versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.4 Rio de Janeiro abr. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018234.07952016
A ampla utilização do fluoreto (F) foi fator fundamental para o declínio da cárie relatado mundialmente1, entretanto tem sido acompanhado de uma preocupação com o aumento na prevalência de fluorose dentária2-4.
Fluorose dentária é uma alteração na mineralização dos dentes em formação devido à presença de F e está relacionada à ingestão crônica deste elemento, sendo sua severidade dependente da dose. A fluorose dentária clinicamente aceitável é caracterizada por pequenas estriações brancas e opacas na superfície do dente. Não torna o dente afetado nem mais nem menos susceptível à cárie. Sua maior relevância é no aspecto estético, quando ocorre em incisivos superiores permanentes5. A faixa etária crítica para o desenvolvimento de fluorose dentária é por volta dos 15 aos 30 meses6, quando os incisivos superiores permanentes estão na transição entre a fase secretória e a fase de maturação do esmalte. E, associado a isso, nessa idade as crianças deglutem grande parte do dentifrício durante a escovação dos dentes, aumentando a ingestão de F caso este seja fluoretado7-9.
A prevalência e severidade de fluorose estão diretamente relacionadas à quantidade ingerida de F. Segundo Fejerskov et al.5, para cada aumento na dose de 0,01 mg F/kg é esperado um aumento de 0,2 no índice de fluorose na comunidade (IFC). Sendo assim, foram estabelecidos limites desde o passado, visando o mínimo de risco (fluorose) e o máximo de benefício (prevenção e controle de cárie dentária). Burt10 estimou que, se F sistêmico é importante, uma dose máxima de 0,05 a 0,07mg F/ kg deve ser obedecida para segurança em termos de fluorose dentária clinicamente aceitável (sem comprometimento estético).
Determinar dose de exposição a fluoreto na faixa etária crítica para fluorose dentária foi objetivo de alguns estudos, realizados em diferentes países. De uma maneira geral, considera-se a dieta e os dentifrícios como as fontes mais representativas de F. O estudo de Guha-Chowdhury et al.11, realizado na Nova Zelândia, demonstrou que crianças que consumiam água otimamente fluoretada estavam expostas a uma dose diária de 0,019 mg F/kg pela dieta, e de 0,036 mg F/kg quando se considerava dieta e dentifrícios. No Brasil, os primeiros estudos foram realizados na região sudeste, em cidades com água otimamente fluoretada (Piracicaba/SP, clima subtropical7; e Ibiá/MG, clima tropical8). Ambos estudos indicaram uma alta dose total, acima do parâmetro de 0,07 mg F/kg/dia. Entretanto essa alta dose não se refletiu em alta prevalência de fluorose dentária nos mesmos voluntários, reavaliados posteriormente12, ficando ainda indefinida a relação entre ingestão de fluoreto e fluorose dentária13. Embora essa relação ainda precise ser estabelecida, determinar dose de exposição continua sendo importante.
Estima-se que a água de abastecimento fluoretada chega a contribuir com mais de 50% da dose da dieta, e que a ingestão de líquidos é diretamente proporcional à temperatura ambiental. Por isso, é utilizada a fórmula de Galagan e Vermillion14 para estimar a concentração ideal de F na água de abastecimento em função da média das máximas temperaturas de cada cidade. Como todos os estados do Brasil, com exceção de RS e SC, têm como média das máximas temperaturas mensais a faixa entre 26,4 a 32,5°C, a concentração ideal de F na água de abastecimento deve estar entre 0,6 e 0,8 μg F/ml. Entretanto essa faixa de temperatura é bem extensa, não leva em conta as variações ao longo das estações do ano e a umidade relativa do ar não é considerada nessas estimativas. Lima e Cury15 verificaram que, em uma cidade de clima subtropical (Piracicaba, SP), durante as estações mais quentes do ano, havia um aumento no volume de líquidos consumidos. Sendo esse líquido água fluoretada, seria esperada uma dose de F 19% maior nos períodos mais quentes. Essa estimativa também foi relatada para algumas regiões dos Estados Unidos16.
Com essa preocupação, alguns estudos foram realizados em regiões brasileiras com temperatura ambiental mais alta. Na cidade de Penedo (AL), com clima tropical litorâneo, foi relatada uma baixa dose pela ingestão de água (0,021 mg F/kg), mesmo esta água contendo concentração de F acima do recomendado (0,94 μg/ml). Já na cidade de Brejo dos Santos (PB), de clima semi-árido e contendo naturalmente 0,6 a 0,9 μg F/ml na água, foi relatada uma dose pela dieta quase três vezes maior (0,06 mg F/kg)17.
