versão impressa ISSN 1676-2444versão On-line ISSN 1678-4774
J. Bras. Patol. Med. Lab. vol.55 no.5 Rio de Janeiro set./out. 2019 Epub 11-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.5935/1676-2444.20190042
A atresia biliar (AB) é uma doença fibro-obliterativa do trato biliar, sendo a causa mais comum de doenças crônicas severas em crianças(1). Sua incidência varia entre 1:3,125 e 1:18,000 nascidos vivos(2,3), com uma pequena prevalência no sexo feminino(1,2:1)(4,5). É a maior causa de icterícia colestática nos primeiros meses de vida (25%-40%)(6) e de transplante de fígado em crianças pequenas, representando cerca de 50% dos encaminhamentos(7,8) e 10% dos transplantes em qualquer idade(9).
Seu diagnóstico fundamenta-se principalmente em avaliações clínicas, laboratoriais, histológicas e exames de ultrassom. A biópsia hepática é o teste diagnóstico mais preciso, com acurácia variando de 90% a 95%(10). Proliferação ductal, fibrose portal e ausência de fibrose sinusoidal são as características que prognosticam melhor a AB(11).
A portoenterostomia de Kasai é uma terapia alternativa para restaurar o fluxo biliar em pacientes com AB(8). Entretanto, a fibrose progride rapidamente antes da cirurgia e mesmo após a drenagem biliar, pode continuar a progredir, levando a hipertensão portal e cirrose(12). As causas da progressão da fibrose hepática permanecem incertas na AB. Embora a fibrose seja intuitivamente associada à colestase, a evolução da primeira em pacientes que se tornaram anictéricos depois da portoenterostomia de Kasai sugere que há vias fibrogênicas não colestáticas. Isso pode envolver mecanismos imunes e não imunes, como estresse oxidativo e colangite recorrente(13).
Na AB, a progressão da fibrose hepática é rápida e agressiva(14). O presente estudo tem o propósito de avaliar a evolução dos achados histológicos em pacientes com AB, destacando a progressão histológica da fibrose no período entre o diagnóstico e as biópsias cirúrgicas de fígado (no momento da portoenterostomia).
Este é um estudo retrospectivo de pacientes diagnosticados com AB no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) de 1979 a 2016. Sua amostra não probabilística inicialmente consistia de 93 pacientes submetidos à portoenterostomia no hospital, que tinham tanto biópsia hepática diagnóstica (BHD) quanto biópsia hepática cirúrgica (BHC). Destes, 42 foram excluídos por terem biópsias pré-operatórias realizadas em outros serviços ou porque o material obtido era inapropriado para análise. A amostra final do estudo foi composta por 51 pacientes, ou seja, 102 biópsias.
As seguintes variáveis foram avaliadas:
variáveis clínicas - gênero, idade à BHD e idade à cirurgia;
variáveis laboratoriais - albumina, coagulograma [atividade de protrombina (AP)], enzimas tissulares [aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT)] e enzimas canaliculares [gama glutamiltransferase (GGT) e fosfatase alcalina (FA)], exames solicitados na admissão e bilirrubina [bilirrubina total (BT) e bilirrubina direta (BD) na admissão e no sexto mês pós-operatório]. A presença de fluxo biliar foi definida como BT menor que 2 mg/dl seis meses após a portoenterostomia(15);
variável histopatológica - a análise histopatológica, às cegas, de lâminas de biópsia de fígado foi feita por dois patologistas do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital das Clínicas da UFMG, que não sabiam nem os dados dos pacientes nem quando os exames foram conduzidos. Cada fragmento do fígado foi fixado em formol salino 10% e processado conforme as técnicas histológicas de rotina até a inclusão em parafina. O bloco de parafina foi submetido a microtomia, e cinco lâminas com cortes histológicos medindo 5 µm a 7 µm foram obtidos de cada bloco e corados com hematoxilina e eosina (HE), Gomori ou tricromo de Masson, Picrosirius red e ácido periódico Schiff (PAS) com e sem diastase.
Os graus de fibrose e atividade inflamatória foram avaliados usando as escalas de Metavir(16) e Ishak et al. (1995)(17). A arquitetura do lóbulo hepático foi classificada em preservada, parcialmente subvertida ou subvertida. A transformação de células gigantes e a proliferação ductal foram avaliadas por sua presença ou ausência. A colestase foi classificada em leve, moderada ou acentuada e de acordo com sua localização (rolhas biliares). A biópsia com agulha e a biópsia em cunha foram consideradas apropriadas quando tinham pelo menos oito tratos portais.
