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Evolução a longo prazo no transplante renal de idosos

Evolução a longo prazo no transplante renal de idosos

Autores:

Paula Ferreira Orlandi,
Marina Pontello Cristelli,
Carolina Araujo Rodrigues Aldworth,
Taina Veras de Sandes Freitas,
Claudia Rosso Felipe,
Helio Tedesco Silva Junior,
Jose Osmar Medina de Abreu Pestana

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol. vol.37 no.2 São Paulo abr./jun. 2015

http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150034

Introdução

O transplante renal é, atualmente, o melhor tratamento disponível para insuficiência renal crônica em estádio terminal (IRC).1,2 Nos países desenvolvidos, além de melhor qualidade de vida, também possibilita sobrevida superior à oferecida pelas demais formas de substituição renal, por menor custo.3-5 Estas vantagens podem ser verificadas inclusive entre receptores com idade maior que 60 anos, independentemente das características do doador.6

No Brasil, ainda poucos idosos são beneficiados por esta modalidade de tratamento, em detrimento da grande participação desta população entre os portadores de insuficiência renal crônica. Por exemplo, em 2009, cerca de 40% dos mais de 50 mil pacientes em diálise eram maiores que 60 anos.7 Entretanto, neste mesmo ano, apenas 10,8% do total de novos inscritos na lista de espera para transplante correspondiam a pacientes idosos, embora tal estatística tenha aumentado 10 vezes desde 1999.8 Finalmente, no Hospital do Rim, responsável por 20% dos transplantes renais realizados no país neste mesmo ano, apenas 12,5% destes foram destinados a pacientes desta faixa etária.9 Conforme dados mais recentes,7 estima-se que o número de pacientes em diálise tenha chegado a 100 mil em 2013, sendo de 30% a proporção de pacientes com mais de 65 anos nos últimos 3 anos, período no qual a população inscrita para transplante nesta mesma faixa etária se manteve abaixo de 15%.8

Fatores como menor expectativa de vida, maior associação com outras comorbidades, risco cirúrgico e potencial de complicações graves têm mantido os idosos à margem do acesso aos transplantes. Porém, não há ainda informações suficientes para justificar esta postura conservadora em relação ao tratamento da insuficiência renal nestes indivíduos, que vêm, de certo modo, sendo privados desta possibilidade, apesar do sistema de abrangência universal atualmente vigente no Brasil para distribuição de órgãos.

O objetivo do estudo foi comparar a evolução clínica e cirúrgica dos grupos idoso versus controle. Perdas de seguimento foram censoradas no seu último dia de registro de acompanhamento. Perda do enxerto foi definida como retorno à diálise ou retransplante.

Métodos

Trata-se de estudo de coorte retrospectivo, de centro único, que incluiu pacientes idosos (definidos como 60 anos de idade ou mais) submetidos a transplante renal entre 1998 e 2010. Foram excluídos receptores de segundo transplante. Para a análise comparativa, foi constituído um grupo controle, com idade maior que 18 e menor que 60 anos, pareado 1:1 por gênero, ano do transplante e tipo de doador (vivo/falecido). As informações foram obtidas por meio de revisão dos prontuários médicos, após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa local.

Análise estatística

As variáveis contínuas foram apresentadas como média e desvio padrão, e as variáveis categóricas como frequência absoluta e porcentagem. A análise comparativa entre dois grupos foi estimada com uso do Teste t de Student não pareado para as variáveis contínuas, e Teste Qui-Quadrado de Pearson ou exato de Fischer para as categóricas. As curvas de sobrevida foram obtidas utilizando-se o método de Kaplan-Meier, e as comparações pelo teste de Log-Rank. Análise de regressão logística foi utilizada para identificar a magnitude da influência de fatores de risco sobre as sobrevidas do paciente e do enxerto e para estimar o risco relativo para as variáveis de interesse. Para a confecção da análise multivariada, utilizamos a técnica de regressão de Cox, baseada em intervalos de confiança de 95%. Entraram no modelo todas as variáveis consideradas de importância clínicoepidemiológica conforme a significância estatística obtida na análise univariada de Cox para cada desfecho avaliado. As variáveis contínuas foram categorizadas para a realização desta análise. A análise estatística foi realizada com o programa SPSS v.22 (SPSS inc., Chicago, IL, EUA). Para todos os testes estatísticos, foi utilizado um nível de significância de 5%.

