versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.4 São Paulo out./dez. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao2184
Os cuidados odontológicos voltados para a primeira infância, realizados na prática, existem há algumas décadas. Em 1929, Pereira(1), no livro Educação dentária da criança, já enfatizava a necessidade de orientação à família para os cuidados odontológicos mais precocemente e ressaltava a importância do trabalho integrado com o pediatra e a orientação de que a criança não poderia dormir sem que fizesse a higiene dos dentes. Embora essa prática aconteça desde o início do século passado no Brasil e em outras partes do mundo, apenas recentemente esses cuidados começaram a receber maior atenção por parte dos cirurgiões dentistas. Isso se deve à alta prevalência de cárie dentária observada em crianças de tenra idade(2).
A cárie precoce da infância (CPI) é considerada qualquer forma de cárie dentária que ocorre em lactentes e crianças pré-escolares(3), na qual existe associação com alimentação ao dormir, consumo de açúcar e higiene deficiente(4). O risco de adquirir a cárie dentária é um processo dinâmico(5), por isto é necessário, em cada consulta, a redeterminação do mesmo(6).
Segundo Walter e Nakama(7), o grande pico da prevalência da cárie dentária na primeira infância ocorre entre o 13º e o 24º mês de vida da criança. Logo, a idade ideal para se iniciar a atenção odontológica e prevenir a CPI é anterior aos 12 meses, para que seja possível intervir antes do processo carioso, e mesmo quando ela estiver presente, e permitir a paralisação e reversão do quadro em sua fase inicial de manifestação(7).
Assim, a prevenção realizada no programa Odontologia para Bebês deve ter como objetivo não só evitar a instalação da doença cárie, mas também disponibilizar manobras que devem ser realizadas para evitar consequências danosas quando esta já estiver instalada, limitando o dano(2). Entretanto, mesmo que todas as medidas preventivas sejam adotadas como rotina na clínica, a cárie dentária que ocorre precocemente ainda é um problema comum na dentição decídua(8).
Segundo o levantamento epidemiológico realizado pelo Ministério da Saùde(9), cerca de 27% das crianças com idade variando entre 18 a 36 meses de idade já possuem pelo menos 1 dente decíduo cariado. Aos 5 anos de idade essa proporção chega a 60%.
Atualmente, existem programas de atenção odontológica precoce em alguns países(10,11), assim como em vários lugares no Brasil(8,12,13).
Buscando uma diminuição no índice de cárie na primeira infância e os consequentes danos por ela causados, foi criado, em 1996, na Prefeitura Municipal de Jacareí (SP), um programa de odontologia destinado ao atendimento de lactentes, programa este denominado de Bebê-Clínica.
O Bebê-Clínica executa um trabalho enfocando a promoção de saùde. É organizado inicialmente com o intuito de orientar a população a procurar a assistência odontológica no primeiro ano de vida. Posteriormente, procura-se educar os pais e a família, por meio de palestras e consultas individuais, para motivá-los em relação à adoção de medidas preventivas e à realização de tratamento preventivo clínico e caseiro.
A necessidade de estudos que avaliam o impacto de programas odontológicos de atenção precoce justifica a realização do presente estudo. Assim, a hipótese deste é a de que a participação de um programa de atenção precoce Odontologia para Bebês interfere positivamente na saùde bucal de indivíduos na faixa etária entre 0 a 48 meses.
Analisar a experiência de cárie dentária em crianças atendidas no programa de atenção precoce Odontologia para Bebês e, consequentemente, analisar a importância desse programa na primeira infância.
Trata-se de um estudo observacional transversal realizado na rede de saùde pública na cidade de Jacareí (SP), aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Odontologia de São José dos Campos da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), protocolo n.º 088/2007-PH/CEP. Este município dispõe de uma Bebê-Clínica que é referência no atendimento odontológico a crianças de 0 a 48 meses de idade.
Participaram do estudo 300 crianças(14), na faixa etária entre 0 e 48 meses, sem distinção de gênero ou raça e com estado de saùde normal. O cálculo amostral foi obtido segundo recomendação de Antunes e Peres(14). Foram divididas, aleatoriamente, em dois grupos, G1, denominado Bebês não participantes do programa (n = 100), crianças da população que nunca fizeram parte de programas odontológicos preventivos, e G2 Bebês do programa (n = 200), crianças que recebem atenção odontológica precoce no programa preventivo para bebês. Ambos os grupos (G1 e G2) foram divididos em duas faixas etárias, de 0 a 24 meses e de 25 a 48 meses de idade (Tabela 1). Em todas as consultas de rotina do programa, as crianças do grupo G2 receberam: orientação de higienização bucal e educação quanto aos hábitos alimentares, além de limpeza profissional com pasta de pedra-pomes e água, com o auxílio de taça de borracha montada em baixa rotação e aplicação tópica de gel de fluoreto de sódio a 2%, conforme a necessidade da criança(15). Todos os indivíduos receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que foi assinado por seus responsáveis, autorizando sua participação na pesquisa.
