versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.35 no.11 Rio de Janeiro 2019 Epub 31-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00063518
Innovation in health is characterized by strong interaction with the science and technology sector. Growing interest in the internationalization of research and development leads to questions on opportunities as a function of interactions with other countries, as a mechanism for national capacity-building in innovation. As clinical trials cross national borders and achieve global relevance, networks of relations between the actors become increasingly complex and present themselves as a possibility for characterizing interaction of national innovation systems at the global level, particularly from the point of view of producing activities in science, technology, and innovation in health. This study aimed to analyze the global expansion of clinical trials in order to discuss possible factors related to the interaction between national innovation systems in the countries involved. The methods included literature searches and analysis of secondary data. There is a growing interdependence between national innovation systems, requiring new international innovation structures. New opportunities emerge for the production and international dissemination of knowledge. Clinical trials promote and require interaction between companies, universities and government agencies, proving strategic for structuring national innovation systems in health in the global context.
Keywords: Innovation; Clinical Trial; Science, Technology and Society; Health Sciences, Technology, and Innovation Management
La innovación en salud está caracterizada por una fuerte interacción con el sector de ciencia y tecnología. El creciente interés por la internacionalización de las actividades de investigación y desarrollo conduce al cuestionamiento acerca de oportunidades, en función de las interacciones con otros países, como mecanismo para la construcción de capacidades nacionales de innovación. A medida que los ensayos clínicos atravesaron las fronteras nacionales, tuvieron un alcance global, las redes de relaciones entre los actores implicados se hicieron cada vez más complejas y se presentan como una posibilidad para la caracterización de la interacción de los sistemas nacionales de innovación mundialmente, particularmente, desde el punto de vista de la producción de actividades de ciencia, tecnología e innovación en salud. El objetivo de este trabajo fue estudiar la expansión global de ensayos clínicos, a fin de discutir posibles factores relacionados con la interacción de los sistemas nacionales de innovación de los países implicados. Los métodos empleados incluyeron: investigación bibliográfica y el análisis de datos secundarios. Se constata una creciente interdependencia de los sistemas nacionales de innovación, requiriendo nuevas estructuras internacionales de innovación. Surgen nuevas oportunidades para la producción y la difusión internacional del conocimiento. Los ensayos clínicos promueven y requieren la interacción entre empresas, universidades e instancias gubernamentales, revelándose como un elemento estratégico para la estructuración de los sistemas nacionales de innovación en salud dentro del contexto global.
Palabras-clave: Innovación; Ensayo Clínico; Ciencia, Tecnología y Sociedad; Gestión de Ciencia, Tecnología e Innovación en Salud
As atividades inovadoras no setor saúde são caracterizadas por uma forte interação com o setor de ciência e tecnologia. De um lado, a infraestrutura científica e tecnológica é a origem de um fluxo de informações que suporta o surgimento de inovações em saúde. De outro, as práticas do setor saúde originam um repositório crescente de questões que precisam ser explicadas e compreendidas 1.
O setor saúde é concebido como um dos eixos estruturantes das políticas de proteção social e um dos setores de maior importância econômica mundial, articulando um sistema produtivo de forma interdependente, denominado Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS). Por essa perspectiva, destaca-se a relação sistêmica entre determinados setores industriais (produtivos) e a prestação de cuidados à saúde 2.
Tendo em vista uma compreensão de desenvolvimento inclusivo, a saúde é elemento central para a garantia de bem-estar e crescimento econômico. No setor saúde, é possível convergir desenvolvimento econômico e social 3. Esse setor se constitui simultaneamente em um espaço de inovação tecnológica, de acumulação de capital, de geração de emprego e renda; e também como campo das práticas de atenção à saúde 4.
Tradicionalmente, a inovação é estudada com base na teoria schumpeteriana como a criação de novas oportunidades de investimento, crescimento e emprego. Assim, a inovação se origina na percepção sobre aquilo que possuiria potencial para investimento em desenvolvimento tecnológico 5. Há uma grande diversidade de trabalhos acadêmicos que reportam a inovação e as práticas inovadoras que conduzem ao crescimento econômico, especialmente considerando os países de economia madura (países nos quais as estratégias de crescimento estariam fortemente vinculadas ao grau de desenvolvimento tecnológico). Mais recentemente, a literatura sobre economia da tecnologia tem destacado o caráter sistêmico da inovação, abordada numa perspectiva de sistema de inovação. Também surge com maior expressão, nessa conjuntura, o debate sobre a inovação nos países de economia emergente (países em que as estratégias de crescimento, induzidas pelas exportações, estariam associadas à especialização em recursos primários) 6.
