, renal16 ou estão desnutridos1.
O diagnóstico da DAP baseia-se na medida do índice tornozelo-braço (ITB), onde a maior pressão sistólica das artérias medidas no tornozelo é dividida pela pressão sistólica da artéria braquial. O ITB menor que 0,9 é indicativo de DAP, tendo uma sensibilidade que varia de 79 a 95% e especificidade de cerca de 95%17-22. O German Epidemiological Trial on Ankle Brachial Index23, ao avaliar 6.880 pacientes com mais de 65 anos, demonstrou que pacientes com ITB & 0,9 apresentavam maior incidência de evento cardiovascular e morte. Jelnes et al.24, em um estudo de coorte, acompanharam 257 participantes por 10 anos. Esses autores compararam a mortalidade nos grupos de pacientes com ITB > 0,85; entre 0,85 e 0,4; e & 0,4. As taxas de óbito observadas foram respectivamente: 20, 50 e 70%. Há evidências de que pacientes assintomáticos e claudicantes possuem taxas similares de mortalidade em 5, 10 e 15 anos, que são respectivamente de 30, 50 e 70%25. Em 5 anos, apenas 5% dos pacientes com claudicação intermitente progridem para amputação de membro26,27. Em contraste, os pacientes portadores de isquemia crítica apresentam taxa de amputação de membro e mortalidade similarmente elevadas. Cerca de 20% deles morrem ou perdem o membro após um ano do diagnóstico de isquemia crítica28,29. Além disso, vários estudos revelaram que houve um aumento da mortalidade por etiologia cardiovascular e cerebrovascular em pacientes com DAP30-33. Nesses pacientes, o risco de morte aumenta entre duas a seis vezes quando comparado àqueles sem DAP30,34-36.
A desnutrição é uma das comorbidades mais prevalentes em pacientes internados por qualquer causa, sendo que sua prevalência é estimada em 50% para pacientes cirúrgicos em geral37-39. O diagnóstico de desnutrição deve ser baseado no estado nutricional do indivíduo. O desenvolvimento de métodos objetivos para a sua identificação sempre foi de interesse dos pesquisadores. Um dos métodos mais tradicionais é o índice de massa corpórea (IMC). Esse índice baseia-se na relação entre peso e o quadrado da altura do indivíduo. Esse método faz parte de vários instrumentos de avaliação nutricional por ser simples e objetivo. Em geral, o ponto de corte para desnutrição é quando o IMC é menor que 18,5 kg/m2,40,41. Em um estudo com 295 pacientes internados portadores de DAP em que se estimou o IMC, verificou-se que 2,8% dos pacientes possuíam IMC abaixo de 18,5 kg/m2. Aqueles que tiveram IMC entre 18,5 e 25 kg/m2 foram 39% deles. Aqueles com IMC entre 25 e 30 kg/m2 representaram 32%, enquanto que 26,2% apresentaram IMC acima de 30 kg/m2,42.
Outros instrumentos de avaliação nutricional têm sido mais utilizados que o IMC para avaliação do estado nutricional de pacientes durante a internação, substituindo esse método nos estudos científicos. Esses instrumentos tiveram sua origem na década de 80, quando o diagnóstico do estado nutricional era realizado através de técnicas arbitrariamente agrupadas como dosagem sérica da albumina, contagem total de linfócitos, hematócritos, parâmetros antropométricos e clínicos, mas sem que houvesse adequada validação dessas técnicas1,6,43-45. Surgiu, então, a necessidade da criação de mecanismos capazes de realizarem o diagnóstico nutricional com acurácia mais significativa. Portanto, visando a avaliação do estado nutricional de pacientes internados, métodos simples, de rápida aplicação e de baixo custo foram propostos para serem utilizados na prática clínica e orientarem a conduta de suporte nutricional46. Esses métodos foram chamados de instrumentos de triagem nutricional, e o objetivo é a estratificação dos pacientes em relação ao risco nutricional dos mesmos.
Em 2004, a British Association for Parenteral and Enteral Nutrition47 definiu que os instrumentos de triagem nutricional deveriam avaliar o risco nutricional do indivíduo, ou seja, se o paciente está em risco de desnutrição, não sendo necessário estabelecer diagnóstico de desnutrição e nem a sua severidade durante a triagem. A existência de risco nutricional em pacientes internados foi definida pela American Dietetic Association (ADA) como a presença de pacientes internados submetidos a fatores capazes de induzir ou agravar a desnutrição46. Existem vários instrumentos de triagem nutricional, a maioria deles associa técnicas utilizando a dosagem de albumina, dados clínicos, antropométricos, bioquímicos e outros exames auxiliares para realizarem o diagnóstico nutricional48-50.
Um desses instrumentos foi desenvolvido por Dempsey et al.49. Esses autores combinaram dosagem de albumina e transferrina com dobra cutânea tricipital e teste de imunidade celular, elaborando o Índice de Prognóstico Nutricional.