Tabela 1 Dados referentes à prevalência de cárie dentária e ao índice ceod e ceod modificado em todos os grupos
Grupos | Número de indivíduos | Prevalência de cárie dentária | Índice ceod | Índice ceod modificado (média) |
---|---|---|---|---|
G1 n total | 100 | 63 | 3,45 | 6,53 |
G1 n total 0 a 24 meses | 58 | 60,24 | 1,65 | 4,31 |
G1 n total 25 a 48 meses | 42 | 90,67 | 5,92 | 9,59 |
G2 n total | 200 | 22 | 0,66 | 2,01 |
G2 n total 0 a 24 meses | 97 | 11,34 | 0,32 | 1,25 |
G2 n total 25 a 48 meses | 103 | 32,03 | 0,98 | 2,72 |
Os critérios de elegibilidade para este estudo foram: inclusão → para G1 e G2: faixa etária de 0 a 48 meses de idade, sem distinção de gênero ou raça: para o G1: nunca ter participado de nenhum programa de saùde bucal e para G2: participar do programa há pelo menos 3 meses, e ter, no mínimo, os incisivos centrais superiores e inferiores presentes na cavidade bucal. Foram critérios de exclusão → para G1 e G2: na faixa etária de 0 a 48 meses de idade, crianças que apresentassem doenças sistêmicas, síndromes que pudessem levar o paciente a ter manchas no esmalte dentário.
As crianças elegíveis foram selecionadas aleatoriamente por meio de sorteio (método cara-coroa).
As avaliações foram realizadas por um único operador treinado e calibrado (k = 0,90), sendo o exame clínico realizado pelo método táctil e visual, com o uso de sonda de ponta romba e espelho plano. As crianças de até 24 meses de idade foram avaliadas em uma Macri (maca específica para crianças)(2). Já as crianças de faixa etária entre 25 e 48 meses foram examinadas na cadeira odontológica. Todos os exames foram realizados com o auxílio de luz artificial (refletor). Uma vez detectada a necessidade de tratamento curativo em todas as crianças da amostra, o mesmo foi realizado na Bebê-Clínica ou nas Unidades Básicas de Saùde (UBS) do Município de Jacareí (SP).
A experiência de cárie dentária avaliada, neste estudo, por meio da prevalência e dos índices ceod (índice de dentes decíduos cariados, com extração indicada e obturado) e ceod modificado (índice que inclui manchas brancas ativas, as quais indicam doença cárie incipiente, sem cavitação) foram comparadas estatisticamente, usando os testes estatísticos paramétricos t de Student pareado, Mann-Whitney e χ2, utilizando o programa estatístico Bioestatic 5.0, versão 2008, num nível de significância de 5%.
Para análise de amostras pareadas e correlacionadas, como os índices ceod e ceod modificado dentro de um mesmo grupo, aplicou-se o teste t de Student pareado. Para o caso de amostras independentes, utilizou-se Mann-Whitney para os índices ceod e ceod modificado de diferentes grupos, e o χ2 para análise da prevalência.
Houve diferença estatística para a prevalência de cárie dentária na população com e sem atenção odontológica precoce, na faixa etária de 0 a 48 meses (p < 0,0001 < 0,05) (Figura 1). Os dois grupos, G1 e G2, comparados apresentam diferença estatística, e, nos dois casos, os maiores valores observados foram para G1 (ceodG1 (3,45 ± 3,84) e ceodG2 (0,66 ± 1,57)). Também, foram encontradas diferenças entre os índices ceod e ceod modificado, dentro de cada grupo, segundo teste estatístico paramétrico t de Student pareado (G1: p < 0,0001; G2: p < 0,0001).
