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Experiência do cônjuge diante da mulher com câncer de mama e em quimioterapia: estudo de caso qualitativo

Experiência do cônjuge diante da mulher com câncer de mama e em quimioterapia: estudo de caso qualitativo

Autores:

Rhyquelle Rhibna Neris,
Márcia Maria Fontão Zago,
Maria Ângela Ribeiro,
Juliana Pena Porto,
Anna Cláudia Yokoyama dos Anjos

ARTIGO ORIGINAL

Escola Anna Nery

versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465

Esc. Anna Nery vol.22 no.4 Rio de Janeiro 2018 Epub 16-Ago-2018

http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0025

INTRODUÇÃO

No Brasil, estimam-se 59.700 casos novos de câncer de mama, para cada ano do biênio 2018-2019, tendo risco estimado de 56,33 casos a cada 100 mil mulheres. Desconsiderando os tumores de pele não melanoma, esse tipo de câncer também é o primeiro mais frequente nas mulheres das regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.1

Dentre as terapias utilizadas para o câncer de mama, a quimioterapia, pelo caráter sistêmico, é a que mais gera reações adversas e, consequentemente, diminuição da qualidade de vida das pacientes; logo, é possível evidenciar mudanças também na vida familiar e do casal, que sofrem repercussões em todos os aspectos do cotidiano da vida.2,3

Nesse contexto, a presença da família adquire maior importância, assumindo relevante papel colaborativo no enfrentamento da doença, dos tratamentos e suas repercussões. Estudos apontam que a família é considerada a principal fonte de suporte psicológico, emocional e social. Dessa forma, o câncer é uma doença da família, que, diante do diagnóstico de um membro, mudam-se as experiências de vida dos demais, incluindo o cônjuge.4,5

As repercussões do câncer no contexto da família das pacientes envolvem preocupações financeiras, problemas no trabalho e dificuldades nos relacionamentos. Além disso, o câncer pode ter um efeito negativo sobre os casamentos e os casais podem se divorciar devido a essa sobrecarga e mudanças na família.6

Viver como cônjuge de uma mulher com câncer tem sido descrito na literatura da mesma forma que viver na sombra da doença. Estudos recentes apontam que um ano após o diagnóstico de câncer de suas esposas, os cônjuges tiveram significativamente mais transtornos do humor, reações ao estresse grave e doença cardíaca isquêmica. Os níveis de ansiedade são altos, a incerteza do futuro e a possível recorrência do câncer abalam a vida desses parceiros. Eles se sentem vulneráveis diante do câncer e não conseguem lidar com o sofrimento de suas esposas.4,5

Em revisão integrativa da literatura, que teve como objetivo conhecer as percepções e as experiências de cônjuges de mulheres com câncer de mama e as formas de lidar diante das dificuldades, poucos foram os estudos encontrados na literatura nacional e internacional abordando o objetivo proposto, apontando para uma lacuna no conhecimento. Dessa forma, os achados da revisão remetem à necessidade de investir em pesquisa neste enfoque.5

Considerando que as influências socioculturais repercutem significativamente no conhecimento, no comportamento, nas formas de lidar com as diferentes situações da vida e nos sentidos que os cônjuges atribuem à experiência, buscou-se neste estudo responder à seguinte questão: como o cônjuge da mulher que tem câncer de mama constrói os sentidos da experiência da quimioterapia oncológica de sua esposa? Para respondê-la, foi definido como objetivo identificar os sentidos atribuídos à experiência do cônjuge da mulher com câncer de mama e em quimioterapia.

MÉTODO

Estudo descritivo, qualitativo, com orientação teórico-metodológica da antropologia médica e desenvolvido pelo método de estudo de caso etnográfico.