A análise estatística foi feita usando o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS®), versão 20 (IBM, Nova York, EUA) e MedCalc, versão 16.8.4. Os dados quantitativos foram descritos por meio de desvio padrão, quando havia distribuição normal verificada pelo teste de Shapiro-Wilk, ou mediana (Q1; Q3), quando a distribuição não era normal. As variáveis quantitativas foram descritas por frequências absolutas e porcentagens. Distribuições não normais entre dois grupos independentes foram comparadas usando o teste de Mann-Whitney. Médias com distribuição normal foram comparadas usando o teste t de Student, e as variáveis categóricas, usando o teste de Qui-quadrado de Pearson. Dados de variáveis quantitativas e qualitativas de grupos dependentes foram analisados com o teste de Wilcoxon (não normal), teste McNemar (duas categorias) e McNemar Bowker (mais de duas categorias), respectivamente.
Variáveis independentes foram: gênero, BT e BD, enzimas hepáticas canaliculares e tissulares, albumina e AP, idade à cirurgia e achados histopatológicos.
A análise de confiabilidade de dados histológicos foi feita usando o coeficiente de Kappa de Cohen para as variáveis categóricas e o gráfico de Bland Altman e o coeficiente de correlação intraclasse (CCI) para variáveis quantitativas. O coeficiente Kappa de Cohen determinou se havia concordância entre os observadores na análise histológica de BHD e BHC. Para o coeficiente Kappa de Cohen, a escala de Landis e Kock(18) foi usada (< 0: baixo; 0-0,19: insignificante; 0,2-0,39: leve; 0,4-0,59: moderado; 0,6-0,79: alto; ou 0,8-1: quase perfeito). Para a correlação CCI, a seguinte classificação foi usada(19) (< 0,4: baixo; > 0,4 e ≤ 0,75: aceitável; ou ≥ 0,75: excelente). Os resultados com p < 0,05 foram considerados estatisticamente significantes.
A análise de sobrevida com fígado nativo foi feita usando as curvas de Kaplan-Meier; suas comparações, usando o teste de Wilcoxon.
Este projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, nº 77.0.203000-09.
Cinquenta e um pacientes submeteram-se a portoenterostomia de Kasai com material histológico adequado tanto para BHD quanto para BHC. Desses pacientes, 26/51 (51%) eram do sexo masculino. As medianas de idade à BHD e à BHC foram 69 e 77 dias de vida, respectivamente. A mediana de BT no sexto mês após a cirurgia foi 6 mg/dl (Q1; Q3/2; 10) e 11/51 (21,6%) pacientes tinham fluxo biliar. A Tabela 1 resume os dados clínicos e laboratoriais.
TABELA 1 Descrição das variáveis clínicas e laboratoriais dos pacientes diagnosticados com AB
Variable | n = 51 |
---|---|
Sexo (masculino/feminino) | 26/25 |
Idade na admissão (dias)* | 62 (48/88) |
Idade na BHD (dias)* | 69 (54/92) |
Idade à cirurgia ou idade na BHC (dias)* | 77 (62/105) |
Intervalo entre as biópsias (dias)* | 8 (5/15) |
BT na admissão (mg/dl)** | 10,2 ± 3,1 |
BD na admissão (mg/dl)** | 7 ± 2,7 |
AST (U/l) na admissão* | 183 (130/297,5) |
ALT (U/l) na admissão* | 128 (79,5/183,5) |
FA (U/l) na admissão* | 513,5 (167,8/791,8) |
GGT (U/l) na admissão* | 521 (224/936,8) |
Albumina (g/dl) na admissão* | 4 (3/4) |
Coagulograma: AP (%) na admissão* | 85,5 (75/96,8) |
BT 3º mês (mg/dl)* | 7,1 (2,4/12,3) |
BD 3º mês (mg/dl)* | 4,6 (1,9/7,8) |
BT 6º mês (mg/dl)* | 6 (2/10) |
BD 6º mês (mg/dl)* | 4 (1,1/7,4) |
BA: atresia biliar; BHD: biópsia hepática diagnóstica; BHC: biópsia hepática cirúrgica; BT: bilirrubina total; BD: bilirrubina direta; AST: aspartato aminotransferase; ALT: alanina aminotransferase; FA: fosfatase alcalina; GGT: gama glutamiltransferase; AP: atividade de protrombina;
*mediana (Q1; Q3);