Figura 1 Gráfico da prevalência de cárie dentária em crianças de 0 a 48 meses de idade, de todos os grupos
Os dados obtidos foram primeiramente relacionados quanto à presença ou não de cárie dentária (prevalência de cárie e índice ceod) e presença ou não de cárie dentária somadas às manchas brancas que correspondem à atividade de cárie (ceod modificado) e, posteriormente, correlacionados entre si, comparando os resultados obtidos em G1 e G2.
Os dados obtidos no presente estudo confirmaram a hipótese nula de que a participação em um programa de atenção precoce Odontologia para Bebês interferiu positivamente na saùde bucal das crianças entre 0 a 48 meses de idade.
Com o intuito de analisar, comparar e discutir os achados deste estudo optou-se, inicialmente, pela análise da prevalência da cárie dentária. A população não participante do programa, G1, e a população participante do programa, G2, que correspondem à idade de 0 a 48 meses, foram subdivididas em dois grupos, segundo a faixa etária. O primeiro, de 0 a 24 meses e o segundo, de 25 a 48 meses. Essa divisão considerou o aspecto tempo em que os dentes decíduos irromperam, visto que há uma relação direta entre idade da criança e a exposição dos dentes aos desafios cariogênicos(2). Adiciona-se ainda o fato de que a aquisição inicial de Streptococcus do grupo mutans por crianças ocorre numa faixa etária bem definida (entre 19 e 31 meses de idade) denominada de “janela de infectividade”(16). No entanto, sabe-se, mais recentemente, que a contaminação vertical (mãe-filho) e a horizontal (creches) iniciam-se ainda mais precocemente, já no primeiro ano de vida, apresentando formações de colônias definidas e sugerindo que o período para a ocorrência dessa “janela” possa ocorrer mais cedo em algumas crianças(17,18). A presença de Streptococcus do grupo mutans em lactentes de 6 meses de idade está relacionada a fatores como hábitos de sucção de dedos contaminados, contato salivar, divisão de utensílios como bicos e colheres, e por terem sua comida experimentada e/ou resfriada (mediante sopro) anteriormente por um adulto. Após os 13 meses de vida, já podem estar contaminados, de acordo com os hábitos, costumes e grau de contaminação cariognica da família(17,18).
Na amostra da população não participante do programa, G1, na faixa etária de 0 a 48 meses, a qual foi analisada em duas partes, de 0 a 24 meses e de 25 a 48 meses, foram encontrados acentuados percentuais de prevalência de cárie dentária (incluindo as lesões de mancha branca ativa). Esses resultados corroboram a literatura(6,19–21), demonstrando claramente a necessidade de atuação odontológica precoce, quando se pretende trabalhar com a manutenção da saùde e a prevenção das doenças(8). Esses achados sustentam-se em uma pesquisa nacional realizada em 2003(9), na qual demonstrou-se que, na faixa etária de 18 a 36 meses, existe, em média 1,0 dente cariado por criança (sem inclusão de lesões de manchas brancas).
Em contrapartida, na amostra da população participante do programa, G2, nas faixas etárias de 0 a 48 meses, de 0 a 24 meses e de 25 a 48 meses, foram encontrados valores inferiores de prevalência de cárie. Percentual incontestavelmente menor, indicativo da influência positiva das ações preventivas implementadas pelo programa, corroborando Fracasso et al.(12), que concluíram, em seu estudo, que um programa preventivo de atendimento a crianças foi mais efetivo que o atendimento de demanda espontânea. Confirmado por Plutzer et al.(22), os quais comprovaram que um programa de promoção da saùde bucal baseado em rechamadas periódicas de orientação preventiva iniciado durante a gravidez e em crianças no primeiro ano de vida foi bem-sucedido para reduzir a incidência de CPI(22).
Os resultados encontrados do índice ceod e o ceod modificado (incluindo as lesões de mancha branca) para as crianças estudadas, dos grupos G1 e G2, sustentam a efetividade do programa de Odontologia para Bebês, dentro da Bebê-Clínica, do Município de Jacareí, desenvolvida nos moldes da Bebê-Clínica, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), com eficiência e eficácia já comprovadas(2,21).
Os resultados mostraram que há uma diferença estatisticamente significativa da manifestação da doença cárie na população não participante, G1, quando comparada com a população participante do programa, G2. Deduz-se, conforme confirmam Morinushi et al.(10), que o aparecimento da cárie em crianças de baixa idade está, em geral, diretamente relacionado à desinformação das mães, as quais necessitam de reforço para que ocorra efetivamente a prevenção(10). Além disso, o fato da saúde e o bem-estar dos lactentes e crianças pequenas serem dependentes das práticas e crenças de seus responsáveis, vários fatores psicossociais e comportamentais da CPI diferem dos fatores de risco para cárie dentária em crianças mais velhas e em adultos(3,23).