A antropologia médica busca integrar saúde, doença e cultura; considera saúde como resultado da articulação entre o biológico e o cultural. Seguindo o conceito interpretativo, cultura é um sistema simbólico, público e centrado no indivíduo que o emprega para interpretar seu mundo e seu agir. Tem como elementos constituintes crenças, valores, símbolos, normas e práticas. A integração entre o biológico e o cultural é tida como o elemento estruturante da experiência.7

Foi utilizado o método do estudo de caso instrumental para desenvolver esta investigação qualitativa, haja vista que propicia observação ampliada dos casos que se investiga e analisa. Os detalhes desse método permitem estudos com diferentes dimensões, atentando para os aspectos mais centrais e íntimos, empregando a habilidade do pesquisador para compreender determinada experiência. O foco do estudo de caso é analisar como e por que o caso se dá por especificar o contexto. Esse método possibilita a participação de múltiplos casos, ou apenas um, sendo estudado em diferentes momentos da experiência.8,9

Neste estudo, o caso é composto por um cônjuge de uma mulher com câncer de mama e em tratamento quimioterápico. Um cônjuge, acompanhante principal e frequente de uma paciente do serviço de oncologia, foi convidado a participar. O contato ocorreu no ambulatório de oncologia de um hospital universitário no interior de Minas Gerais, após a consulta de enfermagem. Os critérios de inclusão foram: ser cônjuge de uma mulher com câncer de mama e em quimioterapia, independente do esquema quimioterápico e estadiamento da doença; que a esposa estivesse no início do tratamento quimioterápico; com idade superior a 18 anos; casado ou em união estável; convivendo com a mulher na mesma casa, pelo período mínimo de um ano; que aceitasse participar da pesquisa e autorizasse gravar as entrevistas, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.

Os dados foram coletados por uma das pesquisadoras, no ambulatório de oncologia da instituição e no domicílio da família, no período de março a setembro de 2015. Foram realizadas seis entrevistas, com duração média de 30 minutos, em diferentes momentos da experiência, para obtenção de rigor no estudo.

As técnicas de coleta de dados foram: observação, anotações em diário de campo e entrevistas semiestruturadas gravadas, norteadas pelas seguintes questões: Como é compartilhar da vida da sua esposa com câncer e em quimioterapia? Como você lida com as situações? Conte-me sobre situações difíceis que vivenciou e o que fez para superá-las? Você tem recebido ajuda de alguém?

Os dados foram analisados conforme a análise temática indutiva. Inicialmente as transcrições das entrevistas e os registros no diário de campo foram integrados em texto único pelas pesquisadoras. Após a leitura geral, iniciou-se a categorização dos aspectos relevantes dos dados e classificação em temas, com foco no objetivo do estudo. O tema é um nível de resposta padrão, que interpreta o sentido dentro do conjunto de dados, em relação às perguntas da pesquisa.10

Utilizaram-se os modelos explicativos para descrever como o parceiro da mulher com câncer de mama constrói sua experiência durante a quimioterapia de sua esposa. Os modelos explicativos são compreendidos como padrões culturais em que a pessoa compõe a experiência da doença, conferindo-lhe sentido tanto para si como para os membros do seu contexto cultural, permitindo-nos, dessa forma, identificar os sentidos atribuídos pelo parceiro. Os sentidos são as descrições do processo vivido pelo participante, com suas ideias e ações sobre a doença e a quimioterapia, explicados por meio de motivações e justificativas, extraídas da sua história cultural.11,12

O estudo seguiu os princípios éticos preconizados em pesquisas que envolvem seres humanos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE nº 40672614.5.0000.5152). Após o aceite, o participante assinou o TCLE. Para assegurar o anonimato, o seu nome é fictício.

RESULTADOS

O contexto do caso

O contexto traz elementos necessários para a compreensão dos sentidos a serem apresentados.

O participante, nomeado como Francisco tinha 41 anos, casado, cor branca e ensino superior incompleto. Era funcionário público, exercendo a atividade de supervisor da hidrometria, com uma carga horária de oito horas diárias; trabalho esse que gerava uma renda de aproximadamente cinco salários mínimos, com a qual sustentava a família. Era mórmon praticante da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, assíduo nas atividades da igreja, onde exercia o cargo de bispo.

