versão impressa ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.30 no.7 Rio de Janeiro jul. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00176113
O padrão de consumo alimentar e de prática de atividade física da população brasileira sofreu intensa modificação nas últimas décadas. Em paralelo a redução da atividade física no cotidiano, verificou-se tendência de substituição do consumo de alimentos tradicionais da dieta (como o arroz e o feijão) por produtos ultraprocessados 1. Essa mudança está diretamente relacionada com o aumento da prevalência de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) na população brasileira 2,3.
Entre os principais fatores associados a esta mudança no padrão alimentar está o aumento do hábito de realizar refeições fora do domicílio 4,5,6. Evidências associam o aumento da fre- quência de consumo alimentar fora do lar à piora da qualidade da dieta dos indivíduos 7,8,9,10. A comparação de refeições ou alimentos servidos dentro e fora dos domicílios evidencia a pior qualidade nutricional do consumo alimentar realizado fora do lar 11, sendo esse frequentemente associado a desfechos adversos tanto em estudos nacionais quanto internacionais 12,13,14.
Entretanto, mesmo entre os países desenvolvidos, onde o consumo de alimentos fora de casa já ocupa um papel de destaque na alimentação há vários anos, poucos estudos se voltam à caracterização dessa fração do consumo alimentar, seus desfechos e determinantes. A própria definição de alimentação fora do lar ainda é ambígua e analisada de diferentes formas nos inquéritos dietéticos 15. Nos Estados Unidos, a participação do gasto com alimentação fora do domicílio na despesa total com alimentação aumentou nas últimas décadas, passando de menos de 20% em 1970 para 38% na década de 1990 16. No mesmo sentido, a participação calórica da alimentação fora do lar saltou de 18% do total da dieta em 1977 para 32% das calorias em 1995 4.
No Brasil, dados do inquérito de consumo alimentar individual realizado junto da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009 (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no qual se obtiveram dois registros do consumo alimentar em amostra representativa da população nacional, indicam que uma a cada quatro calorias consumidas pela população brasileira já provém de alimentos e bebidas consumidos fora do lar 17. Entretanto, tais informações não foram coletadas em edições anteriores da pesquisa, de modo que o estudo da tendência do consumo alimentar fora do lar no país só pode ser feito por meio de análises das despesas da população com alimentação fora do lar e não do consumo efetivo de alimentos 18.
Devemos mencionar ainda que a parcela da alimentação realizada fora do domicílio tende a aumentar com a elevação da renda dos indivíduos, sendo o efeito do crescimento do poder aquisitivo especialmente importante entre os indivíduos com menor nível de renda 5,18,19. Essa informação tem sua relevância ampliada tendo em vista que grande parte do crescimento econômico mundial na última década se restringiu aos países em desenvolvimento econômico como China, Brasil e Rússia, locais onde o hábito de consumir alimentos fora do domicílio ainda não se encontrava plenamente consolidado.
O presente estudo tem como objetivo descrever a evolução dos gastos com alimentação fora do domicílio no Brasil no período entre 2002/2003 e 2008/2009 e avaliar a influência da renda sobre a participação da alimentação fora do domicílio no Brasil no intuito de analisar tendências futuras desse comportamento.
Dados coletados pelas POF realizadas pelo IBGE entre julho de 2002 e junho de 2003 e entre maio de 2008 e maio de 2009 em uma amostra probabilística representativa do conjunto de domicílios do país serviram de base para esse estudo. No inquérito realizado em 2002/2003 foram estudados 48.470 domicílios e no inquérito de 2008/2009 foram estudados 55.970 domicílios. Em ambas as ocasiões utilizaram-se plano amostral complexo, por conglomerados, com sorteio dos setores censitários em um primeiro estágio e de domicílios em um segundo. Para o sorteio dos setores censitários, a pesquisa procedeu, previamente, ao agrupamento dos setores censitários do país, visando à obtenção de estratos de domicílios com homogeneidade geográfica e socioeconômica. Neste agrupamento foram considerados a localização dos setores bem como o nível socioeconômico das famílias residentes, de forma a constituir 443 estratos de domicílios em 2002/2003 e 550 em 2008/2009. Os domicílios, em cada setor, foram sorteados por amostragem aleatória simples, sem reposição. As entrevistas aos domicílios sorteados dentro de cada estrato foram distribuídas uniformemente ao longo dos quatro trimestres de duração do estudo, de forma a reproduzir, em cada estrato, a variação sazonal de rendimentos e aquisições de alimentos 17,20.
