versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.30 no.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20170032
O exercício é um tratamento não farmacológico para adultos vivendo com o vírus da imunodeficiência humana (HIV), porque pode reduzir os sintomas associados ao HIV, anormalidades cardiovasculares, morfológicas, metabólicas e melhorar a aptidão física, ansiedade e depressão.1 Em crianças e adolescentes vivendo com o HIV, apenas um estudo demonstrou a viabilidade, segurança e eficácia de exercícios aeróbicos e resistidos para melhorar a força e a resistência musculares, a aptidão aeróbica e massa livre de gordura.2 Isso é importante porque a aptidão física está reduzida em várias condições patológicas pediátricas e pode estar associada à mortalidade prematura.3 No entanto, não se observou efeito nos níveis de lípides e as variáveis cardiovasculares não foram analisadas.2
Embora o efeito do exercício sobre a saúde de crianças e adolescentes seja evidente, a magnitude do efeito depende das características da intervenção (por exemplo, intensidade e volume das sessões) e do estado de saúde na intervenção basal (por exemplo, valores normais de perfil lipídico e cardiovascular).4 Já que a exposição a longo prazo à infecção pelo HIV e a terapia antirretroviral combinada (HAART) estão associadas à dislipidemia, resistência à insulina e inflamação de baixo grau que aumentam o risco de doenças cardiovasculares,5-7 o exercício poderia mitigar as condições desfavoráveis de crianças infectadas pelo HIV.
Esse estudo relata dados preliminares sobre o efeito de um programa de exercícios físicos lúdicos de curto prazo sobre fatores de risco cardiometabólicos, nosso desfecho primário. Aptidão física e qualidade de vida também foram analisados como desfechos secundários.
O presente estudo é um ensaio clínico não randomizado, que avaliou uma amostra de crianças e adolescentes antes e após 8 semanas de exercícios aeróbicos e resistidos, realizados no segundo semestre de 2008 no Centro de Reabilitação de Florianópolis, Brasil. Esse estudo piloto foi realizado com 10 crianças e adolescentes infectados pelo HIV por transmissão de mãe para filho e acompanhados em hospital de referência para o tratamento de infecção pediátrica pelo HIV. Antes da inclusão, os pacientes foram avaliados quanto ao risco de exercício. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital (063/2007).
O programa consistiu em 24 sessões de exercícios, e cada sessão tinha a duração de 90 minutos. Houve um aumento gradual na duração dos exercícios aeróbicos e resistidos musculares de 40 para 60 minutos (a cada duas semanas). Foi adotado um intervalo de 48 horas entre sessões para recuperação. Cada sessão consistiu em atividades de aquecimento/alongamento (15 min), exercícios físicos lúdicos, aeróbicos e de resistência muscular, como dança e jogos recreativos e pré-esportivos (40-60 minutos), e desaquecimento (10 min). Foram selecionadas atividades lúdicas apropriadas para a idade dos pacientes. A maioria das atividades foi organizada em um sistema de circuito para permitir que a sessão fosse mais dinâmica. A intensidade de cada sessão foi monitorada através de um monitor de frequência cardíaca, permitindo assim determinar o tempo de exercício na zona alvo previamente calculada como 50-85% da frequência cardíaca de reserva.8