A esposa, nomeada como Aline, tem 39 anos, exercia as atividades do lar; responsável por gerenciar e executar o cuidado da casa e crianças, incluindo as atividades escolares, antes do seu adoecimento. Em janeiro de 2014, notou nódulo na mama esquerda e imediatamente procurou assistência médica, porém, realizou a biópsia somente em dezembro de 2014. O resultado anatomopatológico foi compatível com carcinoma ductal invasivo grau II. Devido ao estadiamento (T3N0M0), à baixa idade e outros fatores identificados nos exames, foi proposta a quimioterapia neoadjuvante, com o protocolo de quatro ciclos de AC (doxorrubicina + ciclofosfamida) e quatro ciclos de docetaxel, e intervalos de 21 dias entre os ciclos. O tratamento quimioterápico ocorreu entre fevereiro e junho de 2015, sendo suspenso por toxicidadade medular, no penúltimo ciclo.

Eles estavam casados há 21 anos, e dessa relação tiveram quatro filhos, com idades entre cinco e 16 anos. Residiam em casa própria, com os filhos.

As unidades de sentidos

A partir dos dados, foram identificadas quatro unidades de sentidos, que são ilustradas na Figura 1.

Fonte: Elaboração dos próprios autores.

Figura 1 Sentidos representativos da experiência do cônjuge diante da mulher com câncer de mama e em quimioterapia. 

Quando se fala câncer, a gente tem medo

No modelo explicativo de Francisco, o primeiro sinal do câncer de mama da esposa foi o aparecimento do caroço. A procura pelo atendimento médico ocorreu imediatamente após a percepção da alteração na mama; porém, de acordo com as informações trazidas por ele, houve período prolongado até chegar ao diagnóstico, uma vez que sua esposa foi avaliada por vários profissionais de saúde, que não associaram os sintomas à possibilidade do câncer de mama:

Um médico achou que poderia ser uma pancada que ela tinha levado no seio, parecia um trauma [...] Teve outro médico que pediu só pra fazer compressas de água quente, porque poderia ser uma glândula inchada. (1ª entrevista)

Várias buscas foram realizadas para definição do diagnóstico:

Ela foi ao ginecologista, mastologista e, infelizmente, não sei por que, eles não conseguiram identificar a situação. Foi o quinto médico que fez o pedido da biópsia e descobriu que era o câncer (os olhos ficaram marejados). (1ª entrevista)

O diagnóstico foi recebido pelo participante com tristeza e um choque em sua realidade de vida, visto que a doença câncer tem conotação cultural de avassaladora, grave e incurável:

Quando fala câncer, a gente tem medo, sabe que não é brincadeira, é algo muito sério. É uma doença que não tem cura, é difícil de ser curada. (2ª entrevista)

Com o diagnóstico, ele busca uma compensação, criando um novo sentindo para o processo vivido de descoberta do câncer:

É uma situação chocante, eu sei que tudo na vida tem um propósito. Mesmo que seja algo dolorido, algo difícil de ser viver, a gente que tirar algum aprendizado disso. (1ª entrevista)

Diante do exposto, o sentido atribuído ao diagnóstico de câncer foi de choque e tristeza, por ser uma doença reputada como incurável e que causa sofrimento e possibilidade de morte. As experiências vividas por familiares e pessoas pertencentes ao seu convívio social reforçavam o senso comum desse sentido.

Trajetória da quimioterapia

Após o impacto do diagnóstico, considerando a necessidade de tratamento sistêmico, foi proposta pela equipe médica a quimioterapia neoadjuvante. De acordo com o modelo explicativo leigo do participante, a quimioterapia:

É um tratamento que procura curar essa enfermidade, o câncer. Através desse remédio, dessa droga que é a quimioterapia, ela tem esse principal objetivo. (5ª entrevista)

A notícia da quimioterapia foi recebida com esperança para a chance de cura, motivação de força para seguir:

A gente está feliz porque tem tratamento. Quando eu fiquei sabendo que iria fazer quimioterapia, eu me senti aliviado. A gente está vendo resultado, o tumor está diminuindo e estamos bem esperançosos quanto à cura. (5ª entrevista)