Resultados

No período estudado, foram realizados cerca de 8.500 transplantes no HRim. Destes, 376 pacientes tinham mais de 60 anos e mantiveram acompanhamento ambulatorial pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Entre estes, 10 receberam retransplante e foram excluídos. Após o pareamento do grupo controle, configurou-se uma amostra total de 732 pacientes. O seguimento mínimo foi de 1 dia, máximo de 10 anos e médio de 5 anos (1876 dias).

Demografia

Os dois grupos foram comparados quanto às diversas variáveis demográficas, conforme a Tabela 1. O grupo idoso apresentou maior frequência de diabetes mellitus como causa de insuficiência renal (26% vs. 12%, p < 0,001), maior porcentagem de pacientes priorizados por falta de acesso vascular (5,7% vs. 2,5%, p = 0,025), maior porcentagem de mulheres com pelo menos uma gestação prévia ao transplante (87% vs. 72%, p = 0,005) e maior média de mismatches HLA com o doador (3,1 vs. 2,6, p = 0,001).

Tabela 1 Características demográficas dos 732 pacientes, divididos entres os grupos idoso e controle 

Idoso Controle p
Número de Pacientes 366 366
Idade, anos ± DP (min-max) 64 ± 3,6 (60-78) 43 ± 10,4 (18-59)
Etnia negra, n (%) 40 (10,9) 38 (10,6) 0,464
Sexo masculino, n (%) 250 (68,3) 251 (68,5) 0,937
Causa da Insuficiência Renal, n (%)
Diabetes mellitus 95 (26) 44 (12)
Doença renal policística 40 (10,9) 25 (6,9)
Glomerulonefrite Crônica 21 (5,7) 56 (15,3)
Hipertensão 49 (13,4) 41 (11,2) < 0,001
Indeterminada 108 (29,5) 160 (43,7)
Diabetes mellitus e Hipertensão 16 (4,4) 6 (1,6)
Causa Urológica 21 (5,7) 23 (6,3)
Outras 16 (4,4) 11 (3,0)
Hemodiálise pré-transplante, n (%) 330 (90,2) 333 (91) 0,606
Tempo em diálise, meses ± DP 50,7 ± 36,1 49,23 ± 39 0,597
Priorização, n (%) 21 (5,7) 9 (2,5) 0,025
Sorologia negativa para CMV, n (%) 18 (4,9) 26 (7,1) 0,345
Mulheres com ≥ 1 gestação, n (%) 101 (87) 83 (72) 0,005
Pacientes com ≥ 1 transfusão, n (%) 217 (59,3) 230 (62,8) 0,324
Painel Total ± DP 8,5 ± 20,2 7,6 ± 19 0,567
Mismatches ± DP 3,1 ± 2 2,6 ± 1,7 0,001
Tipo de Doador (vivo), n (%) 91 (24,9) 101 (27,6) 0,401
Idade do Doador, anos ± DP 45,6 ± 14 42,8 ± 13 0,005
Doador Falecido critério expandido, n (%) 74 (26,9) 60 (22,7) 0,434
Tempo Isquemia Fria, horas ± DP 23,2 ± 6,01 23,55 ± 6,6 0,576
Função Tardia do Enxerto, n (%) 167 (45,6) 132 (36,1) 0,008
Duração, dias ± DP 5,79 ± 11 4,2 ± 8,3 0,036
Indução com Timoglobulina, n (%) 32 (8,7) 34 (9,3) 0,469
Imunossupressão Inicial (FK Pred MF), n (%) 139 (38) 125 (34,2) 0,577
Técnica Cirúrgica (Gregoir), n (%) 204 (56,4) 264 (72,5) < 0,001
Tempo Internação (dias), dias ± DP 17,5 (18.5) 13,6 (11,7) 0,001

DP: Desvio padrão; FK: Tacrolimo; Pred: Prednisona; MF: Micofenolato.