Foram medidos em jejum o colesterol total sérico, triglicérides, colesterol de lipoproteína de baixa densidade (HDL-c) e colesterol de lipoproteína de baixa densidade (LDL-c), glicose e proteína C-reativa ultrassensível utilizando procedimentos padrão.5 A pressão arterial e a frequência cardíaca de repouso foram mensuradas como anteriormente descrito.5 A espessura íntima-média da artéria carótida comum direita (EIM-ACC) foi medida através do sistema Vivid i (GE, Horten, Noruega) com um transdutor linear de 12,5MHz. As três melhores imagens do segmento do bulbo carotídeo próximo à bifurcação foram analisadas.5
A aptidão física foi avaliada através do Fitnessgram®.9 A flexibilidade foi avaliada pelo teste de sentar e alcançar ("sit-and-reach"). A resistência muscular foi avaliada pelo teste de flexão abdominal e teste de flexão do braço. A aptidão aeróbica foi medida em um teste de esforço submáximo realizado em esteira e o pico do consumo de oxigênio foi estimado.10 As medidas antropométricas foram realizadas utilizando-se procedimentos padronizados.11 O índice de massa corporal, a razão tronco-extremidades das pregas cutâneas e a área do músculo do braço foram calculados. A qualidade de vida foi avaliada através do questionário "Autoquestionnaire Qualité de vie Enfant Imagé".12
Utilizamos o teste de Shapiro-Wilks para verificar a distribuição gaussiana. As análises descritivas são apresentadas em média e desvio padrão aos dados antes e depois da intervenção. As diferenças depois - antes da intervenção (Δº) foram calculadas para descrever os efeitos. O teste t de Student pareado e o teste U de Mann-Whitney foram realizados, adotando-se um valor p ≤ 0,05 em análises bicaudais. As análises estatísticas foram realizadas utilizando-se os programas STATA 11.0 (Stata Corporation, College Station, TX, EUA) e GraphPad Prism 5.0 (GraphPad Software, Inc., San Diego, CA, EUA).
A amostra incluiu nove meninas e um menino de 13,0 anos (intervalo interquartil [IIQ] = 11,5 a 15,5 anos); 4/10 participantes eram brancos e 6/10 estavam em estágios moderados a graves da infecção pelo HIV. Metade dos participantes usavam inibidores de protease, 8/10 usavam inibidores da transcriptase reversa nucleosídeos (NRTI) e inibidores da transcriptase reversa não-nucleosídeos (NNRTI), e 2/10 estavam em HAART. A mediana da contagem de linfócitos T CD4+ foi de 722,0 células.mL-1 (IIQ = 647,5 e 914,2) e a mediana da carga viral foi de 17.750 cópias.mL-1 (IQR = 368 e 26,000). Oito dos 10 indivíduos eram púberes, um era pré-púberes e o outro era pós-púbere. A Figura 1 mostra o tempo gasto na zona de frequência cardíaca-alvo (50-85%) durante cada sessão.
A Tabela 1 mostra as alterações nos desfechos após o programa de exercícios. Observou-se redução na pressão arterial sistólica (6,6%) e na EIM-ACC (12,2%) e aumento da resistência muscular (63,5%), flexibilidade (26,0%) e qualidade de vida (27,5%). A contagem de linfócitos T CD4 + e a carga viral permaneceram inalteradas após a intervenção. Não houve abandono do programa de exercícios ou intercorrências durante o programa.