Mediante esses estudos sobre a interação de fatores tecnológicos e sociais no processo de desenvolvimento econômico, foi desenvolvida a abordagem sistêmica das capacidades de gerar e lucrar com a tecnologia 7 dos países. Muitos autores discutem a aplicação do conceito de sistemas nacionais de inovação (SNI) como ferramenta analítica para a tomada de decisão por formuladores de políticas e de estratégias organizacionais. Os SNI se fundamentam em uma importante premissa: “o padrão de inovação difere entre os países e tais diferenças podem ser explicadas por características estruturais sistêmicas” 8 (p. 8). Portanto, esse conceito possibilita a convergência das duas perspectivas originais sobre sistema de inovação, respectivamente propostas por Lundvall 9: a inovação estaria relacionada tanto com o sistema de ciência e tecnologia (perspectiva macro) como com o sistema de produção (perspectiva micro).
Dado o atual panorama de competição internacional, surge uma importante questão: como interagem os SNI no contexto global? É crescente o interesse na internacionalização das atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) dos sistemas de inovação, ao serem analisados mais especificamente os papéis e as atividades de organizações multinacionais e a proeminência de fluxos globais de conhecimento. Isso levantaria o questionamento sobre as oportunidades para os países em função de conexões com outros países, como mecanismo para a construção de capacidades nacionais de inovação. Além de questões próprias de autonomia, influência e controle no plano das relações internacionais 10.
A realização de ensaios clínicos representa grande peso dos gastos em P&D industrial no mercado global de medicamentos. Estima-se que o ciclo da descoberta e desenvolvimento até o lançamento de uma nova droga seria na ordem de 13 anos e meio, com custo aproximado de US$ 1,8 bilhão 11. O conhecimento obtido por meio de ensaios clínicos, sobre a segurança e eficácia de tratamentos, possibilita que sejam comercializadas novas e melhores opções terapêuticas. Portanto, essas pesquisas não são apenas uma atividade científica relevante para o teste de novos tratamentos, mas também representam uma atividade de expressiva magnitude econômica.
A experimentação com seres humanos se caracteriza uma valiosa fonte de produção de conhecimento científico e, consequentemente, de inovação no setor saúde. É uma modalidade de estudo investigativo realizado tanto para responder a questionamentos específicos sobre novos tratamentos quanto para investigar novas maneiras de se utilizar tratamentos já estabelecidos. Dessa maneira, para a realização de tais estudos é exigida uma complexa infraestrutura científica e tecnológica que expressa, em grande medida, a capacidade local de inovação 12.
Os ensaios clínicos se tornaram um campo global de experimentação, especialmente observado nas últimas décadas, ao conectar centros de pesquisa, pesquisadores e pacientes de diferentes países, de diversas regiões do globo 13. Conforme os ensaios clínicos atravessaram as fronteiras nacionais, alcançando uma expressão global, as redes de interação entre os atores envolvidos ficaram cada vez mais complexas.
O objetivo deste estudo foi discutir a expansão global dos ensaios clínicos (panorama internacional) e particularmente daqueles conduzidos no Brasil (panorama brasileiro), confrontando as características dos estudos domésticos e multinacionais. Como pressuposto analítico, reconhece-se que a estruturação da participação dos países para a condução de ensaios clínicos representaria uma imagem da interação dos respectivos SNI em saúde no contexto global de inovação.
A seleção dos dados ocorreu em duas etapas: (a) identificação e caracterização dos registros de estudos clínicos intervencionistas (ensaios clínicos) domésticos e multinacionais conduzidos em todos os países (panorama internacional); (b) identificação e caracterização dos registros de ensaios clínicos domésticos e multinacionais conduzidos no Brasil (panorama brasileiro). Os ensaios clínicos domésticos, aqueles envolvendo apenas um país, retratariam os estudos influenciados pelas instituições e atores locais, do próprio país em questão. Os ensaios clínicos multinacionais, envolvendo três ou mais países, permitiriam capturar os efeitos da dinâmica de interação entre os países participantes das atividades de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) no plano global.