Em acréscimo, essa expectativa de maior ingestão de F existe na cidade de Feira de Santana, BA, em função dos dados de um levantamento de saúde bucal no município, onde verificou-se uma prevalência de fluorose dentária de 45,6% nas escolas estaduais, 36,5% nas municipais e 34% nas particulares18. Esses valores são bem maiores do que os encontrados na região Nordeste (14,5%) ou que a média nacional (16,7%)19.
O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UEFS. Os voluntários foram selecionados após seus pais/ responsáveis terem lido e assinado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, onde constavam todas as informações necessárias sobre a pesquisa, além de terem sido esclarecidos pessoalmente pelos pesquisadores.
Foi selecionada uma amostra de conveniéncia, com tamanho baseado em trabalhos semelhantes8,11, composta de 40 voluntários, de ambos os gêneros, com idade média de 25,2 ± 9,0 meses, residentes na cidade de Feira de Santana, BA. Cinco voluntários frequentavam diariamente a creche da Universidade Estadual de Feira de Santana, e 35 permaneciam em casa com seus familiares. Durante o estudo, houve algumas desistências, sendo que apenas 26 voluntários (três frequentadores da creche e 23 não) realizaram todas as coletas necessárias (dieta-duplicada, água e produtos da escovação), compondo então a casuística do estudo. Sua idade era 25,2 ± 9,1 meses, e seu peso igual a 12,5 ± 2,5 kg.
Uma amostra da água utilizada para beber por cada voluntário foi coletada em um frasco, fornecido pelos pesquisadores. Foi questionada a origem da água (abastecimento público, mineral, poço).
Esse procedimento foi realizado pelos pais/ responsáveis em casa, ou por um dos pesquisadores para as crianças que frequentavam a creche, nas refeições realizadas na mesma. Em dois dias, consecutivos ou não, tudo o que a criança comeu e bebeu (inclusive água) foi coletado em uma vasilha fornecida pelos pesquisadores. O método baseia-se no trabalho de Guha-Chowdhury et al.11. Nesse método, todos os componentes da dieta, sólidos e líquidos (inclusive água), ingeridos em determinado período de tempo foram coletados na mesma quantidade em que foram consumidos. Para isso, o responsável pela coleta recebeu instruções detalhadas, verbalmente e por escrito. Nessas instruções, recomendou-se que fossem preparadas duas porções da refeição: uma para a criança e outra para a pesquisa (ex.: dois pratos de comida iguais). Quando a criança terminasse, caso algum alimento houvesse restado, a mesma quantidade deveria ser retirada da porção da pesquisa. Assim, a quantidade coletada deveria ser semelhante àquela ingerida. As partes dos alimentos que não eram ingeridas, como peles e ossos, não deveriam ser coletadas. A dieta coletada foi homogeneizada em liquidificador, seu volume foi medido e uma amostra foi congelada para posterior análise. A concentração de F na dieta foi multiplicada por seu volume diário e dividida pelo peso da criança, obtendo-se um valor de dose (mg F/ kg/ dia). A média dos dois dias foi calculada. Para ressarcir os gastos dos voluntários com a coleta da dieta-duplicada, foram entregues aos mesmos kits contendo alimentos não-perecíveis, um dentifrício e uma escova dental.
Esse procedimento sempre foi acompanhado por um ou mais pesquisadores. Para esse procedimento, foi solicitado aos voluntários que trouxessem o dentifrício habitualmente utilizado pelas crianças, para que fosse retirada uma amostra (cerca de 1g), e sua concentração de fluoreto solúvel total fosse determinada. Quando o dentifrício não era trazido, o procedimento era realizado com um dentifrício fornecido pelos pesquisadores (Tandy sabor Morango), caso fosse relatado que a criança utilizava dentifrício fluoretado para escovar os dentes. Para as crianças que não escovavam os dentes ainda, ou utilizavam dentifrício não fluoretado, a coleta dos produtos da escovação foi desconsiderada.
De acordo com a metodologia descrita por Rojas-Sanchez et al.20, em uma ficha apropriada foram anotados: a frequência diária de escovação (f.d.e.), o responsável pela mesma e qual o dentifrício utilizado. Acompanhou-se uma escovação dos dentes realizada pela professora da creche (no caso das crianças que frequentavam a creche da UEFS) e outra pelo responsável de cada criança, tal qual ocorria diariamente.