Nos dois grupos, 75% dos pacientes receberam transplante de doador falecido e, destes, 25% preenchiam critérios para doador expandido. A média de idade do doador foi maior no grupo idoso (45,6 vs. 42,8 anos, p = 0,005).

Análise de sobrevida

A sobrevida do paciente foi menor no grupo idoso, em cinco anos (76,6 vs. 87,7%, p = 0.001) e em dez anos (54,8 vs. 84,3%, p < 0,001, Figura 1). A sobrevida global do enxerto foi de 52,9% entre os idosos e 72,2% entre os controles em 5 anos de seguimento (p< 0.001), e de 39,6% entre os idosos e 66,9% entre os controles após 10 anos (p <0,001, Figura 2). Entretanto, a sobrevida do enxerto censurada para óbito foi semelhante entre os dois grupos, tanto em cinco anos (86,6 vs. 75,6% vs. 86,3%, p = 0,782) como após dez anos de acompanhamento (76,1% vs. 81,1%, vs. 73,8% p = 0,888, Figura 3).

Figura 1 Sobrevida actuarial do paciente, segundo os grupos idoso versus controle, pelo método de Kaplan-Meier. A sobrevida do paciente foi menor no grupo idoso, em cinco anos (76,6 vs. 87,7%, p = 0.001) e em dez anos (54,8 vs. 84,3%, p < 0,001) 

Figura 2 Sobrevida actuarial do enxerto renal, segundo os grupos idoso versus controle, pelo método de Kaplan-Meier. A sobrevida global do enxerto foi de 52,9% entre os idosos e 72,2% entre os controles em 5 anos de seguimento (p< 0.001), e de 39,6% entre os idosos e 66,9% entre os controles após 10 anos (p < 0,001) 

Figura 3 Sobrevida actuarial do enxerto renal censurada para óbito do paciente, segundo os grupos idoso versus controle, pelo método de Kaplan-Meier. A sobrevida do enxerto renal censurada para óbito foi semellhante entre os dois grupos, tanto em cinco anos (86,6 vs.75,6% vs. 86,3%, p = 0,782) como após dez anos de acompanhamento (76,1% vs. 81,1%, vs. 73,8% p = 0,888) 

Óbito com enxerto funcionante foi a principal causa de perda do enxerto entre a população idosa, responsável por 65% destas. Para o grupo controle, esta também foi a causa mais comum de perda do enxerto, porém, com frequência significantemente menor (44%, p = 0,023). Entre as demais causas de perda do enxerto, seguiram-se nefropatia crônica, primary non function e rejeição aguda (Tabela 2). Quanto às causas de óbito, a mais frequente foi infecção, seguida de doenças cardiovasculares e neoplasia. Estas causas se distribuíram de maneira semelhante entre os dois grupos (Tabela 2).

Tabela 2 Causas de perda do enxerto renal e óbito do paciente, dividida s entre os grupos idoso e controle 

Idoso Controle Total p
Causas de perda do enxerto renal
Óbito 87 (65,2) 38 (43,7) 125 (56,8)
Nefropatia crônica do enxerto 14 (10,5) 14 (16,1) 28 (12,7)
Primary non function 13 (9,8) 10 (11,5) 23 (10,5) 0.023
Rejeição aguda 9 (6,8) 11 (12,6) 20 (9,1)
Outros 10 (7,5) 14 (16,1) 24 (10,9)
Total 133 (100) 87 (100) 220 (100)
Causas de óbito do paciente
Infecção 50 (51,5) 26 (57,8) 76 (53,5)
Cardiovascular 26 (26,8) 8 (17,8) 34 (23,9)
Neoplasia 7 (7,2) 2 (4,4) 9 (6,4) 0,652
Outros 8 (8,2) 6 (13,3) 14 (9,9)
Desconhecido 6 (6,3) 3 (6,7) 9 (6,3)
Total 97 (100) 45 (100) 142 (100)