Inicialmente, foi baixada uma base XML com todos os dados de cadastramento dos ensaios clínicos registrados em ClinicalTrials.gov (https://clinicaltrials.gov/) inseridos até maio de 2015. Esse primeiro procedimento identificou 188.076 registros de ensaios clínicos (Figura 1). Foram excluídos os estudos não intervencionistas (identificados pelo campo “tipo de estudo”) ou que não indicavam esse dado, que resultou em 151.628 registros de ensaios clínicos. Em seguida, foram considerados apenas os estudos iniciados no período de 2000 a 2014 (identificados no campo de registro “data de início”), que gerou 128.450 registros de ensaios clínicos.
Fonte: ClinicalTrials.gov (https://clinicaltrials.gov/); elaboração própria.
Figura 1 Etapas da seleção dos registros de ensaios clínicos domésticos e multinacionais. Panoramas internacional e brasileiro, 2010 a 2014.
Os estudos foram divididos em duas categorias, pelo número de países implicados, identificados no campo “países de localização”: (a) estudos envolvendo apenas um país (ensaios clínicos domésticos, n = 112.998); e (b) estudos realizados em três ou mais países (ensaios clínicos multinacionais, n = 10.451). Os estudos realizados em apenas dois países foram excluídos (n = 5.001), a fim de assegurar a comparação exclusivamente entre os dois extremos: domésticos e multinacionais.
Ainda foram considerados apenas os registros dos estudos iniciados do período de 2010 a 2014. Como resultado, foram identificados 58.821 ensaios clínicos domésticos (panorama doméstico internacional), dos quais 638 foram realizados apenas no Brasil (panorama doméstico brasileiro). Em relação aos estudos multinacionais, foram encontrados 4.900 registros (panorama multinacional internacional), dos quais 1.363 tiveram a participação do Brasil (panorama multinacional brasileiro).
Para os registros dos estudos do panorama internacional, os países participantes foram classificados em oito categorias de regiões geográficas: África; América do Norte; América do Sul e Central; Ásia; Europa Ocidental; Europa Oriental; Oceania; e Oriente Médio. Também foram diferenciados em quatro categorias do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organização das Nações Unidas (ONU): Muito alto; Alto; Médio e Baixo. Para os ensaios clínicos multinacionais, foi computado cada país participante.
Em relação às fases de estudo, os ensaios clínicos foram categorizados em: Fase 1; Fase 2; Fase 3; e Fase 4. Os estudos sem indicação de fase ou apresentando especificação diferente (Fase 0; Fase 1/2; Fase 2/3) foram classificados na categoria “outro”.
O tamanho de amostra dos estudos, encontrado no campo “amostra”, foi diferenciado em seis categorias de quantidade de indivíduos participantes: 1-50; 51-100; 101-200; 201-350; 351-1.000; e maior do que 1.000 (mega trials). Os estudos sem indicação do tamanho de amostra, ou indicando zero neste campo, foram classificados na categoria “outro”.
Pelo campo “condição”, os ensaios clínicos foram agrupados em 11 categorias de investigação, por meio da terminologia da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos (NLM): (a) Sistema cardiovascular; (b) Sistema nervoso; (c) Sistema geniturinário; (d) Sistema endócrino; (e) Sistema osteomuscular; (f) Sistema digestivo; (g) Sistema respiratório; (h) Câncer; (i) Doenças infecciosas; (j) Saúde mental; e (k) outro (reunindo as condições investigadas não classificadas naquelas categorias).
Por último, os ensaios clínicos foram classificados em função do patrocinador principal em duas categorias (identificados no campo “patrocinador principal”): indústria e “outro”, quando o patrocinador principal não era indústria farmacêutica.
As variáveis foram comparadas em função de intervalo de 95% de confiança, calculado por teste de proporção.
O número de ensaios clínicos registrados em ClinicalTrials.gov aumentou expressivamente. De 2000 a 2009, o volume do registro anual cresceu cerca de oito vezes, passando de cerca de 1.400 registros em 2000 para pouco mais de 11 mil em 2009, considerando tanto os estudos domésticos como os multinacionais. A partir de 2010, observa-se uma tendência de estabilização do volume de registros anuais, quando a quantidade de ensaios clínicos domésticos se manteve numa proporção de 10 a 14 vezes maior do que os ensaios clínicos multinacionais (Figura 2).
Fonte: ClinicalTrials.gov (https://clinicaltrials.gov/); elaboração própria.