A escova de dente foi pesada, a balança (digital, com 2 casas decimais) foi zerada, o responsável pela escovação colocou o dentifrício na escova e esta foi pesada novamente. O peso de dentifrício era anotado e a escovação feita como habitualmente, a criança expectorava (se o fazia) em um copo plástico a espuma e saliva, assim como se fosse feito o enxágue da boca (com água destilada e deionizada); a escova era vigorosamente lavada com água destilada e deionizada, o que também era coletado no copo plástico. A esta suspensão dava-se o nome de Produto Da Escovação, o qual foi homogeneizado e teve seu volume final medido, tendo sido uma amostra (cerca de 10 ml) congelada para posterior análise.
Todas as análises foram feitas utilizando-se um eletrodo F-específico (Orion 96-09) acoplado a um potenciômetro (Orion Star A214). A cada dia de análise, este eletrodo foi previamente calibrado com amostras contendo concentrações de F conhecidas (preparadas com padrões de F, nas mesmas condições das amostras). O eletrodo forneceu resultados em milivolts (mV). Como há uma relação entre mV e log[F] (mV = a - b * log [F]), os valores de mV foram utilizados para se chegar aos valores de concentração de F. Para os cálculos, foi utilizado o programa Excel (Microsoft®).
Nas amostras de água, foi adicionado um tampão específico (TISAB II, tampão de ajuste de força iônica e pH), na proporção de 1:1, e o eletrodo foi calibrado com padrões contendo entre 0,2 e 3,2 μg F/ml.
Para se extrair F das amostras de dieta, foi utilizada a técnica da microdifusão facilitada por hexametildisilazano21. A técnica consiste em adicionar a amostra a uma placa de petri contendo um ácido forte (HCl 6N) saturado com hexametildisilazano. No centro da placa deve existir um depósito contendo uma base forte (NaOH 1,65N). A placa contendo os reagentes fica sob agitação durante um período de 12h, durante o qual F é extraído da amostra, volatilizado (fluorsilano) e atraído para o depósito contendo a base forte. Então esse depósito é removido da placa, seco em estufa, e os cristais de fluoreto de sódio formados são dissolvidos em um ácido fraco (ácido acético 0,66N), para ser então feita a leitura, em eletrodo calibrado com padrões contendo entre 0,2 e 3,2 μg F/ml. Para cálculo da dose de F pela dieta, a concentração de F nas amostras foi multiplicada pelo volume de dieta, e dividida pelo peso da criança.
Nas amostras de dentifrício e produtos da escovação, determinou-se a concentração de Fluoreto Solúvel Total (FST), seguindo a metodologia descrita por Cury22. Para isso, as amostras eram centrifugadas (3000 × g, 10 min) e a um volume de 0,25 ml do sobrenadante era adicionado 0,25 ml de HCl 2M. Essa solução era mantida a 45°C por 1h, e então tamponada com 0,5 ml de NaOH 1M e 1 ml de TISAB II. Foi feita uma diluição inicial de 100 vezes de cada dentifrício. O eletrodo foi calibrado com padrões contendo entre 4 e 64 μg F/ml. Subtraindo-se o quanto de F foi recuperado (FST nos produtos da escovação) da quantidade inicialmente utilizada (peso de dentifrício vezes sua concentração de FST), se determinava o quanto de F foi ingerido durante a escovação. Multiplicando-se pela frequência diária de escovações (f.d.e.) e dividindo-se pelo peso da criança, determinava-se a dose de F a que a criança estava sendo submetida diariamente pela escovação com dentifrício fluoretado.
Inicialmente, foi feita análise estatística descritiva dos resultados a fim de determinar valores de média, desvio padrão e variância, para cada variável de resposta determinada. Foi aplicado o teste t (bicaudal) para comparação na dose de F pela dieta, entre crianças que bebiam água de abastecimento e água mineral. O limite de significância foi estabelecido em 5%. Foi utilizado o programa Excel (Microsoft®).
A Tabela 1 apresenta os resultados de dose diária de exposição a F, considerando a dieta e a escovação com dentifrícios fluoretados como fontes de F. Verificou-se que, em média, os voluntários estavam expostos a uma dose segura em termos de fluorose dentária (0,057 mg F/kg), entretanto 34,6% destes (9 voluntários) estavam expostos a uma dose total igual ou superior ao limite de 0,07 mg F/kg. Considerando apenas a dose devido aos dentifrícios, 19,2% (5 voluntários) já estavam expostos a uma dose igual ou superior a esse limite. Os dentifrícios fluoretados contribuíram com a maior parte da dose total (71%). Quando foram excluídos os voluntários que não escovavam os dentes (n = 2) ou que o faziam com dentifrício sem F (n = 2), os valores de dose de F pela dieta, dentifrício e total foram respectivamente: 0,017 ± 0,010; 0,048 ± 0,038 e 0,064 ± 0,043 mg F/kg.
