versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.2 São Paulo ago. 2019 Epub 02-Set-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190171
Ao longo do tempo, a comunidade científica identificou com precisão os principais fatores de risco cardiovascular. Não restam dúvidas de sua importância, do peso de cada um na determinação do aumento da morbimortalidade por essa causa.1
De outro lado, o crescimento temporal das patologias do aparelho circulatório como principal causa de morte e de afastamento das atividades produtivas foi gigantesco. Grande prejuízo social, econômico e afetivo.
O desenvolvimento científico possibilitou o surgimento de instrumentos e fármacos para atuar nos grandes fatores de risco modificáveis.
A ironia é que, no geral, do ponto de vista do combate às doenças, avançamos mais na prevenção secundária do que na primária.1
Na prevenção secundária, o combate a alguns dos principais fatores de risco tem maior apelo. O tratamento da hipertensão arterial, da dislipidemia e mesmo do diabetes muito evoluíram. A antiagregação plaquetária e a anticoagulação como formas de evitar novos eventos também caminharam a passos enormes. Nesse caso, mesmo com os problemas relacionados à falta de acesso ou de adesão ao tratamento, temos o caminho desbravado e continuamos a avançar.1
Com relação aos hábitos de vida, as respostas são variáveis, mesmo nessa situação. O abandono ao tabagismo tem boa aceitação e, pelo conjunto de medidas tomadas em todas as esferas em nosso país, os resultados são bastante animadores. Contudo, na busca pela mudança do comportamento sedentário já há maior resistência, apesar da difusão do conhecimento sobre sua importância. O estresse psicossocial é outro fator que carece de melhor conhecimento e ações mais efetivas.1
Há, entretanto, um grande desafio à saúde pública, contra o qual estamos sofrendo reveses ano após ano.
Estudos publicados mostraram que, em todo o mundo, nos últimos 50 anos, a população aumentou de peso. Em publicação de 2014, destacou-se que entre 1980 e 2013 os indivíduos tiveram aumento do índice de massa corpórea para acima de 25 kg/m2, o que os classifica como sobrepeso, passando de 28,8% para 36,9% entre os homens e de 29,8% para 38,0% entre as mulheres. E, pior que isso, o aumento do peso ocorreu também em crianças e adolescentes, tanto em países desenvolvidos onde, em 2013, 23,8% dos meninos e 22,6% das meninas estavam com sobrepeso ou obesas, quanto nos países em desenvolvimento, onde 12,9% dos meninos e 13,4% das meninas estavam também com excesso de peso.2
Em 2016, outra publicação que avaliou o período entre 1975 e 2014 mostrou também que a obesidade aumentou de 3,2% para 10,8% entre os homens e de 6,4% para 14,9% entre as mulheres nesse período. Esses estudos estimam que se a tendência se mantiver, em 2025, a prevalência de obesidade mundial será maior que 18% entre os homens e 21% entre as mulheres.3
Assim, temos claramente uma pandemia mundial de excesso de peso, agravada pelo fato de que não há, até o momento, a descrição de qualquer programa desenvolvido que tenha obtido sucesso na reversão dessa dura realidade. Trata-se de um importante risco cardiovascular, que inicialmente passou despercebido, que toma proporções alarmantes e ganha espaço a cada momento.
Deve-se destacar que, em 2015, o excesso de peso levou mais de 100 milhões de pessoas ao afastamento das atividades produtivas e foi responsável por cerca de 4 milhões de mortes em todo o mundo.4
No Brasil não é diferente: a epidemia é grave e progride a olhos vistos. De 2006 a 2016, em pesquisa utilizando dados do VIGITEL que, de uma certa forma, subestima as informações, a prevalência de sobrepeso aumentou de 48,1% para 57,5% entre os homens e de 37,8% para 48,2% entre as mulheres e, além disso, a obesidade cresceu de 11,7% para 18,1% entre os homens e de 12,1% para 18,8% entre as mulheres.5
Outro importante estudo longitudinal, o ELSA-Brasil, mostrou em publicação de 2015, em população entre 35 e 74 anos, uma prevalência de 40,2% de indivíduos com sobrepeso e 22,9% com obesidade.6 É assustador, mas não para por aí.
Esses levantamentos mostram dados de capitais e/ou grandes núcleos urbanos e, quando buscamos informações relativas a pequenas cidades, encontramos a mesma realidade. Por exemplo, em estudo longitudinal de 13 anos, em cidade de pequeno porte na região centro-oeste, observou-se, em população acima de 18 anos, um crescimento de sobrepeso/obesidade, que já era elevado em 2002, de 49,1% para 69,8% em 2015. De maneira atípica e ainda mais desafiante, o sobrepeso exclusivo no período aumentou de 34,6% para 38,4%, enquanto a obesidade cresceu de 14,5% para assustadores 31,4%. Vale destacar que são os mesmos indivíduos investigados nos dois momentos distintos. Quando foi feita estratificação por sexo, observou-se diminuição do número de indivíduos com peso normal e aumento da obesidade no intervalo de tempo.7 (Figura 1)
Figura 1 Estado nutricional baseado no índice de massa corpórea (n = 685). Firminópolis, Brasil (2002-2015). *Significante p = 0,05.
Merece também atenção que no Brasil, mesmo em crianças, desde muito jovens, até adolescentes, há impressionantes percentuais de sobrepeso e obesidade.
Estudo com crianças de 2 a 5 anos na região centro-oeste mostrou 11,2% de sobrepeso.8 Em outra amostra de 3169 crianças escolares um pouco maiores (7 a 14 anos), também na região centro-oeste, encontrou-se índice de 16% de crianças com sobrepeso e 4,9% crianças obesas, indicando a mesma tendência desde a infância.9
Finalmente, fechando o ciclo, na avaliação de adolescentes escolares (12 a 17 anos), dois estudos de base populacional, um representativo de uma cidade e outro de todo o país, os estudos CORADO e ERICA, mostraram percentual de sobrepeso de 23,3% e 17,1%, respectivamente.10,11
Não há como encarar de outra forma: é uma epidemia, assola todo o mundo, cresce a olhos vistos e não encontra uma resistência efetiva.
A comunidade científica não se deu conta da gravidade do fato, ainda trabalha numa perspectiva de “tratamento” e é muito tímida quando toca no tema prevenção primária, como claramente ficou delineado nos recentes documentos da Sociedade Europeia de Hipertensão e Associação Europeia para o Estudo da Obesidade.12,13
Já temos no momento atual fortes indicativos de que medidas de incentivos ou até restritivas, com taxação de determinados produtos que possam ser considerados nocivos são custo-efetivas e tem potencial para nos conduzir a um porto mais seguro.14,15
É realmente momento de ação, de deixarmos de ser médicos de doença e passarmos a atuar na perspectiva de reais profissionais de saúde. O esforço precisa ser geral. De cada indivíduo, da sociedade civil organizada e, principalmente, da esfera governamental.
O enfrentamento do excesso de peso deve ser uma política de governo, em busca de uma providência efetiva para toda a nação, sob pena de caminharmos para um futuro ainda mais obscuro em termos de doenças cardiovasculares.