Na narrativa de Francisco, fica evidente a aceitação e valorização do tratamento médico proposto. Para ele, era a melhor opção, ainda que ocasionem mudanças e desconfortos em sua vida e da esposa:

O tratamento dela está difícil. Inicialmente, ela teve enjoos e agora fortes dores. É complicado, mas é o que eu falo pra ela, tem que fazer, não importa o que possa ocasionar. Temos que agradecer que tem o tratamento. (5ª entrevista)

Na trajetória da quimioterapia, ele referiu dificuldades para lidar com as reações adversas e as repercussões do tratamento. Relatou ainda falta de informações por parte dos profissionais de saúde. Assim, cada novo ciclo de quimioterapia era uma incógnita, uma nova surpresa. Todas as dificuldades enfrentadas, principalmente pelas muitas reações adversas e respectivos graus de intensidades associados à falta de orientação, levaram o participante a questionar se eram de fato advindos do tratamento:

Nós ficamos imaginando a situação: será que é a quimio que está provocando essa dor?! Eu não me lembro de ter sido orientado em relação a isso. Tudo que acontece com ela é uma surpresa, está virando uma incógnita. (3ª entrevista)

De acordo com o conhecimento cultural prévio dele sobre a terapêutica, era esperado que a quimio branca (docetaxel) teria reações adversas amenas:

Algumas pessoas que falaram que essa quimio branca ela ataca menos o organismo, é mais tranquila, não vai dar enjoo e será mais light, mas para a Aline foi pior. (4ª entrevista)

No senso comum, os pacientes e seus familiares dividem os quimioterápicos para tratamento do câncer de mama em vermelha, em que há uma conotação de mais forte, com consequentes maiores efeitos adversos e branca, que de acordo com Francisco seria menos agressiva. (4ª entrevista)

Houve momentos de desespero e insegurança diante do forte quadro de dor que a esposa apresentava:

Nós ficamos apavorados com a dor. Chegamos ao pronto-atendimento e eles deram morfina; o que você pensa? Estou nas últimas! Morfina para leigo como a gente, é para aqueles que estão à beira do abismo. (3ª entrevista)

A morfina é um analgésico que, na cultura popular, tem seu uso associado a pacientes que estão à beira do abismo, pacientes oncológicos em fase terminal com dor crônica.

No decorrer do tratamento, diante das reações adversas acima do esperado e pelas constantes internações, foi necessária interrupção da quimioterapia, após o penúltimo ciclo de tratamento. Essa conduta médica foi recebida com alívio:

As coisas estão melhores porque ela não está tendo tanta reação como antes, dor no corpo, todas aquelas coisas que a quimioterapia ocasionava. (6ª entrevista)

Lidando com o estresse da esposa

Durante a trajetória da quimioterapia, Francisco referiu que houve mudanças no seu relacionamento conjugal: Nosso casamento ficou mais complicado depois do diagnóstico (4ª entrevista).

A relação ficou conturbada em decorrência do estresse da esposa após o início da quimioterapia, com maior acentuação nos dias prévios à infusão do medicamento - próximo à quimio o estressse dela fica pior. Ele utiliza a metafóra eu fico pisando em ovos com ela, para simbolizar a situação vivenciada (4ª entrevista).

Em sua percepção, há um sentimento de constante insastifação da esposa, nada às vezes agrada como deveria. De acordo com Francisco, prefere se reservar e ficar mais na 'minha'; assim, adotou a estratégia de continuamente contar de 1 até 10 para evitar os conflitos (4ª entrevista). Pensando em todo o sofrimento decorrente do adoecimento e da terapêutica vivenciados pela esposa, referiu que sempre cedia durante as brigas do casal: porque sei que ela está em tratamento, mas não sabe até quando conseguirá manter tal postura:

Eu não estou no meu limite, mas até quando? A outra parte fica cedendo, cedendo e fica saturada. (6ª entrevista)

Tais conflitos no relacionamento conjugal podem ser evidenciados neste trecho do diário de campo:

Presenciei hoje um desentendimento do casal, o fato ocorreu em minha presença e de um secretário do Hospital. A esposa ficou alterada, elevou o tom de voz e falou palavras não educadas para o participante da pesquisa. O motivo era o agendamento da consulta com a equipe de odontologia, porém não consegui entender ao certo o que desencadeou a discussão. Ele ficou bastante envergonhado com o episódio, porém tentou levar na brincadeira e sorriu apaticamente para amenizar (Diário de campo, 04/08/2015).