A principal informação da POF analisada neste estudo compreende os registros de aquisições de alimentos e bebidas para consumo fora do domicílio anotado em uma caderneta, individualmente pelos próprios moradores dos domicílios estudados durante sete dias consecutivos. O curto período de referência utilizado para o registro das despesas com alimentação em cada domicílio não permite que se conheça o padrão usual de aquisição de alimentos em cada um dos domicílios estudados. Assim, neste trabalho, optamos por utilizar como unidade de estudo agregados de domicílios que correspondem aos domicílios estudados em cada um dos estratos amostrais da pesquisa de 2002/2003 e 2008/2009. Esse procedimento assegura unidades de estudo com grande amplitude de variação geográfica e socioeconômica e cujo padrão anual de gastos com alimentos pode ser conhecido com grande precisão.
Os gastos com alimentação de cada indivíduo pertencente a um mesmo domicílio (incluindo alimentos e bebidas) foram inicialmente somados. Em seguida, estimou-se, isoladamente, o gasto com alimentação realizado dentro e fora do domicílio.
A quantidade total adquirida de cada alimento ou bebida para consumo no domicílio foi convertida em energia (kcal) – com auxílio da Tabela Brasileira de Composição de Alimentos 21 e, para alimentos não presentes nessa tabela, utilizou-se a tabela oficial de composição nutricional dos Estados Unidos 22. A disponibilidade domiciliar de alimentos foi estabelecida somando-se o valor energético de todas as aquisições de alimentos e bebidas feitas em um mesmo domicílio.
Após esses procedimentos os dados dos domicílios pertencentes a um mesmo estrato foram somados e divididos pelo total de moradores do estrato a fim de expressar valores per capita de gastos mensais e de disponibilidade calórica domiciliar. Calculou-se então a participação da alimentação fora do domicílio no gasto total com alimentação.
A renda média no estrato (R$/per capita/mês) foi obtida dividindo-se a somatória do total de rendimentos mensais de todos os domicílios que integram o estrato pelo total de moradores no estrato, procedimento semelhante também foi adotado para os gastos com alimentação. Os valores de renda e gastos do inquérito de 2002/2003 foram inflacionados de modo a representar valores compatíveis com aqueles obtidos no inquérito de 2008/2009. Calculou-se a média de anos de escolaridade dos chefes de domicílio, além da proporção de indivíduos com idade inferior a cinco anos e superior a 64 anos. A macrorregião geográfica onde se localizava o estrato (Norte e Nordeste, e Centro-Sul) e sua situação (capital, região metropolitana, outras áreas urbanas e área rural) complementaram a caracterização das unidades de estudo.
Inicialmente investigou-se a variação da participação dos gastos com alimentação fora do domicilio entre 2002/2003 e 2008/2009 para o conjunto total da população e segundo estratos compostos por características sociodemográficas e econômicas. Teste de diferença entre duas médias (teste t de Student) para amostras independentes foi utilizado para averiguar a existência de diferenças significativas no período estudado.