Chang et al.51 associaram três parâmetros antropométricos (perda de peso, dobra cutânea tricipital e circunferência muscular do braço), dosagem de albumina e total de linfócitos. Entretanto, observou-se que os exames laboratoriais podem estar alterados por causas diversas que não a desnutrição, provocando questionamentos sobre a aplicabilidade.
Em 1987, Detsky et al.52 desenvolveram a Avaliação Nutricional Subjetiva Global (Subjective Global Assessment, SGA), para avaliar o estado nutricional em pacientes internados para cirurgia gastrointestinal. Esse método ganhou popularidade e foi posteriormente validado para pacientes internados em geral. A SGA possui diversas vantagens: é essencialmente clínica, pode ser aplicada à beira do leito, associa-se com alterações recentes de peso, detecta alterações na ingestão oral, no hábito intestinal, na capacidade funcional e no estresse causado pela doença atual, além de parâmetros de exame físico52. Após a avaliação, o examinador faz uma análise geral e subjetiva dos dados e classifica o paciente em relação ao seu risco nutricional em uma das três categorias: 1) bem nutrido, 2) sob risco de desnutrição ou moderadamente desnutrido e 3) gravemente desnutrido. A SGA foi validada em 1987 após aplicação em 202 pacientes por dois examinadores diferentes52. No Brasil, Faintuch et al.53 e Coppini et al.54 validaram o questionário para triagem nutricional em português. Além de ser utilizada como triagem nutricional, a SGA tem sido aceita como avaliação capaz de realizar o diagnóstico de desnutrição52 e de riscos de complicações associadas ao seu estado nutricional durante a hospitalização, sendo considerada também um instrumento de prognóstico nutricional52. Em um estudo indiano de 2013, a SGA foi utilizada para avaliar 500 pacientes hospitalizados55. Observou-se a prevalência de 39,6% de pacientes desnutridos ou em risco nutricional. Em outro estudo, Thieme et al.56 avaliaram 125 pacientes que foram submetidos a cirurgia abdominal e encontraram prevalência de 66% de pacientes em risco nutricional ou desnutridos. Essa prevalência de desnutrição revela-se altamente diversificada de acordo com a população estudada, tendo sido documentada desde 19,2%57 em pacientes com acidente vascular encefálico (AVE), 47,6% em pacientes clínicos58, 51%59 em pacientes pediátricos, 51,9%60 em cardiopatas, 76%61 em pacientes oncológicos e até 80%62 em candidatos a transplante hepático. Alguns autores sugerem que pacientes cirúrgicos em geral apresentam prevalência mais baixa de desnutrição quando comparados a pacientes internados em enfermarias clínicas, sendo 19,1% e 38,6%, respectivamente63. Em contraste, há evidências de prevalências similares em pacientes nas duas enfermarias (53% versus 47%)64. Entre os pacientes com arteriopatias, há grande variação da prevalência da desnutrição em diferentes populações de portadores de doença vascular. Enquanto Westvik et al. encontraram prevalência de 55% em pós-operatório de cirurgia vascular aberta65, em outro estudo com pacientes idosos, 73% dos pacientes eram desnutridos já na admissão1 e, em um terceiro estudo, cerca de 90% dos pacientes admitidos para amputação transtibial apresentaram-se desnutridos66.
Outros instrumentos de triagem nutricional também foram desenvolvidos na expectativa de proporcionar melhor sensibilidade e especificidade na avaliação do estado nutricional dos pacientes portadores de diferentes comorbidades. de Ulíbarri Pérez et al.67 desenvolveram o CONUT (CONtrol NUTricional), um programa de computador que usou o banco de dados de pacientes admitidos no Hospital de La Princesa (Madri, Espanha). O programa analisa sexo, idade, diagnóstico, motivo da internação, tipo de tratamento, albumina sérica, colesterol e linfócitos totais. Após a análise de 229 pacientes, os autores observaram que a sensibilidade foi de 0,92 e a especificidade de 0,85. Em 1999, Ferguson et al.68 avaliaram 408 sujeitos. Os autores aplicaram 20 questões escolhidas por eles e compararam esses resultados com os da SGA e de uma avaliação nutricional completa. Entre as 20 questões, foram selecionadas as três com maior sensibilidade e especificidade em relação ao estado nutricional. A perda de peso recente, a quantidade de peso perdido e a diminuição de apetite. Assim, foi elaborado o modelo final do MST (Malnutrition Screening Tool). Este se mostrou um instrumento simples, barato e eficiente para a avaliação do estado nutricional, que não demanda aferições antropométricas específicas, muitas vezes difíceis de serem realizadas na prática diária. Por exemplo, em casos de pacientes com dificuldade de deambulação pela DAP, as aferições simples, como peso e altura, podem ser extremamente trabalhosas. Sendo assim, o MST é um ferramenta simples e prática. Entretanto, o instrumento qualifica pacientes com perda ponderal entre 1 e 5 kg como não tendo risco nutricional. Tal fato compromete a sensibilidade do método e subestima o estado nutricional de alguns pacientes, nos quais isso pode ser significativo.