Tabela 1 Dose de F (mg F/ kg/ dia) a que estiveram submetidos os voluntários (n = 26).
Média | DP | Mínimo | Máximo | |
---|---|---|---|---|
Dieta | 0,016 | 0,010 | 0,003 | 0,033 |
Dentifrício | 0,030 | 0,039 | 0,000 | 0,148 |
Total | 0,047 | 0,043 | 0,004 | 0,181 |
Na Tabela 2 estão demonstrados os valores de concentração de F nas amostras de água utilizadas para beber pelos voluntários. Verifica-se que, em média, as amostras de água de abastecimento apresentavam teores adequados de F (entre 0,6 e 0,8 μg F/ml) e que as amostras de água mineral apresentavam baixa concentração de F.
Tabela 2 Concentração de F nas amostras de água utilizada para beber (μg/ml).
Média | DP | Mínimo | Máximo | |
---|---|---|---|---|
Água de abastecimento (n = 9) | 0,782 | 0,157 | 0,538 | 1,052 |
Água mineral (n = 17) | 0,070 | 0,037 | 0,004 | 0,148 |
A Tabela 3 mostra uma comparação da dose de F pela dieta entre crianças que bebiam água de abastecimento fluoretada (n = 9) e crianças que bebiam água mineral com baixas concentrações de F (n = 17). Não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos (p > 0,05).
Tabela 3 Dose de F pela dieta, para crianças que utilizavam água de abastecimento ou água mineral para beber (mg F/ kg/ dia).
Média | DP | Mínimo | Máximo | ||
---|---|---|---|---|---|
Dose F Dieta | Água de abastecimento | 0,021a | 0,010 | 0,003 | 0,033 |
(mg F/ kg/ dia) | Água mineral | 0,014a | 0,010 | 0,003 | 0,030 |
p = 0,1578; teste t.
A Tabela 4 apresenta os resultados referentes à dose de F em função da escovação com dentifrícios fluoretados. Vale ressaltar que duas crianças utilizavam pasta não fluoretada em casa e que duas ainda não escovavam os dentes (f.d.e. = 0). Na creche, as escovações eram feitas com pasta não fluoretada. Para as crianças que frequentavam a creche, foram considerados os resultados tanto da escovação conduzida pelas professoras na creche quanto da conduzida pelos pais.
Tabela 4 Dados referentes à escovação: frequência diária de escovação (f.d.e.), percentual de dentifrício ingerido e peso de dentifrício colocado na escova (g).
Média | DP | Mínimo | Máximo | |
---|---|---|---|---|
f.d.e. | 1,6 | 1,0 | 0,0 | 4,0 |
% dentifrício ingerido | 70,5 | 24,0 | 37,0 | 100,0 |
g dentifrício | 0,47 | 0,31 | 0,14 | 1,10 |
Como o clima semiárido é caracterizado por temperaturas altas, umidade relativa do ar baixa e volume pluviométrico baixo, pode haver uma maior ingestão de líquidos. Assim, pode-se suspeitar que na região do semiárido a dose total de exposição ao F seja maior do que a determinada em regiões brasileiras de clima subtropical ou tropical8. Os resultados de Rodrigues et al.17 confirmam isso. Seu trabalho foi realizado em cinco diferentes localidades, sendo que uma delas (Brejo dos Santos-PB) possuía clima semiárido e água naturalmente contendo de 0,6 a 0,9 μg F/ml. A dose de F proveniente da dieta, obtida também pelo método da dieta-duplicada, foi de 0,06 mg F/kg, próxima ao limite estabelecido de 0,07 mg F/kg. A escovação com dentifrícios fluoretados certamente iria elevar a dose diária para acima desse limite.
No presente trabalho, a média da dose de F proveniente da dieta foi de 0,016 mg F/kg, bem abaixo do esperado para uma região com clima semiárido. Seu valor foi inferior inclusive a trabalhos realizados em regiões de temperatura mais amena no Brasil, que também possuem água de abastecimento fluoretada: Piracicaba, SP (0,040 mg F/kg) e Ibiá, MG (0,027 mg F/kg)8; Bauru, SP (0,06 mg F/kg)17.