Figura 2 Evolução do número de ensaios clínicos domésticos e multinacionais. Panoramas internacional e brasileiro, 2000 a 2014.
O número de ensaios clínicos realizados no Brasil seguiu essa tendência de aumento entre 2000 a 2014. No entanto, até 2006, a maioria dos registros anuais era de ensaios clínicos multinacionais. Desde então, a proporção dos estudos domésticos passou a ser progressivamente maior, atingindo um valor máximo em 2011.
Tem-se que os estudos de Fase 3, em relação às demais fases, foram cerca de quatro vezes mais frequentes para os ensaios clínicos multinacionais do que para os domésticos (Tabela 1).
Tabela 1 Comparação entre as características dos ensaios clínicos multinacionais e domésticos. Panorama internacional, 2010 a 2014.
Características | Multinacionais | Domésticos | RP * | IC95% ** | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | Inferior | Superior | ||
Fases de estudo | |||||||
Fase 1 | 398 | 8,1 | 8.391 | 14,4 | 0,56 | 0,55 | 0,56 |
Fase 2 | 1.401 | 28,6 | 9.494 | 16,3 | 1,76 | 1,73 | 1,76 |
Fase 3 | 2.092 | 42,7 | 5.558 | 9,5 | 4,48 | 4,42 | 4,48 |
Fase 4 | 349 | 7,1 | 6.934 | 11,9 | 0,60 | 0,58 | 0,60 |
Outro | 660 | 13,5 | 27.904 | 47,9 | 0,28 | 0,28 | 0,28 |
Total | 4.900 | 100,0 | 58.281 | 100,0 | - | - | - |
Tamanho da amostra | |||||||
1-50 | 763 | 15,6 | 25.971 | 44,6 | 0,35 | 0,34 | 0,36 |
51-100 | 682 | 13,9 | 12.803 | 22,0 | 0,63 | 0,62 | 0,65 |
101-200 | 894 | 18,2 | 8.612 | 14,8 | 1,23 | 1,20 | 1,27 |
201-350 | 799 | 16,3 | 4.228 | 7,3 | 2,25 | 2,19 | 2,31 |
35-1.000 | 1.256 | 25,6 | 3.867 | 6,6 | 3,86 | 3,78 | 3,95 |
> 1.000 | 468 | 9,6 | 1.627 | 2,8 | 3,42 | 3,27 | 3,57 |
Outro | 38 | 0,8 | 1.173 | 2,0 | 0,39 | 0,24 | 0,54 |
Total | 4.900 | 100,0 | 58.281 | 100,0 | - | - | - |
Condição investigada | |||||||
Câncer | 1.311 | 26,8 | 9.769 | 16,8 | 1,59 | 1,57 | 1,62 |
Sistema cardiovascular | 457 | 9,3 | 3.519 | 6,0 | 1,55 | 1,49 | 1,61 |
Sistema endócrino | 344 | 7,0 | 2.654 | 4,6 | 1,53 | 1,44 | 1,61 |
Sistema digestivo | 179 | 3,7 | 1.540 | 2,6 | 1,41 | 1,33 | 1,48 |
Doenças infecciosas | 439 | 9,0 | 2.685 | 4,6 | 1,95 | 1,89 | 2,01 |
Sistema musculoesquelético | 319 | 6,5 | 1.804 | 3,1 | 2,10 | 2,00 | 2,20 |
Sistema nervoso | 324 | 6,6 | 2.931 | 5,0 | 1,32 | 1,27 | 1,38 |
Saúde mental | 177 | 3,6 | 2.496 | 4,3 | 0,84 | 0,79 | 0,89 |
Sistema respiratório | 323 | 6,6 | 1.807 | 3,1 | 2,13 | 2,01 | 2,24 |
Sistema urogenital | 154 | 3,1 | 1.962 | 3,4 | 0,92 | 0,87 | 0,97 |
Outra | 873 | 17,8 | 27.114 | 46,5 | 0,38 | 0,37 | 0,40 |
Total | 4.900 | 100,0 | 58.281 | 100,0 | - | - | - |
Regiões (países participantes) *** | |||||||
África | 1.013 | 2,3 | 1.059 | 1,8 | 1,26 | 1,18 | 1,34 |
América do Norte | 5.739 | 13,0 | 28.058 | 48,1 | 0,27 | 0,00 | 0,54 |
América do Sul e Central | 2.754 | 6,2 | 1.821 | 3,1 | 1,99 | 1,98 | 2,00 |
Ásia | 5.816 | 13,1 | 9.029 | 15,5 | 0,85 | 0,68 | 1,01 |