**média ± desvio padrão.
Comparações das variáveis categóricas descritivas entre dois patologistas a respeito da BHD foram quase perfeitas quanto a arquitetura lobular, transformação de células gigantes, intensidade da colestase, proliferação ductal, grau de fibrose usando tanto as escalas Metavir quanto Ishak e atividade inflamatória usando a escala Metavir. A correlação foi alta para a localização da colestase e atividade inflamatória usando Ishak. Na análise de BHC, a concordância foi quase perfeita para arquitetura lobular, transformação de células gigantes e grau de fibrose usando Ishak. Ela foi alta para proliferação ductal, intensidade de colestase e atividade inflamatória e fibrose usando Metavir. Foi moderada para a localização da colestase e atividade inflamatória usando Ishak (Tabela 2). Na análise da concordância entre examinadores para avaliação do número de espaços porta, uma correlação excelente foi observada em ambas as biópsias, dados que foram confirmados pelos gráficos de Bland Altman (Tabela 2).
TABELA 2 Análise da concordância entre examinadores em relação à histologia de 51 pacientes diagnosticados com AB
Variáveis | BHD | BHC | ||
---|---|---|---|---|
Kappa (EP Kappa) |
p | Kappa (EP Kappa) |
p | |
Arquitetura lobular | 0,932 (0,047) | < 0,0001 | 0,807 (0,075) | < 0,0001 |
Transformação de células gigantes | 0,963 (0,037) | < 0,0001 | 0,932 (0,046) | < 0,0001 |
Localização da colestase | 0,775 (0,089) | < 0,0001 | 0,48 (0,12) | < 0,0001 |
Intensidade da colestase | 0,852 (0,07) | < 0,0001 | 0,769 (0,083) | < 0,0001 |
Proliferação ductal | 1 (0) | < 0,0001 | 0,697 (0,162) | < 0,0001 |
Escore Metavir | ||||
Atividade inflamatória | 0,904 (0,055)* | < 0,05 | 0,695 (0,087)* | < 0,05 |
Fibrose | 0,968 (0,032)* | < 0,05 | 0,695 (0,087)* | < 0,05 |
Escore Ishak | ||||
Atividade inflamatória | 0,714 (0,066)* | < 0,05 | 0,432 (0,102)* | < 0,05 |
Fibrose | 0,968 (0,024)* | < 0,05 | 0,841 (0,053)* | < 0,05 |
Nº de espaços porta | 0,991 (0,983/0,995)** | < 0,0001 | 0,991 (0,985/0,995)** | < 0,0001 |
AB: atresia biliar; BHD: biópsia hepática diagnóstica; BHC: biópsia hepática cirúrgica; EP Kappa: erro padrão de Kappa;
*Kappa ponderado;
**coeficiente de correlação intraclasse 95%.
Os principais achados histológicos para o diagnóstico de AB foram os seguintes: proliferação ductal, rolhas biliares e fibrose portal. A proliferação foi verificada em 96,3% dos pacientes na BHD, rolhas biliares em 78,4% e fibrose portal em 84,3%. Ao analisar BHC, as mesmas alterações histológicas ocorreram em 86,3%, 78,4% e 92,2%, respectivamente.
O número de tratos portais mostrou uma diferença estatisticamente significante (p < 0,0001) entre os exames, com uma média de oito para BHD e 17 para BHC. Enquanto as BHDs foram realizadas com agulha, as BHCs foram obtidas com técnicas em cunha (60%) ou agulha (40%). A arquitetura lobular foi preservada em 52,9% e subvertida em 9,8% de BHD, enquanto em BHC esses valores foram 23,5% e 25,5%, respectivamente (p = 0,001). A cirrose foi mais frequente na biópsia cirúrgica usando tanto o escore de Metavir (p = 0,006) quanto o de Ishak (p = 0,016). Nenhuma diferença estatisticamente significante foi encontrada entre as biópsias quanto a variáveis histopatológicas no que diz respeito a transformação de células gigantes, presença e intensidade de colestase, rolhas biliares, proliferação ductal e atividade inflamatória em ambos os escores (Tabela 3).