As repercussões na vida de Francisco se estenderam ao seu papel de homem, chefe da família, uma vez que passou a cuidar das crianças, levar e buscar na escola, dar banho e dar comida, assumindo, em muitos momentos, o cuidado da casa e as preparações das refeições da família, funções essas que previamente ao adoecimento eram atribuídos à esposa (4ª entrevista).

A fim de acompanhar a esposa nas consultas médicas, sessões de quimioterapia e exames, o participante precisou se ausentar com frequência do trabalho, que de acordo com ele não se ausentava como agora. Para conseguir suprir os cuidados com a casa, a esposa e filhos, além do trabalho diário, reduziu também a sua participação nas atividades religiosas, muitas vezes eu deixo de fazer o trabalho na igreja para ficar com ela, atividade social em que era muito assíduo antes do diagnóstico do câncer de sua esposa (6ª entrevista).

Redes de apoio na trajetória da terapêutica

Durante todo o percurso da quimioterapia, o participante contou com a ajuda do grupo familiar, para superar situações e dificuldades, seja para o transporte até o hospital nos dias de quimioterapia, seja para auxiliar nos cuidados dos filhos. Segundo ele:

Recebo a ajuda da família, em especial da mãe dela. (2ª entrevista)

Assim, a família foi de fundamental importância como fonte de sustentação e incentivo para prosseguir em sua trajetória. Ele contou também com a ajuda das pessoas da comunidade religiosa em alguns momentos, para os cuidados da casa, dos filhos e de sua esposa:

As irmãs da igreja montam um calendário pra vir aqui. Estamos recebendo ajuda das irmãs de igreja e da família dela. (2ª entrevista)

A espiritualidade foi uma importante fonte de apoio na vida dele, para a sustentação da esperança de cura:

Lá no início o médico falou: Pensa positivo, tenha fé, acredite em Deus e tudo vai bem. Se começar a pensar negativo desde agora, as coisas podem piorar. (5ª entrevista)

No caso de Francisco, observamos que a espiritualidade também foi considerada como estratégia de ajuda na superação dos conflitos conjugais. Essa, exercida pela fé e cumprimento dos compromissos assumidos dentro dos rituais de sua religião, foi coluna de sustentação para a manutenção de seu casamento durante os conflitos:

É o compromisso que você tem no casamento, que é chamado de selamento; esse compromisso é feito entre eu, ela e Deus, que de acordo com Francisco, se não fosse isso, eu não sei [...] (6ª entrevista)

DISCUSSÃO

O reconhecimento de algo diferente no corpo, o caroço, leva o paciente, juntamente com o familiar, a procurar o sistema de saúde. A definição do diagnóstico oncológico nem sempre ocorre de forma eficaz e rápida. Problemas estruturais organizacionais e burocráticos do sistema de saúde nacional dificultam o diagnóstico precoce do câncer. O atraso no diagnóstico, nesse caso, pode estar associado ainda à baixa idade da esposa. Por se tratar de uma mulher jovem, a suspeita inicial de possível câncer de mama não é levantada; isso ocorre devido a uma incidência menor nessa faixa etária. Dessa forma, há diferentes fatores que podem contribuir para esse retardamento, envolvendo fatores sociais, culturais e econômicos, tanto por parte de pacientes e familiares, como do próprio sistema de saúde. Conforme a especificidade do comportamento biológico do tumor, o diagnóstico tardio implica menores chances de cura, tratamentos mais agressivos e consequências mutiladoras.11-13

