versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.1 São Paulo jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150016
Tradicionalmente, a maioria dos estudos sobre insuficiência renal aguda (IRA) grave em pacientes críticos enfoca os desfechos de curto prazo, muitas vezes avaliados no momento da alta hospitalar. O risco de mortalidade associada a IRA está diminuindo, mas ainda permanece em níveis inaceitavelmente elevados.1,2 Dessa forma, a IRA grave não deve mais ser vista simplesmente como um indicador da gravidade global da doença. O rim em falência pode apresentar efeitos independentes importantes sobre o desfecho que podem se estender para além da alta hospitalar.3 Portanto, a presente revisão tem como foco os desfechos de longo prazo da IRA em pacientes críticos, com ênfase na sobrevida e recuperação renal.
A fim de detectar publicações recentes (2000 até o presente) sobre desfechos de longo prazo pós-IRA, foi conduzida uma ampla pesquisa bibliográfica através do Pubmed e do MEDLINE. Os termos de pesquisa utilizados foram acute kidney injury, long-term, mortality, renal recovery e prognosis (insuficiência renal aguda, longo prazo, mortalidade, recuperação renal e prognóstico), isoladamente e em combinação. Todos os documentos identificados foram artigos completos redigidos em inglês. Procuramos outros trabalhos relevantes a partir das listas de referências dos artigos identificados.
Vários estudos documentaram a sobrevida de longo prazo de indivíduos acometidos por IRA grave, mais especificamente em associação a internação em UTI. Muitos dos que relatam desfechos de longo prazo não permitem generalizações, pois apresentam vieses de seleção devidos à inclusão de pacientes de uma única instituição, de UTIs clínicas e cirúrgicas ou de pacientes não-críticos. Da mesma forma, muitos desses estudos tinham amostras reduzidas ou eram retrospectivos. Apenas um estudo apresentou uma revisão sistemática. Além disso, a evolução da IRA grave que de outra forma exigiria a introdução de TRS pode influenciar significativamente a decisão de retirada de suporte vital e afetar as reais estimativas de mortalidade.4
Esses fatores contribuem para as consideráveis diferenças observadas nas taxas de mortalidade a longo prazo relatadas nos estudos e, portanto, precisam ser considerados nas inferências feitas a respeito de sobrevida a longo prazo.
Quase trinta estudos relatam taxas de sobrevida pós-alta de 90 dias a dez anos, com mortalidade estimada entre 15% e 74%.5-33 Aos 90 dias, a mortalidade estimada ficou entre 45% e 74%,5-10,16-20 mas quando restrita a pacientes críticos a taxa foi de aproximadamente 60%.5-8,16-20 Em um estudo de base populacional que incluiu todos os casos de IRA grave que necessitaram de TRS atendidos em todas as UTIs de uma regional de saúde, Bagshaw et al.5 estimaram a mortalidade de 90 dias em 60%. Aos seis meses, foi relatada mortalidade acumulada entre 55% e 73%.7-9 Em um grande estudo retrospectivo, Morgera et al.10 relataram os desfechos de longo prazo de uma coorte de pacientes críticos com IRA grave em TRS. A mortalidade hospitalar foi de 69% e a probabilidade de sobrevida nos primeiros seis meses após a alta foi de 77%. As estimativas de mortalidade em um ano variaram entre 15% e 65%.5-12 Stevens et al.29 descreveram taxas de mortalidade em dois e três anos de 69% e 72%, respectivamente. Recentemente, Gallagher et al.14 identificaram que diferentes modalidades de TRS não afetaram o desfecho de longo prazo de pacientes com IRA. Após dois e três anos, 62% e 63% dos pacientes haviam ido a óbito nos grupos de diálise de baixa e alta intensidade, respectivamente (RR 1,04; CI 95% 0,96-1,12; p = 0,49). No seguimento de cinco anos após internação em UTI, entre 55% e 70% dos indivíduos diagnosticados com IRA grave haviam ido a óbito.8,17,20,25 Schiffl et al.17 acompanharam 226 pacientes com IRA grave (definida como necessidade de diálise) e ausência de DRC anterior e relataram uma taxa de mortalidade de 75% após cinco anos. Por sua vez, Liano et al.15 avaliaram 177 pacientes que sobreviveram a episódios de necrose tubular aguda (NTA) de moderada a grave e relataram que 50% estavam vivos após dez anos. A diferença na mortalidade depende do ambiente, do período temporal e da gravidade da IRA.