TABELA 3 Comparação entre biópsias hepáticas diagnósticas e cirúrgicas de 51 pacientes diagnosticados com AB
Variável | BHD | BHC | p |
---|---|---|---|
Nº de tratos portais (média ± DP) | 8 (8/10) | 17 (11/20) | < 0,00011 |
Arquitetura lobular | |||
Preservada Parcialmente subvertida Subvertida |
27 (52,9%) 19 (37,3%) 5 (9,8%) |
12 (23,5%) 26 (51%) 13 (25,5%) |
0,0013 |
Cirrose (Metavir) | |||
Sim Não |
2 (3,9%) 49 (96,1%) |
12 (23,5%) 39 (76,5%) |
0,0062 |
Cirrose (Ishak) | |||
Sim Não |
1 (2%) 50 (98%) |
8 (15,7%) 43 (84,3%) |
0,0162 |
Transformação de células gigantes | |||
Sim Não |
32 (62,7%) 19 (37,3%) |
30 (58,8%) 21 (41,2%) |
0,7912 |
Colestase | |||
Sim Não |
46 (90,2%) 5 (9,8%) |
48 (94,1) 3 (5,9) |
0,6252 |
Colestase | |||
Leve Moderada Acentuada |
18 (39,1%) 22 (47,8%) 6 (13,1%) |
19 (39,6%) 19 (39,6%) 10 (20,8%) |
0,1353 |
Rolhas biliares | |||
Sim Não |
40 (78,4%) 11 (21,6%) |
40 (78,4%) 11 (21,6%) |
12 |
Proliferação ductal | |||
Sim Não |
44 (86,3) 7 (13,7) |
44 (86,3) 7 (13,7) |
12 |
Fibrose (Metavir) | |||
0 1 2 3 4 |
8 (15,7) 18 (35,3) 13 (25,5) 10 (19,6) 2 (3,9) |
4 (7,8) 7 (13,7) 19 (37,3) 9 (17,6) 12 (23,5) |
0,0383 |
Atividade inflamatória (Metavir) | |||
0 1 2 |
27 (52,9) 21 (41,2) 3 (5,9) |
25 (49) 19 (37,3) 7 (13,7) |
0,2543 |
Fibrose (Ishak) | |||
0 1 2 3 4 5 6 |
8 (15,7) 8 (15,7) 8 (15,7) 11 (21,6) 11 (21,6) 4 (7,8) 1 (2) |
4 (7,8) 2 (3,9) 5 (9,8) 13 (25,5) 12 (23,5) 7 (13,7) 8 (15,7) |
0,2523 |
Atividade inflamatória (Ishak) | |||
Mediana (Q1; Q3) | 1 (1; 2) | 1 (1; 2) | 0,9841 |
AB: atresia biliar; BHD: biópsia hepática diagnóstica; BHC: biópsia hepática cirúrgica; DP: desvio padrão;
1Teste Wilcoxon Test;
2Teste McNemar;
3Teste McNemar-Bowker.
Comparando a escala de Metavir para fibrose em biópsias (BHD × BHC) de cada paciente, identificou-se que em 29/51 (56,9%) a escala aumentava em um ou dois pontos e observava-se uma progressão para a cirrose em 11/29 (37,9%) pacientes cuja fibrose havia progredido. Em 22 pacientes sem tal progressão, 16/51 (31,4%) mantiveram o grau de fibrose, e este diminuiu em 6/51 (11,8%) pacientes.
Nenhuma diferença estatisticamente significante foi encontrada entre pacientes cuja fibrose progrediu ou entre aqueles que não a desenvolveram quando comparados com as variáveis estudadas (BT e BD na admissão e no sexto mês após a cirurgia e o intervalo entre biópsias). A mediana de idade à cirurgia daqueles que desenvolveram fibrose foi 77 dias e 92 dias nos 11 pacientes que progrediram para cirrose.
Quando fazendo a mesma avaliação, mas utilizando a escala Ishak, 31/51 (60,8%) pacientes aumentaram seu grau de fibrose, 13 (25,5%) o mantiveram e sete (13,7%) o reduziram.
De acordo com o escore Metavir, havia atividade inflamatória aumentada em 12/51 (23,5%) pacientes, uma redução em seis (11,8%) e manutenção em 33 (64,7%). Resultados semelhantes foram vistos com o uso do escore de Ishak, que mostrou atividade inflamatória aumentada em 9/51 (17,7%) pacientes, diminuída em 10 (19,6%) e estabilizada em 32 (62,7%).