Embora vários instrumentos de triagem nutricional tenham sido criados, a SGA continua sendo citada como padrão ouro na literatura69. Sendo assim, a triagem de todos os pacientes portadores de doença vascular com a SGA na admissão hospitalar traria benefícios em relação ao diagnóstico precoce do status de saúde desses pacientes, e a intervenção precoce poderia trazer benefício no desfecho final70.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu desnutrição como malnutrição, que é caracterizada pela ingestão inadequada de energia, proteínas e micronutrientes. A desnutrição é uma das comorbidades mais prevalentes em pessoas hospitalizadas37,71-73. Há evidências de que cerca de 50% dos pacientes cirúrgicos são desnutridos e a maioria deles não têm essa condição diagnosticada durante a internação37-39,74. Tal fato expõe os pacientes a taxas maiores de desfechos clínicos fatais quando comparados àqueles indivíduos bem nutridos75,76. Durkin et al.1 relataram que 73% dos pacientes da cirurgia vascular eram desnutridos. Dentre esses, 41% deles apresentaram complicações sépticas durante a internação, enquanto nenhuma complicação infecciosa foi observada naqueles sem deficiências nutricionais. Westvik et al.65 demonstraram que 55% dos pacientes que são submetidos a cirurgia vascular de grande porte desenvolvem desnutrição no período pós-operatório. Nesse grupo, 88% tornam-se desnutridos após correção aberta do aneurisma de aorta abdominal, 77% após pontes arteriais e cerca de 30% após endarterectomia de carótida. Embora não tenham observado diferenças na mortalidade entre os pacientes desnutridos e nutridos, os autores descreveram uma incidência significativamente maior de infecção nos desnutridos (24,2%) comparados aos nutridos (3,7%). Eneroth et al.66, em 1997, avaliaram que, entre 32 pacientes submetidos a amputação transtibial, 28 (90%) deles eram desnutridos. Os autores fizeram um estudo em que esses 32 pacientes tiveram suplementação nutricional de cerca de 2.098 kcal/dia. Os sujeitos foram alimentados durante 11 dias, sendo que 20 deles seguiram o esquema de suplementação por 5 dias no pré-operatório e 6 dias no pós-operatório. Quatro desses pacientes tiveram que ser amputados de urgência e foram nutridos por 11 dias no pós-operatório apenas. Como grupo controle, os pesquisadores usaram 32 amputados de outro hospital que não foram submetidos a suplementação. Os pacientes foram pareados por diabetes, sexo, idade, tabagismo, revascularização prévia do membro e condições de vida antes da amputação.
Após 6 meses, 26 (81%) dos pacientes que receberam suplementação tiveram suas feridas cicatrizadas. Em contraste, apenas 13 (40%) dos que não receberam suplementação cicatrizaram seus cotos de amputação. Embora tenha havido tendência a menor mortalidade no grupo suplemento (n = 9) comparado ao controle (n = 16), essa diferença não foi estatisticamente significativa. A identificação do estado nutricional dos pacientes com doença vascular deve ser preconizada na prática médica atual, visto a alta prevalência de desnutrição e seu subdiagnóstico, principalmente na população idosa77. A correta identificação da desnutrição e do risco para tal condição fornece dados para intervenções específicas de saúde. Essa abordagem pode mitigar a morbimortalidade desses indivíduos. Mesmo com os recursos tecnológicos disponíveis, avaliar o estado nutricional de pacientes ainda é um desafio na medicina. A SGA pode ser considerada padrão ouro para avaliação do estado nutricional, mesmo em pacientes com DAP. Esse questionário revela-se um instrumento útil, simples, de fácil acesso, prático, de rápida aplicação e boa concordância entre os diferentes estudos analisados. Sugerimos que esforços sejam feitos para a adoção da SGA na prática diária nosocomial nos serviços de cirurgia vascular. Seus resultados podem prover dados fundamentais para a identificação de indivíduos com maiores riscos para desenvolver complicações. Dessa forma, novas intervenções clínicas podem possivelmente ser implementadas.
A SGA parece ser o instrumento mais adequado para avaliação do estado nutricional de pacientes internados com DAP. A prevalência da desnutrição nos pacientes portadores de DAP é alta e há a possibilidade de piora de desfechos clínicos desses pacientes devido à desnutrição. Portanto, é importante que mais pesquisas sejam realizadas no intuito de avaliar o potencial da intervenção no estado nutricional desses pacientes em relação à melhora desses desfechos clínicos.