Utilizando apenas a base de dados do inquérito realizado em 2008/2009, analisou-se também a associação entre a participação da alimentação fora do domicilio nos gastos totais com alimentação e a renda mensal per capita, ajustada para as possíveis variáveis de confusão (características sociodemográficas dos estratos). A análise foi realizada por meio de modelos de regressão linear múltiplos para estimar os coeficientes de elasticidade. Os coeficientes de elasticidade indicam o percentual de variação na participação da alimentação fora do domicilio frente a 1% de variação na renda (elasticidade- renda), ajustado pelas variáveis de confusão. O coeficiente de elasticidade corresponde ao coeficiente de regressão (β) da variável explanatória obtido em modelo de regressão múltipla no qual tanto a variável dependente (a participação da alimentação fora do domicílio no estrato) quanto a independente (renda mensal per capita no estrato) sofreram transformação logarítmica (modelo log-log). Essa estratégia é frequentemente utilizada em estudos de demanda de alimen- tos 23,24. Assim, o modelo geral utilizado em nosso estudo pode ser descrito como:
Ln(%GAfd) = α + β1 Ln(R) + cn(VC)
onde: %GAfd: é a participação da alimentação fora do domicilio nos gastos totais com alimentação; R: é a renda mensal per capita (R$); VC: são variáveis de controle.
Para o modelo de regressão linear e de elasticidade, foram analisadas como potenciais variáveis de confundimento para a associação entre renda e a alimentação fora de casa: macrorregião geográfica e situação do estrato; média dos anos de escolaridade dos chefes de domicílio; e proporção de crianças com menos de cinco anos, e de adultos com 65 ou mais anos de idade. Para o modelo final foram incluídas apenas as variáveis que alteraram em pelo menos 5% a magnitude do coeficiente de regressão da participação dos gastos com alimentação fora do lar sobre a renda. Uma extensão do modelo geral de regressão incluindo termo quadrático para renda mensal per capita foi testada visando à identificação de possível relação não linear entre essa variável e a participação da alimentação fora do domicilio nos gastos totais com alimentação.
Todos os procedimentos analíticos deste estudo foram executados com o aplicativo Stata versão 12.1 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos) e levam em conta os fatores de ponderação das POF do IBGE.
A população estudada residia em sua maior parte na área urbana (cerca de 70%) e na região Centro- Sul do país. No período estudado, verificou-se aumento significativo de renda da população, de R$ 763,38 per capita/mês em 2002/2003 para R$ 968,55 per capita/mês em 2008/2009. O mesmo observou-se com os gastos totais com alimentação (aumento significativo de R$ 116,96 per capita/mês para R$ 133,74 per capita/mês) (Tabela 1).
Tabela 1 Caracterização sociodemográfica das unidades de estudo. Brasil, 2002/2003 e 2008/2009.
Características sociodemográficas | 2002/2003 (n = 443) | 2008/2009 (n = 550) |
---|---|---|
Renda mensal [R$/per capita] (erro-padrão) | 763,4 (56,8) * | 968,5 (47,5) ** |
Gasto total com alimentação mensal [R$] (erro-padrão) | 116,9 (3,5) * | 133,7 (3,7) ** |
Escolaridade do chefe da família [anos de estudo] (erro-padrão) | 6,7 (0,2) | 7,5 (0,1) ** |
Número médio de moradores por domicílio (erro-padrão) | 3,6 (0,3) | 3,3 (0,2) |
Disponibilidade domiciliar de alimentos [kcal/per capita/dia] (erro-padrão) | 1814,7 (33,6) | 1719,6 (28,9) |
Área (%) | ||
Município da capital do estado | 23,1 | 23,9 |
Região metropolitana *** | 12,9 | 12,8 |
Demais áreas urbanas | 48,8 | 47,7 |
Rural | 15,2 | 15,6 |
Região (%) | ||
Centro-Sul | 68,3 | 67,0 |
Norte/Nordeste | 31,7 | 32,9 |
* Valores inflacionados para o período de 2008/2009;
** p < 0,05; teste t de Student;
*** Exceto município da capital, mencionado em categoria própria.
Entre 2002/2003 e 2008/2009, constatou-se aumento significativo da participação da alimentação fora do lar nos gastos totais com alimentação para o conjunto da população brasileira (de 22,2% a 27,9%) concentrado entre os estratos intermediário e superior de renda mensal e de escolaridade do chefe do domicílio. Do mesmo modo, verificou-se aumento significativo da participação da alimentação fora do lar nos gastos totais com alimentação em todas as regiões e áreas geográficas do país. Conforme esperado, em ambos os inquéritos, a aquisição de calorias para consumo no domicílio apresentou associação inversa com a parcela dos gastos com alimentação feitos fora do domicílio (Tabela 2).