Complicações cirúrgicas e clínicas

A tradicional técnica de anastomose à Lich-Gregoir foi utilizada com menor frequência no grupo idoso (56,4 vs. 72,5%, p < 0,001, Tabela 1). Este grupo apresentou maior frequência de complicações cirúrgicas - indivíduos com pelo menos uma complicação (34,7% vs. 23,2%, p = 0.001) - dentre as quais, as seguintes foram diferentes quando analisadas separadamente: deiscência de ferida operatória (12,3 vs. 4,4%, p < 0,001), fístula urinária (6,0 vs. 2,7%, p = 0,030), hérnia incisional (3,0 vs. 0,8%, p = 0,031) e bexigoma (6,8 vs. 2,2%, p = 0,002, Tabela 3).

Tabela 3 Complicações cirúrgicas após o transplante renal, de acordo com os grupos idoso e controle 

Idoso Controle p
(N = 366) (N = 366)
Deiscência, n (%) 45 (12,3) 16 (4,4) < 0,001
Linfocele, n (%) 14 (3,8) 13 (3,8) 0,845
Fístula, n (%) 22 (6,0) 10 (2,7) 0,030
Hematoma, n (%) 12 (3,3) 9 (2,5) 0,507
Hérnia, n (%) 11 (3) 3 (0,8) 0,031
Bexigoma, n (%) 25 (6,8) 8 (2,2) 0,002
Estenose arteria renal, n (%) 18 (4,9) 20 (5,5) 0,739
Rotura, n (%) 3 (0,8) 3 (0,8) 1,0
Trombose, n (%) 8 (2,2) 9 (2,5) 0,806
Enxertectomia, n (%) 19 (5,2) 20 (5,5) 0,869
Estenose uretra, n (%) 5 (1,4) 1 (0,3) 0,101
Total (pacientes com alguma complicação), n (%) 127 (34,7) 85 (23,2) 0,001

A frequência de uso de indução e o regime imunossupressor inicial tiveram distribuição homogênea entre os dois grupos. No grupo idoso, houve maior ocorrência e duração de função tardia do enxerto renal (45,6 vs. 36,1%, p = 0,008; 5,8 vs. 4,2 dias, p = 0,036), e maior tempo de internação hospitalar (17,5 vs. 13,6 dias, p = 0,001; Tabela 1). A incidência de rejeição aguda foi semelhante entre os dois grupos (24,6 vs. 29,5%, p = 0,134). Durante o período de seguimento, o grupo idoso apresentou maior frequência de reinternações (77,3 vs. 70,5%, p = 0,035), de eventos cardiovasculares (12,3 vs. 3,8%, p < 0,001) e de neoplasias (6,8 vs. 1,6%, p < 0,001, Tabela 4). Por outro lado, a tolerabilidade ao regime imunossupressor, avaliada pela necessidade de substituição de pelo menos uma das medicações, mostrou-se semelhante entre os dois grupos (28,7 vs. 24,3%, p = 0,180, Tabela 4).