Europa Ocidental | 17.990 | 40,6 | 15.155 | 26,0 | 1,56 | 1,54 | 1,59 |
Europa Oriental | 7.796 | 17,6 | 540 | 0,9 | 19,01 | 18,97 | 19,05 |
Oceania | 1.750 | 4,0 | 635 | 1,1 | 3,63 | 3,11 | 4,15 |
Oriente Médio | 1.402 | 3,2 | 1.984 | 3,4 | 0,93 | 0,41 | 1,45 |
Total | 44.260 | 100,0 | 58.281 | 100,0 | - | - | - |
IDH (países participantes) *** | |||||||
Muito alto | 36.934 | 83,4 | 50.294 | 86,3 | 0,97 | 0,96 | 0,97 |
Alto | 5.392 | 12,2 | 5.965 | 10,2 | 1,19 | 1,16 | 1,22 |
Médio | 1.744 | 3,9 | 1.592 | 2,7 | 1,44 | 1,30 | 1,58 |
Baixo | 190 | 0,4 | 430 | 0,7 | 0,58 | 0,46 | 0,70 |
Total | 44.260 | 100,0 | 58.281 | 100,0 | - | - | - |
Patrocinador principal | |||||||
Indústria | 4.364 | 89,1 | 13.830 | 23,7 | 3,75 | 3,69 | 3,82 |
Outro | 536 | 10,9 | 44.451 | 76,3 | 0,14 | 0,11 | 0,18 |
Total | 4.900 | 100,0 | 58.281 | 100,0 | - | - | - |
IC95%: intervalo de 95% de confiança; IDH: Índice de Desenvolvimento Humano; RP: razão de probabilidades.
Fonte: ClinicalTrials.gov (https://clinicaltrials.gov/); elaboração própria.
* RP = multinacionais/domésticos;
** Calculado usando teste de proporção;
*** Para os estudos multinacionais, considerou-se cada país participante.
Os estudos de maior tamanho de amostra, recrutando a partir de cem indivíduos, foram mais recorrentes para os ensaios clínicos multinacionais. Ainda, os estudos recrutando mais de mil indivíduos foram cerca de três vezes mais presentes também entre os multinacionais.
Em relação às condições de investigação, saúde mental, sistema urogenital e as condições variadas (reunidas na categoria “outra”) foram mais prevalentes para os estudos domésticos. Distingue-se que a categoria “outra” ocorreu quase três vezes mais para os domésticos.
América do Norte, Ásia e Oriente Médio tiveram maior proporção de participação nos ensaios clínicos domésticos do que nos multinacionais. Do mesmo modo, os países com IDH muito alto também tiveram maior proporção de participação nos ensaios clínicos domésticos.
A indústria farmacêutica foi o patrocinador principal dos estudos multinacionais numa proporção quase quatro vezes maior em comparação com a proporção de patrocínio principal dos ensaios clínicos domésticos.
Os estudos de Fase 3 foram quase cinco vezes mais frequentes, em relação às demais fases, tendo em vista os ensaios clínicos multinacionais. Por outro lado, as fases variadas ou não indicadas (categoria de fase “outra”) foram consideravelmente mais prevalentes entre os estudos domésticos (Tabela 2).
Os estudos de maior tamanho de amostra, recrutando mais de mil indivíduos, foram 15 vezes mais prevalentes, por referência a outros tamanhos de amostra, considerando os ensaios clínicos multinacionais.
Tabela 2 Comparação entre as características dos ensaios clínicos multinacionais e domésticos que tiverem a participação do Brasil. Panorama brasileiro, 2010 a 2014.