Poucos estudos avaliaram especificamente os fatores preditivos para sobrevida de longo prazo.5-7,10,11,15,17,27,28 Fatores não modificáveis à internação em UTI, tais como idade avançada e comorbidades, especificamente cirrose avançada, foram associados a risco aumentado de óbito após episódio de IRA.5-7,10,11,15,28 Da mesma forma, doença de maior gravidade avaliada pelas escalas APACHEII ou SOFA e choque séptico concomitante foram óbito.5-7,10,15,17 independentemente associados a Estudos recentes sugeriram que a sobrevida a longo prazo está associada a patologias crônicas préexistentes e não à gravidade do episódio de IRA.11,27 Em alguns estudos, a incapacidade de recuperar a função renal inicial e a progressão para doença renal crônica foram associadas a sobrevida reduzida.18,27,34-36 Apesar de alguns estudos5,7 sugerirem que o uso contínuo de terapia renal substitutiva fosse um preditor independente de óbito, este achado não foi universalmente relatado.8,20,34,36 Não foi descrita associação entre prescrição de TRS de maior intensidade e melhora do desfecho de longo prazo.14
Em resumo, os fatores que contribuem para a mortalidade associada a IRA variam com o tempo e diferem no curto e longo prazo. Fatores que modificam o risco de mortalidade precoce ocorrendo em menos de 90 dias após o episódio de IRA incluem diagnóstico primário (ex.: sepse), gravidade da doença aguda e gravidade dos distúrbios não-renais agudos de órgãos. Entre os sobreviventes precoces, os fatores que contribuem para a mortalidade em médio e longo prazo incluem idade avançada, comorbidades pré-existentes (DRC, doença cardiovascular ou malignidade) e recuperação incompleta do órgão com doença residual em curso (Tabela 1).
Tabela 1 Fatores independentemente associados a mortalidade precoce (< 90 dias) e a longo pra zo (> 90 dias) após episódio de insuficiência renal aguda
Fatores associados a mortalidade precoce (A) e a longo prazo (B) | Referências |
---|---|
- sepse grade/choque séptico (A,B) | 1-9, 16, 24 |
- idade avançada (A,B) | 2,5-11, 33 |
- maior gravidade da doença (A,B) | 10-21, 32 |
- patologias pré-existentes (DRC, DCV ou malignidade) (A,B) | 11, 14-17 |
- APACHE II, RIFLE ou SOFA (A) | 9-12, 24-26 |
- TRS? (A,B) | 23-27 |
- recuperação incompleta da função renal (B) | 18-23 |
TRS: Terapia renal substitutiva; DRC: Doença renal crônica; DCV: Doença cardiovascular.
A não recuperação da função renal após um episódio de IRA é um evento significativo em termos de morbidade e traz implicações de longo prazo para pacientes e recursos do sistema de saúde. As taxas de longo prazo de recuperação completa ou parcial da função renal não foram detalhadamente descritas e os dados relacionados à progressão da doença renal crônica (DRC) são contraditórios. Os dados dos estudos em que foram incluídas todas as etiologias da IRA são difíceis de interpretar, já que o prognóstico funcional é sabidamente pior em alguns tipos de glomerulonefrite e vasculite.