O primeiro aspecto a ser considerado diante dessa dose abaixo do esperado é o fato de 65% dos voluntários utilizar para beber água mineral, com quantidades de F bem baixas (Tabela 2). Entretanto é importante ressaltar que, mesmo bebendo água com quantidades desprezíveis de F, as crianças consumiam alimentos preparados com água de abastecimento fluoretada, conforme relato dos pais/ responsáveis. Sabe-se que, ao preparar alimentos com água fluoretada, o F se incorpora aos mesmos, e então a concentração de F nesses alimentos reflete a concentração de F no líquido utilizado em seu preparo23-26. Isso pode explicar o fato de não ter havido diferença significativa na dose de F pela dieta entre as crianças que bebiam água mineral (0,014 mg F/kg/dia) e aquelas que bebiam água de abastecimento fluoretada (0,021mg F/kg/dia).
O segundo aspecto a ser considerado para a dose da dieta ter sido abaixo do esperado pode ter sido a imprecisão na coleta da dieta-duplicada realizada pelos responsáveis pelas crianças, não obstante estes tenham sido devidamente orientados pelos pesquisadores. Verifica-se um volume total diário relativamente baixo (685,4 ± 269,8 ml). Apenas as coletas da alimentação realizada na creche por três voluntários foram feitas por um dos pesquisadores. Vale ressaltar que no trabalho de Lima e Cury7, as crianças frequentavam uma creche durante todo o dia, sendo a alimentação coletada por um dos pesquisadores; no trabalho de Paiva et al.8, o pesquisador acompanhou pessoalmente as coletas nas casas dos voluntários. Esse cuidado nem sempre é possível, sendo um risco inerente à metodologia, e, portanto, uma limitação do presente estudo. Embora sujeita a esse tipo de imprecisões, a técnica da dieta-duplicada parece resultar em valores mais reais, quando comparada ao diário de dieta, que resulta em valores de dose bem superiores11,27.
Quanto aos dentifrícios fluoretados, seu uso precoce e inadvertido por crianças na primeira infância é um fator de risco para fluorose dentária28, visto que estas deglutem grande parte deste produto durante a escovação, por não conseguirem expectorar adequadamente7,8. A quantidade de dentifrício utilizada8,27 e a frequência de escovação8 estão diretamente relacionadas com a dose de F submetida pela escovação, embora não tenha sido relatada relação destes fatores com a ocorrência de fluorose dentária28.
A média da dose de F em função da ingestão de dentifrícios fluoretados durante a escovação dos dentes foi 0,030 mg F/kg, ou seja, abaixo dos valores críticos. Entretanto, ao se avaliar individualmente os voluntários, verificou-se que cinco deles (19,2%) estiveram expostos a uma dose igual ou acima do limite de 0,07 mg F/kg apenas pelo F do dentifrício.
Em acréscimo, a média da quantidade de dentifrício colocada na escova foi de 0,47 g, quase cinco vezes maior do que o recomendado para a faixa etária (0,1g, semelhante a um grão de arroz)29. Vale ressaltar que para todos os voluntários, o peso de dentifrício foi maior que 0,1g, e os três voluntários com dose acima do limite utilizavam uma quantidade de dentifrício bem acima da média (entre 0,9 e 1,1 g). Já em relação à frequência diária de escovação (f.d.e.), que foi em média 1,6, variando de 0 a 4, verifica-se na literatura valores maiores, como no trabalho de Omena et al.30, onde 69% dos voluntários escovava os dentes três ou mais vezes ao dia, resultando numa dose média de 0,107 mg F/kg pelos dentifrícios. Um fato a ser observado é que duas das crianças do presente estudo ainda não escovavam seus dentes, o que não acontece normalmente com as crianças que frequentam creches, o que poderia explicar doses maiores relatadas por Lima e Cury7 (0,052 mg F/kg; f.d.e. = 2,2). Em média, 70,5% do dentifrício colocado na escova foi ingerido, valor superior ao relatado na literatura para a mesma faixa etária (57,4%7; 64,6%8; 49 a 64%9). De acordo com Nascimento et al.9, existe uma relação inversa entre idade das crianças e ingestão de dentifrícios durante a escovação. Ressaltamos aqui ainda outro aspecto: a influência do sabor do dentifrício na sua ingestão. De acordo com Oliveira et al.31, quando o dentifrício tem sabor adocicado (como Tandy e similares), pode haver um maior percentual de ingestão pelas crianças. O fato de termos fornecido o dentifrício Tandy quando o voluntário esquecia de trazer o dentifrício habitualmente utilizado em casa (85% deles não trouxe) poderia ter superestimado a dose encontrada, entretanto constatou-se que esse era o dentifrício mais utilizado pelos voluntários (50%), seguido de qualquer dentifrício sem F (23,1%), qualquer dentifrício (11,5%), não usar dentifrício (7,7%), dentifrício com baixa concentração de F (3,9%) e apenas um voluntário (3,9%) relatou que utilizava específicamente dentifrício para adultos (sem sabor adocicado).