No presente estudo, o incremento de cárie ocorreu com o aumento da idade, como foi visto quando comparados os grupos G1 − 0 a 24 meses – e G1 – 25 a 48 meses, e G2 − 0 a 24 meses – e G2 – 25 a 48 meses, dados estes que estão de acordo com a literatura(19,20,21,24). Esses resultados confirmam, assim, que o período mais suscetível para o aumento da prevalência de cárie dentária situa-se nos 3 primeiros anos de vida(2,19,21). Os resultados sugerem que medidas de prevenção e controle da cárie dentária devem ser enfatizadas no programa, principalmente, no período entre 1 e 3 anos de idade(25).
A lesão de cárie em dentes decíduos é encarada com normalidade e considerada uma fatalidade por muitas mães, já que elas desconhecem que essa alteração constitui uma doença infecciosa transmissível, passível de prevenção e que pode ser controlada evitando-se a contaminação entre as mães e seus filhos(17,18).
A educação prévia dos pais, eliminando-se os fatores de risco em idade precoce, é uma das condutas mais importantes na prevenção da cárie(2,26). O acesso aos programas desde o nascimento poderá minimizar as disparidades para essa população, sendo que esforços deverão ser direcionados aos determinantes socioeconômicos, comportamentais e comunitários da saùde bucal(6). Alguns relatos da literatura mostram que comunidades de baixa renda, especialmente aquelas que possuem baixa escolaridade materna, apresentam maiores percentuais de prevalência da doença cárie(25).
Sugere-se, embasado nas diferenças entre a experiência de cárie dentária, neste estudo, entre G1 e G2, que há necessidade do desenvolvimento de programas educativos, voltados para os pais, e preventivos, voltados para os lactentes, procurando estabelecer hábitos saudáveis para evitar a contaminação da cavidade bucal da criança e oferecer a verdadeira promoção de saùde(17,18).
A partir dos dados levantados, recomenda-se a atenção odontológica ao lactente, no intuito de manter sua saùde, mesmo antes de prevenir a doença, por meio da educação. A atenção odontológica à criança deve ser vista nos programas de saùde pública como uma possibilidade prática, simples, abrangente, de baixo custo e, principalmente, eficaz, visto que a maioria dos pais desconhece o risco de crianças pequenas desenvolverem doenças, tais como a cárie dentária. Portanto, devem ser instruídos sobre os cuidados necessários para evitá-la, uma vez que, quanto mais precocemente se estabeleçam barreiras preventivas, mais efetivo será o resultado final(27). Sabe-se que o momento mais oportuno para se fazer educação em saùde é quando a mulher está grávida(6). Nesse processo, é imprescindível o apoio dos pediatras, médicos da família, assim como dos ginecologistas e outros prestadores de serviços médicos que frequentemente atendem crianças durante a infância e a primeira infância. Esses profissionais são ideais para informar as crianças e seus responsáveis quanto ao risco da doença cárie e encaminhá-los, o mais precocemente possível, para acompanhamento preventivo e atendimento odontológico, quando necessário(28).
No que diz respeito aos intervalos entre as consultas, a Academia Americana de Odontologia Pediátrica(5) e a Sociedade Brasileira de Pediatria(29) sugerem que, no primeiro ano de vida, as consultas devem ser feitas no 1º mês (se necessário avaliação em relação a anomalias/amamentação), 4º mês, 8º mês e 12º mês. No 2° ano de vida, devem ser feitas 4 consultas: aos 15 meses, 18 meses, 21 meses e 24 meses. No 3º ano de vida, também, deve-se acompanhar por 4 vezes ao ano. E dos 36 meses (3 anos) aos 5 anos de idade, 2 vezes ao ano. Recomenda-se também que, em cada uma dessas consultas de acompanhamento, seja feita a avaliação da categoria de risco da criança para a manifestação da doença cárie e, somadas às informações de entrevistas familiares e exames bucais(2,30), se necessário for, deve ser feito um planejamento preventivo individualizado da criança.
A participação em um programa de atenção precoce Odontologia para Bebês interferiu positivamente na saùde bucal das crianças, contribuindo para a inserção de bons hábitos de dieta e higiene bucal na rotina dessas crianças e suas famílias, sendo, portanto, essencial para a saúde das mesmas.