O tamanho da amostra foi reduzido para 20 pacientes (40 biópsias) quando comparando BHD e BHC obtidas usando somente técnica da agulha e com pelo menos 10 tratos portais visíveis. O número mediano de tratos portais observado foi 10 para BHD e 11 para BHC. A cirrose foi identificada com mais frequência em BHC usando tanto os escores Metavir (p = 0,005) quanto Ishak (p = 0,02), e o tempo mediano entre as biópsias foi 11 dias. O escore Metavir para fibrose aumentou 1-2 pontos em 13/20 (65%) pacientes e cinco deles exibiram progressão para cirrose. A mediana de idade à cirurgia foi 74 dias nos pacientes que desenvolveram fibrose e 93 dias nos cinco pacientes que progrediram para cirrose.
Cirrose foi identificada em 12/51 (23,5%) biópsias cirúrgicas. A variável clínica idade à cirurgia mostrou uma diferença estatisticamente significante em relação à presença ou ausência de cirrose em BHC (p = 0,024), já que os pacientes com cirrose foram operados mais tarde, idade mediana 92 dias. Em pacientes não cirróticos a idade mediana à cirurgia foi 71 dias. Nenhuma diferença estatisticamente significante foi observada entre pacientes com e sem cirrose em relação às variáveis estudadas (BT e BD na admissão e no sexto mês do período pós-operatório e fluxo biliar).
A sobrevida com fígado nativo foi 64,7% em um ano, 52,6% em dois anos, 36,4% em cinco e 23,9% em 10 anos.
Progressão ou não da fibrose, avaliada de acordo com a escala de Metavir, não se correlacionou à sobrevida com fígado nativo (Wilcoxon x2 = 0,65; p = 0,42) (Figura 1A). A presença ou a ausência de cirrose no momento da portoenterostomia também não foi associada à sobrevida sem transplante hepático (Wilcoxon x2 = 0,412, p = 0,521) (Figura 1B).
A comparação histológica em diferentes momentos que precedem a portoenterostomia pode contribuir para a compreensão de diferentes desfechos cirúrgicos dessa grave doença. A literatura oferece estudos avaliando características histológicas com a melhor precisão para diagnosticar AB, assim como a correlação entre achados acerca da BHC e sobrevida. Considerando que os estudos para avaliar a progressão da fibrose hepática em pacientes com AB são escassos(20,21), este trabalho tem por objetivo contribuir com mais dados sobre a evolução da fibrose antes da portoenterostomia.
Quando comparando BHD e BHC de cada paciente, a progressão da fibrose foi constatada em 56,9% e em 60,8% dos pacientes usando os escores de Metavir e Ishak, respectivamente, em uma mediana de intervalo de oito dias. Além disso, a cirrose foi mais frequente em BHC, tanto usando o escore Metavir quanto o Ishak, destacando a rápida progressão histológica da condição. Lampela et al. (2014)(21), ao comparar BHC com o material histológico obtido de fígados nativos de crianças pequenas, com mediana de idade de 4,2 anos, submetidas a portoenterostomia de Kasai bem-sucedida, descobriram rápida progressão da fibrose em pacientes com fluxo biliar adequado. Tanano et al. (2003)(20) estabeleceram um paralelo entre a BHC e a biópsia hepática realizada, em média, 22 meses após a portoenterostomia de Kasai. A progressão da fibrose foi verificada em 16/19 (84,2%) pacientes que obtiveram fluxo biliar e em todos os sete pacientes cuja drenagem biliar não foi estabelecida. Além disso, a progressão da fibrose foi mais acentuada no grupo de pacientes ictéricos. Mesmo que a ausência de fluxo biliar, e consequentemente falha cirúrgica, seja um fator que contribua para a rápida evolução da fibrose, a presença de drenagem biliar evidentemente não impede a progressão da fibrose. A razão pela qual a fibrogênese é tão rápida e intensa na AB permanece incerta. Uma melhor compreensão do processo de desenvolvimento da fibrose hepática pode ser essencial para elucidar a patogênese da AB.