Ao receber o diagnóstico de câncer da esposa, Francisco o reconheceu como uma ameaça à vida dela, visto que em seu contexto social o câncer é uma doença difícil de ser curada. Socialmente, é uma doença estigmatizante, descrita como avassaladora, sendo associada ao sofrimento e à morte. Considerada doença incurável, o seu pronunciamento já remete ao medo.14,15

Quando o paciente e seus familiares recebem a notícia do diagnóstico de uma doença grave como o câncer, suas vidas se desorganizam, pois passa a existir um confronto em seu cotidiano, que é relatado como uma sensação de choque. Diante do diagnóstico, os pacientes e seus familiares buscam uma compensação, em que procuram criar um novo sentindo para o processo vivido, descrito como tirar algum aprendizado. As estratégias adotadas para lidar com o adoecimento da esposa são características individuais, diretamente influenciadas pelo seu sistema cultural.11

Na definição do tratamento quimioterápico, o participante atribuiu o sentido de chance de cura para o câncer que acometeu sua esposa, ainda que em seu contexto social ele o reconhecesse como temido por provocar muitas reações. A confiança no tratamento quimioterápico é fundamentada no reconhecimento sociocultural de que conhecimento profissional e os recursos empregados na terapêutica podem propiciar a almejada cura. No entendimento leigo, o profissional médico não erra, pois este consegue tomar a melhor decisão no momento adequado; paciente e familiares se consideram incapazes para decisões tão complexas para o seu meio social, somada a situação de angústia e ansiedade, frente à incerteza dos resultados.12

No senso comum, a terapêutica quimioterápica é permeada pela crença de curar ou matar. Para Francisco, tem que fazer o tratamento, não importa o que possa ocasionar. Dessa forma, no seu entendimento as reações devem ser suportadas por possuírem menor gravidade que a doença. Há uma obrigação moral de superar as reações adversas e suas limitações impostas, assim como de lutar em busca da restituição da normalidade do corpo (cura). Na perspectiva de Francisco, a quimioterapia era uma etapa primordial para o alcance da cura.12

Na trajetória inicial da quimioterapia, ele precisou lidar com as reações adversas surpresas que a esposa vinha apresentando, visto que não tinha sido orientado acerca destas. As reações adversas, intensificaram o sofrimento dele e trouxeram muita insegurança para sua vida, visto que em diversos momentos não sabia como lidar com a situação. De acordo com Francisco, era esperado que a quimio branca tivesse efeitos amenos, quando comparada à quimio vermelha. Essa expectativa se dá devido ao conhecimento prévio sobre a terapêutica, observando a experiência de seus familiares e outros pacientes oncológicos pertencentes ao seu convívio social; dessa forma, há uma mistura do saber biomédico e do cultural.12

Na organização social das masculinidades, existem quatro formas que definem o que é ser homem: hegemônica, subordinada, cumplicidade e marginalizada. Estas são determinadas pelos comportamentos, formas de agir e pensar diante dos diferentes contextos de vida.

A masculinidade hegemônica refere-se ao patriarcado, em que há uma separação dos comportamentos que são ditos como femininos, caracterizando-se pela dominação dos homens como chefes e a subordinação das mulheres em relação a eles. A masculinidade de cumplicidade se define pela ligação entre a masculinidade hegemônica, mas sem a completa incorporação dos atributos desta. Na masculinidade de cumplicidade há um convívio do homem, mulher e seu meio social sem a necessidade de se firmar quem é o dominador e dominado. É uma versão mais "complacente" das masculinidades hegemônicas, em que os homens casados desenvolvem uma relação de coparticipação junto à sua esposa ao invés de dominá-la ou exibir sua autoridade sobre ela. A masculinidade marginalizada faz referência entre a supremacia de uma classe ou grupos étnicos dominantes e subordinados, como homens ricos e os pobres, homens empregados e aqueles desempregados. Está sempre relacionada à autoridade da masculinidade hegemônica dos grupos dominantes. A masculinidade subordinada diz respeito à dominação e subordinação entre grupos de homens, como é o caso da dominação dos homens heterossexuais sobre os homens homossexuais, considerados como a parte inferior da hierarquia masculina.16