Tabela 2 Evolução da participação do gasto com alimentação fora do domicílio nos gastos totais com alimentação, segundo características sociodemográficas da população. Brasil, 2002/2003 e 2008/2009.
Características sociodemográficas | Participação da alimentação fora do domicílio no gasto total com alimentação (%) | ||
---|---|---|---|
2002/2003 (A) | 2008/2009 (B) | Variação (B-A) | |
Renda mensal (R$/per capita) | |||
1o terço | 15,9 * | 17,3 | 1,3 |
2o terço | 20,1 * | 26,8 | 6,8 ** |
3o terço | 28,2 * | 34,4 | 6,2 ** |
Escolaridade do chefe da família (anos completos de estudo) | |||
1o terço | 15,3 | 15,6 | 0,3 |
2o terço | 20,2 | 25,2 | 5,0 ** |
3o terço | 28,5 | 34,9 | 6,4 ** |
Disponibilidade domiciliar de alimentos (kcal/per capita/dia) | |||
1o terço | 24,1 | 31,5 | 7,4 ** |
2o terço | 21,9 | 26,9 | 5,0 ** |
3o terço | 17,7 | 21,5 | 3,8 ** |
Área | |||
Município da capital do estado | 28,1 | 34,8 | 6,7 ** |
Região metropolitana *** | 22,6 | 33,6 | 11,0 ** |
Demais áreas urbanas | 20,4 | 26,8 | 6,3 ** |
Rural | 12,4 | 16,1 | 3,7 ** |
Região | |||
Centro-Sul | 23,1 | 31,5 | 8,4 ** |
Norte/Nordeste | 17,4 | 20,5 | 3,1 ** |
Total | 22,2 | 27,9 | 5,7 ** |
* Valores inflacionados para o período de 2008/2009;
** p < 0,05; teste t de Student;
*** Exceto município da capital, mencionado em categoria própria.
O aumento da renda exibiu associação direta com gastos com alimentação fora do domicílio, mesmo após controle das variáveis de confusão. A cada incremento de 10% na renda resulta em uma elevação de 3,5% na participação da alimentação fora do domicílio nos gastos totais com alimentação.
A Figura 1 descreve valores preditos para a participação da alimentação fora do domicílio nos gastos totais com alimentação ao longo da faixa de variação da renda mensal per capita em 2008/2009. Tais valores são fornecidos por um modelo de regressão que inclui um termo simples e um termo quadrático para a renda familiar (ambos significativos com p < 0,05), além de controlar para variáveis sociodemográficas (área – capital/região metropolitana, restante da área urbana e área rural do estrato de domicílios –, número médio de moradores no domicílio, proporção de moradores com idade ≥ 65 anos). Nota-se que elasticidade-renda, (responsável pela inclinação da linha de tendência na figura) atinge seu valor máximo (0,63) no menor valor de renda (R$ 152,30 per capita/mês). Com o aumento da renda familiar, a elasticidade-renda diminui progressivamente até ficar próxima a zero (0,07) entre os indivíduos do extremo superior da distribuição de renda (R$ 8.248,58 per capita/mês). Isso implica em uma intensa elevação da participação da alimentação fora do domicílio nos gastos totais com alimentação com o aumento do nível de renda, especialmente entre as famílias de menor nível econômico.
Figura 1 Valores preditos * para a participação da alimentação fora do domicílio nos gastos totais com alimentação ao longo do espectro de variação da renda mensal per capita. Brasil, 2008/2009.
Modelos independentes para as regiões Centro-Sul e Norte/Nordeste foram testados, mas não apresentaram resultados distintos dos encontrados para o total dos domicílios (dados não apresentados).