Características | Multinacionais | Domésticos | RP * | IC95% ** | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | Inferior | Superior | ||
Fases de estudo | |||||||
Fase 1 | 12 | 1,9 | 64 | 4,7 | 0,40 | 0,31 | 0,49 |
Fase 2 | 102 | 16,0 | 132 | 9,7 | 1,65 | 1,63 | 1,67 |
Fase 3 | 434 | 68,0 | 202 | 14,8 | 4,59 | 4,53 | 4,65 |
Fase 4 | 49 | 7,7 | 221 | 16,2 | 0,47 | 0,46 | 0,49 |
Outro | 41 | 6,4 | 744 | 54,6 | 0,12 | 0,10 | 0,13 |
Total | 638 | 100,0 | 1.363 | 100,0 | - | - | - |
Tamanho da amostra | |||||||
1-50 | 39 | 6,1 | 641 | 47,0 | 0,13 | 0,12 | 0,14 |
51-100 | 43 | 6,7 | 363 | 26,6 | 0,25 | 0,24 | 0,27 |
101-200 | 63 | 9,9 | 195 | 14,3 | 0,69 | 0,66 | 0,72 |
201-350 | 96 | 15,0 | 78 | 5,7 | 2,63 | 2,57 | 2,69 |
351-1.000 | 230 | 36,1 | 43 | 3,2 | 11,43 | 11,34 | 11,51 |
> 1.000 | 150 | 23,5 | 21 | 1,5 | 15,26 | 15,11 | 15,41 |
Outro | 17 | 2,7 | 22 | 1,6 | 1,65 | 1,50 | 1,80 |
Total | 638 | 100,0 | 1.363 | 100,0 | - | - | - |
Condição investigada | |||||||
Câncer | 193 | 30,3 | 97 | 7,1 | 4,26 | 4,23 | 4,28 |
Sistema cardiovascular | 53 | 8,3 | 177 | 13,0 | 0,64 | 0,58 | 0,70 |
Sistema endócrino | 56 | 8,8 | 66 | 4,8 | 1,82 | 1,73 | 1,91 |
Sistema digestivo | 25 | 3,9 | 26 | 1,9 | 2,04 | 1,97 | 2,12 |
Doenças infecciosas | 73 | 11,4 | 71 | 5,2 | 2,19 | 2,13 | 2,25 |
Sistema musculoesquelético | 57 | 8,90 | 95 | 7,0 | 1,28 | 1,17 | 1,38 |
Sistema nervoso | 30 | 4,7 | 80 | 5,9 | 0,80 | 0,75 | 0,85 |
Saúde mental | 13 | 2,0 | 74 | 5,4 | 0,37 | 0,32 | 0,42 |
Sistema respiratório | 34 | 5,3 | 70 | 5,1 | 1,03 | 0,92 | 1,14 |
Sistema urogenital | 20 | 3,1 | 65 | 4,8 | 0,65 | 0,60 | 0,70 |
Outro | 84 | 13,2 | 542 | 39,8 | 0,33 | 0,32 | 0,35 |
Total | 638 | 100,0 | 1.363 | 100,0 | - | - | - |
Patrocinador principal | |||||||
Indústria | 605 | 94,8 | 168 | 12,3 | 7,69 | 7,63 | 7,76 |
Outro | 33 | 5,2 | 1.195 | 87,7 | 0,06 | 0,03 | 0,09 |
Total | 638 | 100,0 | 1.363 | 100,0 | - | - | - |
IC95%: intervalo de 95% de confiança; RP: razão de probabilidades.
Fonte: ClinicalTrials.gov (https://clinicaltrials.gov/); elaboração própria.
* RP = multinacionais/domésticos;
** Calculado usando teste de proporção.
Em relação às condições de investigação, câncer foi cerca de quatro vezes mais presente para os estudos multinacionais. Já sistema cardiovascular, sistema nervoso, saúde mental, sistema urogenital foram as condições mais investidas nos estudos domésticos.
A indústria farmacêutica foi o patrocinador principal dos ensaios clínicos multinacionais numa proporção quase oito vezes maior em comparação com aquela dos ensaios clínicos domésticos.
Os ensaios clínicos se tornaram um campo global de experimentação, especialmente observados a partir dos anos 2000. Notadamente, deslocaram-se os sítios de estudos para além das fronteiras dos países da América do Norte e da Europa Ocidental.
Ressalta-se que a expansão global dos ensaios clínicos significou ao mesmo tempo ter cada vez mais países realizando estudos, observado pelo aumento progressivo do número total de países participantes, e haver gradativamente maior interação nas redes globais de ensaios clínicos multinacionais. A necessidade de testar novas intervenções em uma variedade maior de contextos populacionais e a busca por oportunidades de custos mais baixos para a condução dos estudos são reconhecidos como grandes fatores impulsionadores da migração global de ensaios clínicos 14,15.