No presente estudo, nenhuma diferença estatisticamente significante foi vista entre pacientes cujo grau de fibrose aumentou ou não em relação à idade no momento da cirurgia. Entretanto, quando somente 11 pacientes cuja fibrose progrediu para cirrose foram estudados, a mediana de idade à cirurgia foi 92 dias de vida, ao passo que naqueles cuja fibrose não progrediu, foi 75 dias. A presença ou ausência de cirrose em BHC teve uma relação estatisticamente significante com a idade à cirurgia, o que sugere a importância dessa variável clínica na evolução da fibrose. Alguns autores sugerem uma relação entre a idade à cirurgia e o grau de dano hepático ou fibrose(14,22).
O grau de fibrose hepática é uma das avaliações mais importantes para o diagnóstico e o prognóstico da doença hepática crônica(23). Shteyer et al. (2006)(22) verificaram que o grau de fibrose no momento da portoenterostomia foi um dos fatores determinantes da sobrevida com fígado nativo. Weerasooriya et al. (2004)(14) classificaram a fibrose de acordo com sua gravidade em três tipos: discreta, moderada e acentuada. Para esses autores, havia uma correlação entre a intensidade da fibrose e a baixa sobrevida com fígado nativo. Todavia, outros estudos não mostraram nenhuma associação significante entre essas duas variáveis(24,25). Os resultados controversos sobre a fibrose podem ser explicados por técnicas e sistemas de pontuação diferentes usados para quantificá-la(26). Além do mais, há dificuldades inerentes à análise da sua extensão, envolvendo a amostra histológica e os métodos de coloração(23).
Uma concordância "forte" ou "quase perfeita" foi observada na classificação da fibrose usando os sistemas de pontuação Metavir ou Ishak, tanto em BHCs quanto em BHDs. Esses dados são comparáveis com aqueles encontrados na literatura. Goodman et al. (2007)(27) relatam que a maior parte das publicações usando os escores de Metavir e Ishak e o coeficiente Kappa de Cohen para avaliar escores de fibrose em doenças hepáticas mostrou níveis de concordância variando de "moderado" a "quase perfeito" (Kappa 0,5-0,9). Tanto as discordâncias, entre patologistas, durante a interpretação das biópsias, quanto os sistemas de pontuação usados são fatores que podem interferir na avaliação histopatológica(23). Esses fatores não foram observados neste estudo.
A representatividade do material obtido na biópsia do fígado é importante para análise histológica. Quando cuidadosamente estudada, a biópsia exibe uma acurácia de 95% se a amostra tem cinco a sete tratos portais(28). No presente estudo, houve diferença quanto ao número de espaços porta entre as duas biópsias. Acredita-se que essa diferença tenha influenciado os resultados, considerando que a BHD foi obtida por punção e a BHC, por punção de visualização direta e/ou ressecção em cunha, o que pode garantir um maior número de tratos portais(20). Pape et al. (2009)(26) informaram que o grau de fibrose foi semelhante em biópsias hepáticas com agulha e em cunha nas crianças com AB. Entretanto, o fato de que biópsias em cunha podem incluir tecido capsular ou subcapsular, uma região na qual atividade histológica e fibrose podem ser superestimadas(23), constitui uma limitação do estudo. Mesmo assim, essas questões não invalidam os resultados, o que sugere uma rápida progressão da fibrose hepática como consequência comum dos insultos ao parênquima do órgão ainda sem etiopatogenia clara na literatura. Resultados similares foram observados quando se compararam somente os pacientes submetidos a biópsias usando a técnica da agulha.
Este estudo foi retrospectivo, o que tornou difícil recuperar o material da avaliação histológica e, consequentemente, causou a exclusão de grande número de pacientes na análise final. O tamanho reduzido da amostra, justificado pelos critérios de inclusão rigorosos (ambas as biópsias hepáticas feitas no serviço e o número de espaços porta nas amostras) e pela raridade da doença, é outra limitação do presente estudo.
A comparação das biópsias hepáticas em dois momentos distintos mostra como a doença se desenvolve em um curto período de tempo. Em alguns casos, intervalos de oito dias foram suficientes para comprovar a progressão da fibrose. Dados do presente estudo confirmam que a maioria das crianças com AB já apresentavam fibrose hepática ao diagnóstico. A presença de cirrose está relacionada com idade à cirurgia, sugerindo a importância dessa variável na evolução da fibrose, embora a cirrose não esteja associada à sobrevida com fígado nativo ou à drenagem biliar.