Essas masculinidades estão em constante disputa, convencimento e modificação de padrões, símbolos e referências entre si, para exercer um status de "hegemonia", sendo as demais periféricas às concorrentes ou afirmadoras destas. Esse fato é o que as torna não apenas múltiplas a cada momento dentro de uma sociedade multicultural, mas também mutáveis ao longo do tempo, frente a diferentes contextos, dentro de uma relação de poder homo social. Assim, dependendo da hegemonia masculina exercida, o homem enfrentará o cuidado de maneiras diferentes diante de sua esposa com câncer e em tratamento quimioterápico.16,18

Ao observarmos as características socioculturais do ser homem em Francisco, ficou evidente que prevalecia a masculinidade hegemônica em seu grupo social. Ele era o provedor da família, trabalhando fora para o sustento de todos; a esposa era responsável pelo cuidado dos filhos e todos os afazeres domésticos. Diante do adoecimento da esposa, Francisco passou por uma redefinição de sua masculinidade, adotando comportamentos da masculinidade de cumplicidades e desenvolvendo tarefas domésticas como cuidar das crianças, cuidar da casa e realizar as preparações das refeições da família, uma vez que estas não são competências descritas para o ser masculino, no âmbito da masculinidade hegemônica.16

O ser masculino, no âmbito da cultura, é concebido por estereótipos como poderoso, ativo, firme forte, autoconfiante, atlético, trabalhador autônomo, uma pessoa pública, e contrário às atividades domésticas. Comportamentos como o cuidar dos filhos, da esposa e executar atividades domésticas são tentativas de fugir dos estereótipos que pressupõem que ele não cuide dos outros. No âmbito das masculinidades, comportamentos como esses são considerados hipomasculinos e tidos como um problema para a manutenção dessa categoria de gênero. Durante o adoecimento da esposa, diante das novas necessidades da família, ele assumiu essa nova identidade, a de cuidador. Os comportamentos de Francisco, durante o adoecimento da esposa, são produto cultural, influenciados pela forma como as masculinidades e o gênero são vivenciados no seu contexto social.16,18

Quando ele relatou que cedia durante as brigas do casal para manter o relacionamento e reduzir o estresse de sua esposa, violava os princípios sociais que regem a masculinidade hegemônica, considerando que esta se caracteriza pela dominação dos homens e a subordinação das mulheres.16 Esse comportamento de ceder desvalorizava a identidade masculina hegemônica, colocando Francisco em situação de inferioridade, submissão e feminilidade. O distanciamento dessa masculinidade leva ao sofrimento psíquico, estresse grave e até doença cardíaca isquêmica, conforme a literatura apresenta.4 O sofrimento pode ser intensificado ainda quando ele se ausentava de atividades sociais habituais como o trabalho na igreja - onde demonstrava sua autoridade e supremacia sobre outros homens, ao ocupar o cargo máximo dentro do seu sistema religioso, que era o de bispo -, em detrimento do cuidado da esposa, atividade essa considerada feminina no contexto da masculinidade hegemônica.16

Ao analisarmos a masculinidade assumida por ele, percebemos que não é estática, há uma contínua construção do ser social e suas estruturas culturais. A masculinidade é algo aprendido na sua cultura, não sendo, portanto, uma hereditariedade, mas sim um código social que normatiza sua conduta enquanto homem.17 Dessa forma, masculinidade não é uma entidade fixa embutida no corpo ou em traços de personalidade dos indivíduos, mas, sim, uma configuração de práticas em torno da posição dos homens, que são realizadas na sua ação social; portanto, são múltiplas e podem variar de acordo com as relações de gênero dentro de um mesmo contexto.16-18