Desse modo, fatores científicos e regulatórios se combinaram para impulsionar a multinacionalização dos ensaios clínicos 16. Passaram a ser exigidas avaliações em sítios geograficamente diferentes para garantir que o medicamento seja seguro e funcione da mesma forma em diferentes grupos étnicos. Esses requisitos normativos mais restritivos se tornaram indispensáveis tanto para os estudos conduzidos por empresas do setor farmacêutico (estudo comercial), quanto para aqueles conduzidos por centros de pesquisa sem fins lucrativos (estudo acadêmico).
Assinala-se, ainda, que a expansão global dos ensaios clínicos também foi estimulada por razões econômicas. Os ensaios clínicos, sejam eles comerciais ou acadêmicos, estão cada vez mais custosos e têm sido cumpridos num prazo progressivamente maior 17. Porém, ainda restam diferenças substancias entre a globalização dos ensaios clínicos patrocinados pela indústria farmacêutica e a globalização dos estudos promovidos por instituições acadêmicas. Os ensaios clínicos comerciais são cerca de dez vezes mais internacionais (multinacionais) do que os ensaios clínicos acadêmicos, que são majoritariamente estudos domésticos (conduzidos em um único país) 18.
É expressivo o aumento do número de ensaios clínicos realizados no Brasil nos últimos anos, contudo o país carece de estudos sobre a efetiva participação brasileira no contexto global de ensaios clínicos 19,20,21,22,23. Em geral, tem havido maior interesse pelo debate sobre importantes aspectos regulatórios e éticos da condução de estudos clínicos nacionais. Nesse sentido, destaca-se a necessidade de se discutir o papel do Brasil como país participante de estudos clínicos, levando em conta a sua inserção no contexto global de inovação.
Nos últimos anos, o Brasil, juntamente com outros países de mercados emergentes, passou a atrair um número significativo de ensaios clínicos. Diversos fatores têm sido apontados como responsáveis por esse crescimento na participação da pesquisa clínica. Entre outros, destacam-se a extensão e a diversificação populacional; a existência de sistema de saúde com acesso universal, considerável ocorrência, no Brasil, de doenças que são prevalentes nos países mais ricos; e normas regulatórias e éticas compatíveis com critérios internacionais. Esses fatores, em conjunto, contribuíram para que o Brasil seja avaliado como um país com grande potencial de recrutamento de sujeitos para os ensaios clínicos 24.
É preciso destacar que o processo regulatório para a realização de ensaios clínicos no Brasil exige a submissão em duas instâncias do Ministério da Saúde: aprovação ética pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e aprovação logística pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Na realidade, dois comitês de ética deverão ser acionados para apreciação da mesma documentação. Essa é uma particularidade brasileira, tendo em vista que a maioria dos países exige uma única etapa de aprovação ética.
Como consequência desse processo regulatório brasileiro, o período médio de análise dos protocolos de ensaios clínicos é na ordem de três vezes maior do em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o prazo tem sido de 3 a 4 meses; na Argentina, de aproximadamente seis meses. No Brasil, esse tempo pode ultrapassar os 12 meses 21. Todavia, vale ressaltar que, uma vez obtidas as aprovações regulamentares, os centros brasileiros de investigação clínica apresentam destacado desempenho em relação à alta capacidade de recrutamento de sujeitos de pesquisa 25.
Intuitivamente, o Brasil como país populoso poderia ser mais atrativo por possuir maior potencial de recrutamento de sujeitos de pesquisa e grande potencial de mercado consumidor. Entretanto, o tamanho do país não explicaria completamente esse fenômeno da alocação preferencial de estudos, a julgar pelo destaque da participação de países com pequena população e a baixa atuação de países com grandes populações. A capacidade de julgamento sobre os critérios de recrutamento e exclusão de sujeitos de pesquisa seria uma das questões mais relevantes que influenciaria na seleção dos países participantes desses estudos 26,27.
Conforme ressaltado anteriormente, existem importantes fatores que motivam a crescente internacionalização dos ensaios clínicos, destacando-se, entre outros, a necessidade de melhoria da eficiência da inovação do setor farmacêutico (necessidade da redução da duração e do custo dos estudos) e o cumprimento de exigências ético-regulatórias cada vez mais restritas (diversificação étnica e etária das populações de estudo, entre outras).
Por um lado, a expansão global dos ensaios clínicos significou ter cada vez mais países realizando estudos, observado pelo aumento progressivo do número total de países participantes. Por outro, revelou distintas possibilidades de acesso às capacidades inovadoras dos países participantes. A comparação das características dos ensaios clínicos domésticos e multinacionais sugere que operaram distintas forças promotoras dessa expansão global (Quadro 1).