A partir do registro detalhado das aquisições de alimentos feitos pelas POF realizadas em 2002/2003 e 2008/2009 observou-se aumento da participação da alimentação fora do domicílio nas despesas totais com alimentação no país no período estudado. Esse aumento se concentrou nos estratos de domicílios de maior nível econômico (níveis superiores de renda per capita e de escolaridade do chefe do domicílio), mas mostrou-se presente em todas as regiões e áreas do país. Utilizando apenas os dados do inquérito mais recente (2008/2009) observou- se associação positiva entre a renda mensal per capita da população e a parcela da alimentação feita fora do domicílio (10% de aumento na renda média da população acarretariam em aumento de 3,5% na participação das despesas com alimentação fora do domicílio nas despesas totais com alimentação). Ainda que sempre positivo, o efeito da renda sobre a participação da alimentação fora do domicílio diminui com a elevação da renda.
A preocupação com o aumento do consumo alimentar fora do domicílio, verificado em nossos resultados, se justifica pela redução da qualidade da alimentação associada a esse comportamento. Evidências indicam que em diversos países a alimentação preparada fora do domicílio tende a ter maior densidade energética, gordura saturada e menor teor nutricional do que a comida preparada dentro do domicílio 6,5,10,25,26, de modo que tal hábito tem sido frequentemente associado ao ganho excessivo de peso e assim é apontado como um dos fatores responsáveis pela epidemia de sobrepeso e obesidade em crianças e adultos 4,8,9,27,28. O mesmo cenário tem sido descrito no Brasil no período 2008/2009, onde verificou-se que indivíduos que relataram consumir alimentos fora do lar estiveram associados com maior consumo energético total da dieta 29. Adicionalmente, o aumento do tamanho das porções das refeições servidas em restaurantes e redes de fast-food encorajam ainda mais o consumo excessivo de alimentos 30,31. Alguns trabalhos demonstram que o hábito de se alimentar fora do domicílio está associado a um maior consumo de gordura saturada, colesterol e sódio, e a diminuição do consumo de fibras, cálcio e ferro, evidenciando ainda mais os riscos desse comportamento pra o desenvolvimento de diversos agravos a saúde, como doenças cardiovasculares e certos tipos de câncer 8,11.
O presente estudo avança em relação ao conhecimento existente a respeito da alimentação fora do domicílio no Brasil ao analisar, pela primeira vez, a tendência de curto prazo desse comportamento utilizando-se de amostras representativas do conjunto da população nacional. Além disso, a análise da associação entre o rendimento das famílias e a participação da alimentação fora do domicílio traz importantes informações a respeito do futuro desse comportamento no país, tendo em vista a melhora na condição de renda da população prevista para a próxima década 32. Ainda, o controle estatístico adotado nessa análise (de atributos sociodemográficos que poderiam atuar como fatores de confusão ou de modificação de efeito para a associação entre alimentação fora do domicílio e a renda familiar) contribui fortemente para a boa qualidade dos resultados obtidos. Contudo, com relação a este aspecto, como em qualquer estudo observacional, não se pode descartar a possibilidade de existência de fatores de confusão não considerados em nossa análise.
A alimentação fora do lar apresentou grande importância nas despesas com alimentação das famílias do país (quase um terço da despesa total com alimentação). Entre os fatores que podem explicar a maior participação dos gastos com alimentação fora do domicílio está a expansão de políticas ligadas à alimentação coletiva como os restaurantes populares e cozinhas populares, que oferecem refeições subsidiadas para diferentes populações 33. Na última década, houve também um aumento no emprego formal e na renda do brasileiro, o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) quase dobrou o número de trabalhadores participantes na última déca- da 34, sendo que grande parte destes trabalhadores recebem como benefício vale-refeição para utilizar em restaurantes conveniados. Dados da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA) 35 mostram que o mercado de alimentação fora do domicílio apresentou crescimento médio anual, a partir de 2002, superior a 10%. Apesar da importância crescente da alimentação fora do domicílio, ainda são poucos os estudos no Brasil que analisam esta questão, principalmente a análise dos diferentes locais de realização da refeição 36. A abordagem por local de consumo, em estudos da epidemiologia nutricional, ganha ainda mais relevância ao se levar em conta que em um período relativamente curto, cerca de cinco anos, a magnitude do aumento desse fenômeno foi de 25%. Além disso, nos domicílios de maior renda e nas capitais de estados do país (e suas regiões metropolitanas) o gasto com alimentação fora do domicílio já ultrapassa 30% das despesas totais com alimentação, se aproximando de valores apresentados por países desenvolvidos. Este resultado vai ao encontro de outro trabalho realizado com a POF que mostrou o aumento do gasto com alimentação fora do lar em função de dez classes de renda, porém sem o ajuste por características sociodemográficas das famílias apresentadas nos estratos 37,38,39,40.