Tabela 4 Complicações clínicas após o transplante, dividida s de acordo com os grupos idoso e controle 

Idoso Controle p
Rejeição aguda, n (%) 90 (24,6) 108 (29,5) 0,134
Evento cardiovascular, n (%) 45 (12,3) 14 (3,8) < 0,001
Diabetes pós-transplante, n (%) 25 (28) 75 (23,3) 0,186
Neoplasia, n (%) 25 (6,8) 6 (1,6) < 0,001
Reinternação, n (%) 283 (77,3) 258 (70,5) 0,035
Perda do enxerto, n (%) 133 (36,33) 87 (23,8) 0,001
Óbito do paciente, n (%) 97 (26,5) 45 (12,3) < 0,001
Perda do seguimento, n (%) 18 (4,9) 27 (7,4) 0,166
Substituição da imunossupressão, n (%) 105 (28,7) 89 (24,3) 0,180

Na análise de múltiplas variáveis (Tabelas 5, 6 e 7), idade maior que 60 anos entre os receptores associou-se, de maneira independente, a maior risco de óbito (HR 2,191; IC 1,523-3,150; p < 0,001), assim como tipo de doador falecido (HR 1,724; IC 1,211-2,651; p = 0,013) e diabetes mellitus como causa da insuficiência renal (HR 1,507; IC 1,038-2,189; p = 0,031). Em relação ao risco de perda do enxerto renal, as variáveis que impactaram neste desfecho foram: diabetes mellitus como causa da insuficiência renal (HR 1,76; IC 1,205-2,570; p = 0,003) e priorização para o transplante por dificuldade de acesso vascular (HR 2,89; IC 1,205-2,570; p < 0,001). Etnia negra (HR 2,16; IC 1,190-3,926; p = 0,011), sorologia negativa para citomegalovírus pré-transplante (HR 2,04; IC 1,053-3,961; p = 0,035), tempo de internação maior que 10 dias (HR 1,85; IC 1,232-2,779; p = 0,003) foram fatores de risco independentes para a ocorrência de rejeição aguda.

Tabela 5 Análise de hazard proporcional de cox para rejeição aguda (intervalo de confiança de 95%) 

Univariada p Multivariada p
HR IC HR IC
Etnia Negra 1,534 1,034-2,275 0,033 2,161 1,190-3,926 0,011
CMV negativo 1,872 1,177-2,970 0,009 2,043 1,053-3,961 0,035
Função Retardada do Enxerto (NTA) 1,879 1,421-2,485 < 0,001 NS
NTA maior que 10 dias 1,751 1,194-2,568 0,004 NS
Tempo Internação maior que 10 dias 2,764 2,025-3,774 < 0,001 1,85 1,232-2,779 0,003

Tabela 6 Análise de hazard proporcional de cox para perda do enxerto (intervalo de confiança de 95%) 

Univariada p Multivariada p
HR IC HR IC
Idade 1,696 1,294-2,224 < 0,001 NS
Diabetes causa da IRC 1,866 1,392-2,501 < 0,001 1,76 1,205-2,570 0,003
Priorização 2,238 1,322-3,788 0,746 2,891 1,205-2,570 < 0,001
Transfusão 1,383 1,037-1,845 0,027 NS
Doador Falecido 1,825 1,303-2,556 < 0,001 NS
Timoglobulina 1,593 1,062-2,390 0,024 NS
Função Retardada do Enxerto (NTA) 2,208 1,689-2,885 < 0,001 NS
NTA maior que 10 dias 1,438 1,006-2,055 0,046 NS
Tempo de Internação maior que 10 dias 1,937 1,460-2,570 < 0,001 NS

Tabela 7 Análise de hazard proporcional de cox para óbito (intervalo de confiança de 95%) 

Univariada p Multivariada p
HR IC HR IC
Idade 2,426 1,702-3,459 < 0,001 2,25 1,688-3,437 < 0,001
Tempo de HD maior que 36 meses 1,528 1,089-2,144 0,014 NS
Diabetes Causa da IRC 1,863 1,298-2,674 0,001 NS
Doador Falecido 1,81 1,186-2,761 0,006 NS
Função Retardada do Enxerto (NTA) 2,033 1,458-2,833 < 0,001 1,914 1,368-2,679 < 0,001
Tempo Internação maior que 10 dias 1,502 1,066-2,116 0,02 NS

Discussão

Este é um dos poucos estudos brasileiros comparando a evolução do transplante renal em receptores idosos versus não idosos em um seguimento de 10 anos. Óbito do paciente foi o fator responsável pela diferença significante entre as curvas de sobrevida global do paciente e do enxerto. Entretanto, a idade avançada não constituiu fator independente de pior sobrevida do aloenxerto, conforme demonstrado nas curvas de sobrevida do enxerto censurada por óbito (semelhante para idosos e não idosos) e na análise de múltiplas variáveis (idade não determinante para perda do enxerto).

