versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.5 São Paulo maio 2019 Epub 06-Jun-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190092
O câncer de mama é a neoplasia maligna mais frequente em mulheres no mundo todo e a segunda maior causa de mortalidade por câncer.1 Devido aos avanços na prevenção, detecção precoce e tratamento, a mortalidade por câncer de mama diminuiu em quase 40% nas últimas quatro décadas.1 No entanto, este cenário otimista foi contrabalançado por um risco crescente de doença cardiovascular (DCV) em sobreviventes de câncer de mama. De fato, a DCV é uma das principais causas de mortalidade em sobreviventes de câncer de mama.2-5 Os mecanismos pelos quais esses pacientes apresentam risco cardiovascular aumentado são múltiplos, incluindo os efeitos do próprio câncer (inflamação, estresse oxidativo, estado pró-trombótico, disfunção autonômica, etc.) ou devido aos efeitos colaterais relacionados à quimioterapia e radioterapia (disfunção metabólica, cardiotoxicidade).6 Algumas dessas vias podem ter significância prognóstica: uma investigação anterior mostrou que a modulação autonômica em pacientes com câncer de mama é um preditor independente de risco cardiovascular.6
Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, o estudo "Alterações na Modulação Autonômica Cardíaca em Mulheres com Câncer de Mama em Uso de Inibidores de Aromatase e sua Relação com Variáveis Bioquímicas"7 teve como objetivo explorar não o câncer de mama, mas as associações de um de seus tratamentos (isto é, inibidores da aromatase, IA) com marcadores de disfunção autonômica, bem como parâmetros metabólicos e inflamatórios em mulheres na pós-menopausa. A justificativa para analisar essa terapia específica foi baseada em uma meta-análise recente mostrando que o uso prolongado de IA teve um efeito marginal sobre a ocorrência de um evento de DCV (odds ratio: 1,18, IC 95% = 1,00-1,40) em comparação com placebo.8
Na presente investigação,7 os autores realizaram uma análise transversal comparando dois grupos de participantes: 1) mulheres com câncer de mama, tratadas com IA e 2) mulheres na pós-menopausa sem câncer de mama. Para a avaliação da modulação autonômica, a frequência cardíaca foi registrada batimento a batimento por 30 minutos e a série de intervalos RR obtidos foi utilizada para calcular os índices de variabilidade da frequência cardíaca (VFC): RR médio (ms); SDNN (desvio padrão de todos os intervalos RR normais, expressos em milissegundos) ms; frequência cardíaca (FC) média; RMSSD raiz quadrada das médias quadráticas das diferenças dos intervalos R-R sucessivos (ms), contagem de NN50 (número de pares de NNs sucessivos que diferem em mais de 50 ms); p NN 50% (proporção de NN 50 dividido pelo número total de NNs); RRtri (RR triangular), TINN (interpolação triangular do intervalo NN) ms; SD1ms, SD2 ms, LF (baixa frequência) ms2, HF (alta frequência) ms2. LF; HF ms2. Apesar de algumas críticas, todos esses parâmetros fornecem uma avaliação indireta da função autonômica. Além disso, foram analisados os seguintes parâmetros metabólicos e inflamatórios: glicemia de jejum, triglicérides, HDL-colesterol e proteína C-reativa (PCR).
O estudo mostrou que valores mais baixos dos índices de variabilidade da FC foram observados em pacientes com câncer de mama em relação ao grupo controle. Além disso, houve uma correlação inversa entre os índices SDNN, SD2 e HFms com triglicérides. Não foram encontradas correlações estatisticamente significantes entre os índices de variabilidade da FC e outras variáveis bioquímicas.
Embora este estudo seja oportuno, abordando a crescente conscientização sobre os efeitos cardiovasculares atribuídos ao câncer e seus tratamentos, existem limitações significativas que merecem uma discussão apropriada. Este é um estudo pequeno, transversal, que aborda parâmetros autonômicos e cardiovasculares em pacientes já em tratamento com IA.
A falta de medidas basais (antes de iniciar a terapia com IA) impede que se tire qualquer conclusão sobre se os principais resultados estavam relacionados aos IA, ao câncer de mama em si ou a algum outro fator residual. Em relação a este último, os autores não avaliaram o papel potencial de importantes fatores de confusão (como hipertensão ou uso crônico de medicamentos) que poderiam afetar a modulação autonômica ou os biomarcadores cardiovasculares.
Dito isto, este estudo levantou mais questões do que respostas, mas certamente estimula investigações adicionais para testar a segurança cardiovascular desta importante classe de quimioterapia. Na última década, os IA têm sido a terapia endócrina adjuvante de primeira linha recomendada em mulheres na pós-menopausa com câncer de mama receptor de hormônio positivo; eles são associados à melhora da sobrevida livre de doença e sobrevida global.9 Com base na crescente prevalência de câncer de mama em todo o mundo e na carga relacionada dos sobreviventes, é crucial esclarecer a segurança cardiovascular dos medicamentos relacionados. Os benefícios do tratamento do câncer devem ser equilibrados com a presença e magnitude de efeitos colaterais graves - incluindo eventos cardiovasculares - no acompanhamento de longo prazo.