Fonte: ClinicalTrials.gov (https://clinicaltrials.gov/); elaboração própria.
Quadro 1 Comparação das características dos ensaios clínicos multinacionais e domésticos. Panoramas internacional e brasileiro, 2010 a 2014.
Os ensaios clínicos domésticos foram menos patrocinados pela indústria farmacêutica do que os multinacionais. Por conseguinte, esses estudos contaram com a maior presença de outras organizações, tais como universidades e agentes governamentais. Necessitaram acessar maior capacidade científica, estudos envolvendo fases mais precoces (Fases 1 e 2), e houve maior participação dos países de economia madura.
Em contraste, os estudos multinacionais migraram progressivamente dos países de economia tradicional em direção aos países de economia emergente. Nota-se que foram francamente patrocinados pela indústria farmacêutica e, de acordo com as características desses ensaios clínicos, abrangeram fases mais avançadas de estudo (Fases 3 e 4), acessando, dessa forma, capacidades de CT&I menos intensivas.
Provavelmente, o interesse desse descolamento geográfico dos ensaios clínicos multinacionais foi orientado pela procura de mais “matéria-prima” (sujeitos de pesquisa) e de novos mercados consumidores dos medicamentos investigados. Apesar da maior inclusão de países menos favorecidos, os países mais desenvolvidos permaneceram nas posições de maior dominância. Em outras palavras, ter cada vez mais países participantes, de diferentes regiões, praticamente não alterou as posições de maior centralidade no interior dessas redes de ensaios clínicos multinacionais.
Os ensaios clínicos representariam um elemento central para a estruturação dos sistemas de inovação em saúde, pois estariam implicados na elaboração dos indícios sobre as distintas dimensões que definem uma inovação 28: (a) as fontes da inovação; (b) o grau de descontinuidade introduzido pela inovação; e (c) os impactos da inovação. Dito de outro modo, seja para testar as possibilidades de um novo produto, ou de um novo uso para um produto existente, com potencial de inovação, os ensaios clínicos deveriam ser reconhecidos como uma atividade estratégica para os sistemas de inovação em saúde.
A expansão global dos ensaios clínicos é resultante de um fenômeno ainda mais amplo: a crescente interdependência dos SNI (em saúde). Tanto os países de economia madura, como os países de economia emergente passaram a acessar cada vez mais as diversas competências dos centros estrangeiros de pesquisa, constituindo, assim, redes internacionais de CT&I. Em particular, para os países de economia emergente, o acesso a essas redes globais de inovação representaria uma possibilidade de compensar as inúmeras fragilidades dos respectivos SNI 29.
A ação dos agentes nacionais se torna ainda mais relevante, sobretudo quando se destaca o papel do Estado como empreendedor e como promotor das políticas de CT&I 30. Dado o grau crescente de internacionalização e interação dos SNI, as políticas e as instituições nacionais desempenhariam um papel crescente de destaque para influenciar a posição que um determinado país irá ocupar no contexto global. Se de um lado as interações internacionais poderiam melhorar a capacidade nacional de inovação, de outro, reflexamente, essa capacidade nacional conformaria as possibilidades de melhor inserção no interior dessas redes globais de CT&I. É preciso lembrar que estar localizado no ponto estratégico de uma rede é, em certa medida, mais importante que estar localizado em algum determinado nível hierárquico superior 31. Desse modo, aumentar a consciência sobre a estruturação das interações dos diferentes países no interior de tais redes globais de CT&I contribuiria para orientar as políticas e as estratégias das instituições e da colaboração entre os SNI.
Apesar da crescente interdependência dos SNI, conforme sugerido pelas características dos ensaios clínicos multinacionais, as atividades que mais se internacionalizaram foram justamente aquelas que exigiram acessar capacidades menos intensivas de CT&I. Essa internacionalização foi liderada majoritariamente pelo setor da indústria farmacêutica. Em contraste, as capacidades de inovação mais intensivas foram aquelas que ficaram mais concentradas geograficamente, como indicam as características dos ensaios clínicos domésticos.
Por fim, pontua-se que a interação entre os SNI, mediante internacionalização dos ensaios clínicos, criaria novas estruturas de inovação em saúde e novas oportunidades para a difusão internacional do conhecimento e produção.