Tabela 1 Desfechos cardiometabólicos, de aptidão e qualidade de vida em crianças e adolescentes que vivem com o HIV submetidos ao programa de exercícios (n = 10)
Desfechos | Pré- Intervenção | Pós- Intervenção | Δ° | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Média (desvio-padrão) | ||||
Morfológicos | ||||
Massa corporal (kg) | 43,8 (12,9) | 44,3 (12,8) | +0,5 | 0,070 a |
IMC (kg.est-2) | 18,9 (3,2) | 19,0 (3,2) | +0,1 | 0,267 a |
DC tricipital. (mm) | 11,6 (4,7) | 12,2 (5,6) | +0,7 | 0,142 a |
DC subescapular (mm) | 11,2 (10,6) | 11,3 (10,3) | +0,1 | 0,918 b |
DC bicipital (mm) | 4,8 (2,4) | 5,5 (3,5) | +0,7 | 0,307 a |
DC supra-ilíaca (mm) | 20,8 (12,3) | 20,9 (11,3) | +0,9 | 0,933 a |
ΣDC (mm) | 48,4 (26,4) | 50,0 (27,3) | +1,6 | 0,292 a |
Circunferência abdominal (cm) | 62,0 (21,4) | 68,2 (9,9) | +6,2 | 0,878 b |
RTE (s/u) | 1,84 (0,7) | 1,78 (0,7) | -0,06 | 0,646 b |
AMB (cm2) | 28,3 (9,4) | 28,2 (8,0) | -0,1 | 0,910 a |
Metabólicos e inflamatórios | ||||
Colesterol Total (mg.dL-1) | 164,1 (22,1) | 162,3 (28,8) | -1,8 | 0,822 a |
Triglicérides (mg.dL-1) | 137,3 (46,7) | 141,5 (45,3) | +4,2 | 0,641 a |
HDL-c (mg.dL-1) | 53,6 (9,3) | 46,6 (9,7) | -7,0 | 0,019 a |
LDL-c (mg.dL-1) | 83,0 (13,7) | 87,6 (22,8) | +4,6 | 0,445 a |
VLDL (mg.dL-1) | 27,5 (9,3) | 28,3 (9,0) | +0,8 | 0,641 a |
Glicose (mg.dL-1) | 80,4 (8,5) | 83,9 (8,9) | +3,5 | 0,260 b |
Proteína C-reativa (mg.L-1) | 3,5 (6,9) | 2,7 (3,2) | -0,8 | 0,444 b |
Cardiovasculares | ||||
PA Sistólica (mmHg) | 102,6 (10,8) | 95,8 (10,8) | -6,8 | 0,002 b |
PA Diastólica (mmHg) | 62,2 (8,9) | 58,8 (6,7) | -3,4 | 0,120 a |
FCrep (bpm) | 77,2 (15,1) | 72,1 (19,6) | -5,1 | 0,427 a |
EIM-ACC (µm) | 493,2 (20,8) | 432,3 (60,5) | -60,0 | 0,005 b |
Aptidão física | ||||
RMMMSS (rep.min-1) | 5,2 (3,4) | 8,5 (3,6) | +3,3 | 0,002 a |
RMab (rep.min-1) | 21,4 (10,8) | 25,8 (9,6) | +4,4 | 0,137 a |
Flexibilidade (cm) | 21,9 (9,8) | 27,6 (11,7) | +5,7 | 0,001 a |
Pico de VO2 estimado (ml.kg-1.min-1) | 41,9 (11,3) | 41,2 (12,5) | +0,3 | 0,508 b |
Qualidade de Vida | ||||
Escore de Qualidade de Vida (escore) | 37,80 (14,2) | 48,20 (11,4) | +10,4 | 0,003 a |
IMC: índice de massa corporal; DC: dobra cutânea; RTE: razão tronco-extremidades; AMB: área muscular do braço; HDL-c: colesterol de lipoproteína de alta densidade; LDL-c: colesterol de lipoproteína de baixa densidade; VLDL: lipoproteinas de muito baixa densidade; PA: pressão arterial; FCrep: frequência cardíaca de repouso; EIM-ACC: espessura intima-média carotídea; RMMMSS: resistência muscular de membros superiores; RMab: resistência muscular do abdômen; VO2: consumo de oxigênio.
ateste T pareado de Student;
bteste U de Mann-Whitney.
Esse estudo demonstrou um efeito positivo de 24 sessões de um programa de exercícios físicos lúdicos sobre a pressão arterial sistólica, EIM-ACC, resistência muscular dos membros superiores, flexibilidade e qualidade de vida em crianças e adolescentes vivendo com o HIV. Que seja de nosso conhecimento, esse é o primeiro estudo que demonstra mudanças na estrutura endotelial após um programa de intervenção de exercícios. Embora preliminares, esses resultados destacam a importância do exercício como terapia não-farmacológica para crianças e adolescentes vivendo com o HIV.