Neste estudo, a meia-vida do transplante no grupo idoso foi de 8,2 anos, enquanto no grupo controle foi maior que 10 anos. Este resultado é semelhante ao encontrado em grande levantamento da população americana transplantada na mesma época: 8 a 8,8 anos entre 2000-2005.10

Quanto à sobrevida do enxerto censurada por óbito, estudos com populações menores ou com período de acompanhamento mais curto também demonstram a semelhança de evolução entre grupos jovens e idosos11 e, em alguns casos, superior para os idosos.12,13 Provavelmente, como observado no presente estudo, outras causas de perda, como rejeição aguda e nefropatia crônica do enxerto, mais frequentes no grupo mais jovem, contrabalançam o efeito do óbito sobre a sobrevida do enxerto no grupo idoso.

Além de idade, presença de diabetes como causa da insuficiência renal e o tipo de doador falecido foram fatores de risco independentes para óbito do paciente (Figuras 4 e 5). Entre estes dois fatores, chama atenção a importância de diabetes mellitus, cuja frequência foi duas vezes maior entre os pacientes idosos. Ao dividirmos nossa amostra em quatro subgrupos distintos por idade e diabetes como causa da insuficiência renal (Figura 4), observamos a semelhança entre a sobrevida dos pacientes idosos não diabéticos e jovens diabéticos após 5 anos de evolução, confirmando a importância desta comorbidade na má evolução do paciente. Após 5 anos, nessa amostra, deixa de existir a semelhança entre essas duas curvas, o que pode ter relação com o pequeno número de pacientes remanescentes após este período.

Figura 4 Sobrevida actuarial do paciente segundo os subgrupos: idoso diabético, idoso não diabético, controle diabético, controle não diabético; pelo método de Kaplan-Meier - A sobrevida do paciente idoso não diabético (78,6%) foi semelhante à do controle diabético (78,4%) após 5 anos de evolução. Na comparação entre os quatro grupos (idoso diabético 70,3%; controle não diabético 89%), houve diferença significativa (p < 0.001) 

Figura 5 Sobrevida actuarial do paciente segundo os subgrupos: idoso com doador falecido, idoso com doador vivo, controle com doador falecido, controle com doador vivo; pelo método de Kaplan-Meier - A sobrevida do paciente idoso após 5 anos de evolução foi semelhante com doador falecido (75,3%) ou vivo (78,3%), porém, inferior à dos pacientes do grupo controle com doador falecido (87,6%) ou vivo (87,7%) (p < 0.006) 

Em relação à sobrevida do enxerto, os fatores determinantes para este desfecho foram priorização por dificuldade de acesso vascular para diálise e diabetes mellitus como causa da insuficiência renal. Ambos os fatores foram encontrados com maior frequência entre os receptores idosos (priorização 5,7 vs. 2,5%, p = 0,025; diabetes mellitus 26 vs. 12%, p < 0,001). Esse achado corrobora para a relevância de diabetes mellitus como condição clínica decisiva na evolução do transplante.