Não há consenso sobre a definição de recuperação renal após IRA. As definições mais frequentes são desmame da diálise, normalização da creatinina sérica (sCr) ou retorno ao valor basal de sCr. Estes critérios estão associados a diferentes taxas de recuperação renal e dependem do grupo que está sendo avaliado. Estudos que incluíram apenas pacientes dialisados e que definiram recuperação como desmame da diálise podem exibir taxas mais elevadas de recuperação do que os que avaliaram pacientes com IRA baseados na sCr basal. Além disso, a maioria dos estudos deixou a decisão final de interromper a diálise a cargo do médico assistente, gerando um desfecho fortemente influenciado pelas práticas pessoais do médico ou do centro de atendimento. Estas disparidades na definição de recuperação renal são refletidas nas diferentes taxas de recuperação renal descritas.
Grandes estudos observacionais de pacientes críticos com NTA grave em TRS relataram taxas de dependência de diálise no momento da alta hospitalar entre 13% e 29%.2,5,37,38
Entre os sobreviventes da IRA, a taxa de dependência de diálise parece diminuir de seis a doze meses após o início da IRA. Contudo, este resultado é muitas vezes confundido pelos óbitos que ocorrem predominantemente entre os pacientes que permanecem em diálise.5,20
Várias suscetibilidades relacionadas aos pacientes modificam a probabilidade de não recuperação da IRA e rápida progressão para doença renal terminal (DRT), particularmente idade avançada,36-38 gravidade da DRC no início do estudo, sexo feminino, presença de comorbidades, etiologia parenquimatosa da IRA e início tardio da terapia renal substitutiva (TRS) ou utilização de TRS intermitente convencional, todas associadas a recuperação reduzida5,8,21,25,38-43 (Tabela 2). Tanto a gravidade da IRA como o número de episódios de IRA estão associados ao desenvolvimento de DRC incidente e DRT.18,39 No entanto, não há estudos que tenham abordado especificamente os preditores de recuperação a longo prazo da função.
Tabela 2 Fatores associados a não recuperação após episódio de insuficiência renal aguda
Fatores | Referências |
---|---|
Idade avançada | 2, 5, 35-38 |
Gravidade da DRC | 8, 21, 25 |
Gravidade da IRA | 39-43 |
Número de episódios de IRA | 11, 17 18 |
Sexo feminino | 5, 33 |
Presença de comorbidades | 10, 14-17 |
IRA de etiologia parenquimatosa | 8, 21 |
TRS? | 21-25 |
Início tardio da TRS | 39 |
TRS intermitente | 12, 21 |
DRC: Doença renal crônica; IRA: Insuficiência renal aguda; TRS: Terapia renal substitutiva.
Apesar de não haver escalas validadas que possam prever função renal após IRA de forma confiável, muito tem sido estudado sobre biomarcadores de IRA que possibilitem um diagnóstico mais precoce e preciso, permitindo, assim, o uso de estratégias para evitar a progressão dessa síndrome.42 Um estudo experimental em ratos revelou que inflamação contínua e atividade imunológica estavam relacionadas à patogênese da DRC e que a NGAL estava regulada para cima, sugerindo seu valor como um biomarcador valioso para o desenvolvimento de DRC após IRA.43 Além disso, evidências recentes sugerem que a NGAL pode até ter papel na mediação da progressão da DRC.44
A IRA é um fator de risco independente para DRC incidente e progressão para DRT.44-47 A gravidade da IRA está associada à recuperação da função renal no momento da alta hospitalar e à progressão para DRC. Estudos realizados por Pereira et al.11 e Chawla et al.45 mostraram que idade avançada e gravidade da IRA são preditores de progressão para DRC. Os pacientes com IRA mais grave avaliados pelos critérios RIFLE ou AKIN apresentaram menor taxa de recuperação da função renal no momento da alta hospitalar e maior progressão para DRC. O risco de DRT incidente é 2,7 vezes maior em pacientes críticos com IRA que não necessitam de TRS do que em pacientes sem IRA.36 Esses pacientes também tem risco aumentado para eventos cardiovasculares importantes, reinternação e mortalidade.35,43
Dependendo da etiologia da IRA, entre três e 41% dos pacientes podem evoluir para doença renal terminal e de três a 24% podem necessitar de diálise crônica após a alta.36 O relatório anual de 2010 do US Renal Data System indicou que os sobreviventes da IRA apresentam risco de desenvolver DRT no ano seguinte. Este risco aumenta de menos de um por cento para indivíduos sem histórico de DRC para cinco por cento entre pacientes com DRC prévia.46
Brito et al.27 relataram necessidade de diálise crônica para 4,7% dos pacientes após 60 meses de seguimento e que todos os pacientes que evoluíram para DRT tinham histórico de DRC. Resultados semelhantes foram recentemente observados por Macedo et al.,18 com 4.7% dos indivíduos progredindo para DRT; contudo, apenas um (1.1%) evoluiu ainda no primeiro ano após o início da IRA. Em geral, os estudos indicam baixas taxas de necessidade de TRS a longo prazo dentre os sobreviventes de episódios de IRA grave, especificamente aqueles com função renal anteriormente normal.