Assim como já verificado em estudos semelhantes sobre o tema 18,41, o nível de renda dos indivíduos se mostrou altamente relacionado ao consumo fora do lar. Nossos resultados confirmam essa associação e também indicam o aumento da discrepância entre os níveis extremos de renda, já verificada no inquérito de 2002/2003 18, uma vez que aumentos significativos na parcela da alimentação realizada fora do lar foram constatados apenas entre os indivíduos no nível intermediário e superior de renda. Esse cenário se explica possivelmente pelo maior custo direto da alimentação fora do domicílio (devido a despesas adicionais com preparo, armazenamento e comercialização dos alimentos), um importante impeditivo para o aumento desse comportamento em famílias de baixa renda.
De modo semelhante, a participação da alimentação fora do domicílio também tendeu a ser maior nas áreas com nível mais elevado de urbanização (capitais de estado e regiões metropolitanas). Essa situação pode ser explicada tanto pelo maior nível de renda dos moradores dessas áreas quanto pela maior oferta de restaurantes e serviços de alimentação que facilitam o consumo de alimentos fora do lar. Além disso, nessas áreas, é comum que, principalmente entre os indivíduos adultos, seja realizada ao menos uma refeição fora do lar durante o horário de trabalho, devido à dificuldade de deslocamento entre o trabalho e a residência 19.
A principal limitação do presente estudo se relaciona ao fato de a POF 2002/2003 não possibilitar a identificação da quantidade de alimentos verdadeiramente consumida (ou adquirida) fora do domicílio. Por essa razão, nesse estudo, analisou-se a alimentação fora do domicílio por meio de sua participação nos gastos totais com alimentação e não do consumo alimentar propriamente dito. Ainda assim, não há razões para se crer que o sentido das relações encontradas pudesse ser diferente caso tivesse sido possível avaliar propriamente a aquisição de alimentos para consumo fora do lar. Uma vez que a parcela dos gastos com alimentação feita fora do domicílio se relacionou negativamente com a quantidade de calorias adquirida para consumo no domicílio, tanto no inquérito de 2002/2003 quanto no de 2008/2009, é aceitável crer que os gastos ofereçam uma boa aproximação da quantidade de alimentos efetivamente consumida fora do lar. Outra possível limitação diz respeito à realização de despesas para aquisição de gêneros a serem consumidos por moradores de domicílios outros que aquele em que reside o executor da despesa (informação presente entre os dados da POF do IBGE). Uma vez que essas despesas (cerca de 0,33% do total) tenham como beneficiários unidades de consumo pertencentes ao próprio estrato amostral do executor da despesa (adotado como unidade de estudo desse trabalho), o efeito dessa limitação seria minimizado. A grande homogeneidade econômica e geográfica dos estratos faz com que essa seja uma hipótese fortemente possível, ainda que sua confirmação não possa ser executada.
Por fim, os resultados deste estudo destacam o grande aumento da alimentação fora do lar no país entre 2002/2003 e 2008/2009 e a importante influência da renda sobre esse comportamento. Isso sugere que uma evolução favorável da renda, principalmente nos estratos mais pobres da população, acarretará aumentos futuros da participação da alimentação realizada fora do domicílio ainda mais intensos do que aquele verificado nesse estudo.