Ao contrário dos estudos nos quais rejeição aguda tem influência determinante na sobrevida do enxerto a longo-prazo,14,15 não observamos essa correlação nos nossos dados. Vale ressaltar que consideramos todos os eventos clínicos que determinaram tratamento para rejeição aguda, independentemente de comprovação histológica e, além disso, consideramos apenas o primeiro episódio, 72% dos quais ocorreram nos primeiros 6 meses após o transplante. Assim como demonstrado em estudos anteriores, a ocorrência de episódios precoces de rejeição e com boa resposta à terapia possivelmente justifica a pouca repercussão clínica deste evento.16

Houve mais complicações pós-operatórias (deiscência, fístula, hérnia e bexigoma) entre os idosos e também diferença na técnica cirúrgica aplicada: 72% dos jovens foram submetidos à técnica convencional (Lich-Gregoir) enquanto 56% dos idosos foram submetidos a essa técnica. Em outros estudos,17-19 a frequência de complicações urológicas varia de 1,8 a 20,8%, e está relacionada principalmente ao sexo masculino do receptor e doador falecido, características para as quais não houve diferença nas grupos analisados.

Em nosso serviço, a técnica cirúrgica é decidida no intraoperatório e não há avaliação pré-operatória sistemática para os pacientes. Menor uso da técnica convencional sugere maior dificuldade cirúrgica para a população idosa. Meta-análise recente mostra a associação entre a técnica convencional e menor risco de fístula urinária, assim como constatamos aqui.20 É possível que o maior número de complicações cirúrgicas tenham influenciado o tempo de internação, maior para o grupo idoso, em média 17,5 dias contra 13,6 dias entre os mais jovens (p < 0,001), o que aumenta custo e riscos para o paciente.21,22 Desse modo, é possível que uma avaliação urológica pré-operatória regular beneficie o grupo idoso particularmente.

A incidência geral de pelo menos um episódio de rejeição aguda nesta população foi de 27% em 10 anos. Os fatores de risco independentemente associados a este desfecho na análise de múltiplas variáveis foram etnia negra, sorologia negativa para CMV e tempo de internação maior que 10 dias, características para as quais os grupos idoso e controle foram semelhantes. Apesar da tendência de menor incidência de rejeições entre pacientes idosos em outros estudos,12,23,24 não houve diferença significativa em nossa amostra. Entretanto, para fatores de risco tradicionalmente associados à ocorrência de rejeição aguda como gestação, mismatches e função tardia do enxerto, o grupo idoso foi mais exposto. É possível que uma amostra maior seja necessária para orientar conclusões nesse sentido.

Em nosso estudo, a ocorrência de eventos cardiovasculares pós-transplante foi três vezes maior entre os idosos. Consideramos que diabetes -causa da IRC mais comum nesse grupo que entre os jovens -tenha sido um dos fatores responsáveis por esta má evolução, além disso, fatores não convencionais associados à inflamação e calcificação coronariana como maior tempo em diálise podem ter corroborado para a maior frequência de eventos coronarianos nesse grupo. Entre os idosos, 26 óbitos (26,8%) foram causados por doença cardiovascular enquanto apenas oito (17,8%) dos pacientes do grupo controle faleceram por este tipo de causa.

A frequência total de neoplasias malignas observada foi de 4,23%. Entre os pacientes idosos, neoplasias foram quatro vezes mais frequentes que no grupo mais jovem, e, além disso, causaram duas vezes mais óbitos. Possíveis mecanismos associados à maior incidência de neoplasia na população idosa incluem o tempo requerido para carcinogênese, aumento da exposição dos tecidos aos carcinógenos do ambiente e imunoscenescência.25

Como nos demais estudos retrospectivos de análise de banco de dados, a confiabilidade dos dados disponíveis no prontuário médico ou até ausência deles limitam a abrangência dos resultados. Em segundo lugar, o fato de o estudo ser de centro único limita a extrapolação dos resultados para outras populações.

Em conclusão, neste coorte retrospectivo de centro único, a idade avançada per se, ao se excluir óbito do paciente como causa de perda do enxerto, não constituiu fator independente de pior evolução do transplante renal em longo prazo, quando comparado a uma população mais jovem, pareada por tipo de doador, imunossupressão e ano do transplante. Entretanto, a maior prevalência de diabetes mellitus foi fator determinante de maior índice de mortalidade entre esse grupo, determinando piores resultados em termos de sobrevida global.

REFERÊNCIAS

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