O risco de progressão para DRC foi mais elevado em pacientes com histórico de DRC [taxa de filtração glomerular (TFG < 60 ml/min)] do que em indivíduos sem histórico de doença renal crônica (TFG > 60 ml/ min). No estudo de Brito et al.,27 menos de nove por cento dos pacientes sem histórico de DRC evoluíram para DRC estágios 4 ou 5, enquanto 23% dos pacientes com histórico de doença progrediram para DRC estágios 4 ou 5. Estes resultados são semelhantes aos relatados por Amdur et al.,47 em que 20% dos indivíduos com NTA progrediram para DRC estágios 4 ou 5. Wu et al.19 avaliaram 9425 pacientes pós-IRA grave (com necessidade de diálise) e os indivíduos com histórico de DRC apresentaram maior risco de progressão para DRT do que os sem histórico de DRC (17,8 x 0,15 pacientes/ano). O risco de progressão para DRT também foi mais elevado quando os pacientes com histórico de DRC não atingiram recuperação plena da função renal no momento da alta hospitalar (RR = 212,7; IC 95% 105,5-428,8; p < 0,001).
Thakar et al.39 estudaram pacientes com diabetes e risco de progressão para DRC após NTA. Os autores observaram que um episódio de IRA em pacientes diabéticos em comparação a pacientes diabéticos sem NTA apresentou associação com progressão para DRC estágio 4 (RR = 3,56; IC 95% 2,76-4,61), e que cada novo episódio de IRA elevou o nível de risco (RR = 2,02; IC = 1,78-2,3).
Em resumo, a progressão para DRC é comum e está associada a idade avançada, histórico de DRC e gravidade da IRA (Tabela 3).
Tabela 3 Fatores associados a doença renal crônica e progressão para doença renal terminal após episódio de insuficiência renal aguda
Fatores | Referências |
---|---|
Idade avançada | 27,36 |
Gravidade da DRC | 46-49 |
Gravidade da IRA (?) | 33-37,46-49 |
Número de episódios de IRA | 36,47,48 |
Presença de comorbidades | 36, 40-43, 46-48 |
TRS? | 27 36,46-49 |
DRC: Doença renal crônica; IRA: Insuficiência renal aguda; TRS: Terapia renal substitutiva.
Cada vez mais reconhecemos que é a IRA não deve ser considerada apenas como uma síndrome aguda, mas sim como uma condição de risco para progressão para DRC e mortalidade tardia. Vários estudos confirmam que o prognóstico de sobrevida a longo prazo dos pacientes com doença caracterizada por IRA grave é geralmente reservado. Os que sobrevivem, no entanto, de modo geral desfrutam de altas taxas de recuperação renal e até independência da TRS. As taxas de longo prazo para a recuperação funcional plena ou parcial não foram ainda descritas em detalhe, e por isso os sobreviventes da IRA merecem um meticuloso acompanhamento clínico de longo prazo. Mais pesquisas são necessárias para explorar a relação entre sobrevida a longo prazo e morbidade subsequente, considerando especificamente a recuperação da função renal.