A espiritualidade é uma prática importante na rede apoio ao paciente e seus familiares durante a trajetória de adoecimento. Essa prática, juntamente com a família, é uma forma de suporte crucial para sucesso no tratamento convencional e na superação da doença, renovando a esperança e trazendo segurança.11,19-21

Estudos apontam que a experiência do cônjuge de uma mulher com câncer de mama é emocionalmente difícil e chocante para os parceiros, pois o adoecimento contribui para mudanças significativas em suas rotinas após o diagnóstico, no relacionamento do casal e dinâmica familiar.22,23 Em uma revisão integrativa, que teve como objetivo analisar experiências de cônjuges de mulheres com câncer de mama, os resultados apontaram para mudanças no relacionamento após o câncer de mama e atividade sexual prejudicada. Ou seja, os cônjuges passaram administrar as tarefas domésticas do lar e assumir o cuidado das crianças, houve ocultação dos reais sentimentos de tristeza e medo da perda da parceira e o apoio na religião durante o processo de enfrentamento da doença.5

Estudos descrevem que o estresse psicológico é maior entre parceiros de pacientes com câncer do que entre os próprios pacientes, que aqueles estão mais vulneráveis a apresentar quadro depressivo. Em alguns casos, os parceiros experimentam mais fadiga, problemas de sono e os transtornos alimentares, bem como maior ocorrência de dor do que os próprios pacientes. Um ano após o diagnóstico, parceiros de pacientes com câncer tiveram significativamente mais transtornos do humor, reações ao estresse grave e doença cardíaca isquêmica, do que constatado no ano anterior ao do diagnóstico.4

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

Pelos modelos explicativos podemos compreender a experiência do parceiro de uma mulher com câncer de mama e em quimioterapia, em que os sentidos foram de um diagnóstico sofrido e com sentimento de medo diante da doença grave. Passado o diagnóstico, a quimioterapia foi recebida como esperança de cura, para uma doença que até então, em seu conhecimento cultural, era incurável. A trajetória desse tratamento é percorrida com muitas dificuldades, as quais possuem múltiplas facetas, tais como as reações adversas físicas, trazendo muita insegurança para sua vida. Nesse percurso, para conseguir lidar com o estresse da esposa e diminuir os conflitos do casal, precisou violar as regras da masculinidade hegemônica, que prevalece no seu grupo social, subordinando-se em relação à esposa e adotando a postura de cúmplice nas tarefas domésticas. Para auxiliar nessa trajetória, contou com a religião e a família como redes de apoio.

As contribuições do estudo para a prática de enfermagem se referem ao conhecimento com riqueza de detalhes sobre a experiência de ser parceiro de uma mulher com câncer de mama em tratamento de quimioterapia. Estudos de natureza qualitativa não propõem intervenções práticas em saúde, porém levantam reflexões que estimulam a mudança e contribuem para a melhoria da assistência de enfermagem. Por meio deste estudo, foi evidenciado que o parceiro também passa por intenso sofrimento durante o processo de adoecimento da esposa, necessitando ser alvo de cuidados e apoio da equipe de saúde. A equipe de enfermagem, no contexto de cuidado à mulher com câncer de mama, deve envolver o cônjuge, oferecendo orientações que visem esclarecer dúvidas e anseios relacionados à quimioterapia, os efeitos adversos e manejo destes.

Importante ressaltar que nenhum estudo anterior se propôs a investigar os sentidos dessa experiência à luz da antropologia, explorando ainda as questões de masculinidade que cercam esse parceiro. Os resultados previamente encontrados se limitaram a apresentar os temas identificados, mas não exploraram os sentidos atribuídos à experiência.

Uma das limitações do estudo foi a falta de menção do aspecto sexual do casal pelo participante durante as entrevistas, o que poderia ter sido explorado para ampliar a compreensão do sentido de ser parceiro de uma mulher com câncer de mama. Ressaltamos, assim, a necessidade de outros estudos que tenham maior número de participantes e diferentes abordagens, buscando ampliar as percepções do profissional de saúde sobre as experiências dos parceiros em diferentes contextos.

REFERÊNCIAS

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