A EIM-ACC é uma medida de desfecho substituto para a aterosclerose e mostrou-se aumentada em vários estudos sobre o HIV pediátrico.5-7 O aumento da EIM-ACC tem sido associado a níveis elevados de hipertensão arterial e proteína C-reativa,7 insulina e hemoglobina glicosilada,6 sintomas graves de infecção pelo HIV e uso de inibidores de protease,13 exposição prolongada à HAART,14-16 aumento da dobra cutânea supra-ilíaca, uso de estavudina e baixa contagem de linfócitos T CD4+.5,15,17 Embora não tenham sido observados alterações nos fatores de risco cardiovasculares tradicionais após a intervenção, exceto pela redução da pressão arterial sistólica, a diminuição da EIM-ACC sugere regressão da formação de placa aterosclerótica.
Estudos observacionais prospectivos demonstraram uma associação entre redução da EIM carotídea e aórtica e aumento da atividade física de lazer18 e aptidão aeróbica,19 respectivamente, em adolescentes saudáveis finlandeses. Nossos dados corroboram os achados de um estudo de intervenção envolvendo crianças obesas, nas quais foi observada redução da EIM-ACC após 12 semanas de exercício, mesmo na ausência de alterações significativas nos níveis de proteína C-reativa ou triglicérides.20
A redução da EIM-ACC após o exercício pode ser explicada por mecanismos hemodinâmicos, antioxidantes e antiaterogênicos (por ex., resistência física alterada, supra-regulação da eNOS vascular e da expressão da superóxido dismutase, infra-regulação da expressão da P-selectina, V-CAM e MCP-1), já que maioria dessas mudanças ocorrem após 4 semanas de treinamento.21 Da mesma forma, levantamos a hipótese de que a regressão da EIM ocorreu rapidamente devido à plasticidade do tecido cardiovascular durante o período puberal, à hipoatividade vista em doenças crônicas,3 ou a um "cenário menos favorável" como a infecção pediátrica pelo HIV. Além disso, a diminuição da pressão arterial sistólica observada em nossa amostra representa a atenuação de um fator de risco cardiovascular associado à EIM-ACC.18 Observamos uma diminuição de 13% no HDL-colesterol; porém, o tempo de observação do estudo foi muito curto para verificar um benefício do exercício.
Níveis satisfatórios de resistência muscular e flexibilidade são importantes porque refletem a capacidade funcional do organismo. Em contraste, os baixos níveis de aptidão física podem restringir a participação em esportes e atividades físicas diárias, como resultado de limitações reais ou percebidas e são até mesmo preditivos de morbidade e mortalidade.3 Assim, o estado patológico pode causar hipoatividade, o que reduz a aptidão física e a capacidade funcional, levando à maior hipoatividade.3 De acordo com Miller et al.,2 nossos achados mostraram que os exercícios são eficazes no aumento dos níveis de resistência muscular dos membros superiores e na flexibilidade da coluna lombar e dos músculos isquiotibiais. No contexto do HIV pediátrico, há necessidade de intervenções destinadas a melhorar a aptidão física devido à baixa capacidade aeróbica,22,23 flexibilidade,23 potência anaeróbica,24 agilidade e força dos membros inferiores.23
As intervenções com exercícios também podem melhorar a qualidade de vida em indivíduos infectados pelo HIV. Isso foi demonstrado em nosso estudo e corrobora outras investigações envolvendo adultos vivendo com o HIV.1 As intervenções devem incluir atividades lúdicas e divertidas e satisfazer as prioridades da infância e da adolescência. Por exemplo, as crianças precisam se concentrar no desenvolvimento de habilidades motoras, enquanto os adolescentes podem explorar os componentes comportamentais de saúde, aptidão física e atividade física.
Com base em nossos dados preliminares, concluímos que 24 sessões de exercícios aeróbicos e resistidos foram bem-sucedidos em reduzir a pressão arterial e a EIM-ACC e na melhora da resistência muscular, flexibilidade e qualidade de vida em crianças e adolescentes vivendo com o HIV. Estudos futuros com amostras maiores, utilizando intervenções de longo prazo, são necessários para apoiar nossos achados e também poderiam explorar os efeitos dos exercícios em biomarcadores metabólicos e inflamatórios.