Assim, diante de uma grande quantidade de dentifrício colocada na escova, aliada a um alto percentual de ingestão do mesmo durante a escovação, justifica-se o fato dos dentifrícios terem contribuído com a maior parte da dose total de exposição a F, mesmo o presente trabalho tendo sido realizado em região de clima semiárido, corroborando com os achados de Omena et al.30. É mais uma evidência de que, em regiões de água de abastecimento fluoretada, nas concentrações adequadas, o problema em se tratando de ingestão de F é a utilização de grandes quantidades de dentifrício. Considerando os dados de alta ingestão de F pelo uso de dentifrícios, fica clara a necessidade de se educar os pais/responsáveis para que coloquem uma pequena quantidade de dentifrício na escova das crianças.
Importante notar a utilização de dentifrício não fluoretado por seis voluntários (23,1%) em casa, e pelos três que frequentavam a creche, na mesma. Em todas as situações, tanto os pais quanto a Cirurgiã-Dentista responsável pela creche o faziam para prevenir fluorose dentária. Entretanto a literatura internacional nos mostra que esta atitude está incorreta32, pois a utilização de dentifrícios com concentrações reduzidas de fluoreto se mostrou menos efetiva no controle de cárie em dentes decíduos33,34, podendo isso ser agravado com o uso de dentifrícios não fluoretados.
Considerando dieta e dentifrícios como fontes de F, foi verificada uma dose total de 0,047 mg F/kg, abaixo do limite estabelecido como seguro (0,07), e incompatível com a alta prevalência de fluorose dentária na cidade (média de 38,7%). Seis voluntários (23,1%) estiveram expostos a uma dose superior a 0,07 mg F/kg, devido ao uso do dentifrício fluoretado.
Nesse sentido, duas discussões são necessárias: sobre a validade do parâmetro de 0,07 mg F/kg estabelecido na literatura10 e sobre o significado da alta prevalência de fluorose dentária relatada18.
Em relação ao parâmetro preconizado por Burt10, sabe-se que o mesmo não foi fruto de um experimento sobre o efeito dose-resposta da ingestão de F e fluorose dentária. Assim, deve-se ter cautela ao confrontar dados experimentais com esse limite, sendo relatado que nem sempre altas doses de exposição resultam em alta prevalência de fluorose dentária12. Nos trabalhos de determinação de dose, não é considerado o fato de nem todo o F ingerido ser absorvido. Entretanto, estudos in vivo demonstram que a presença de alimentos no estômago diminui a absorção do fluoreto (F) proveniente do dentifrício ingerido nas escovações após as refeições35. Assim, os valores de dose podem estar superestimados.
Já em relação ao significado da alta prevalência de fluorose dentária relatada no município, cabe questionar o que seria aceitável em termos de prevalência de fluorose dentária. Tem sido discutido que mais importante do que a prevalência é a severidade da fluorose dentária. Exceto em regiões em que a água contém naturalmente quantidades excessivas de F, a maioria dos casos relatados tem sido dos graus muito leve e leve. E Menezes et al.36 demonstraram que, na maioria das vezes, a fluorose nessa severidade não é percebida pela população. Narvai37 considera essa fluorose dentária que acomete boa parcela da população, sem entretanto trazer comprometimento estético ou funcional para os dentes atingidos, como uma “iatrogenia endêmica”.
A prevalência de fluorose dentária em Feira de Santana é alta ao se comparar os dados apresentados pelo Levantamento Nacional de Saúde Bucal em 2011, referentes ao Projeto SB Brasil 2010 (média nacional = 16,7%). Entretanto é bastante semelhante à cidade de São Paulo, onde foram feitos quatro levantamentos ao longo de doze anos, que revelaram prevalências de 43,8, 33,7, 40,3 e 38,1% nos anos de 1998, 2002, 2008 e 2010, respectivamente, sem demonstrar uma tendência de aumento com o passar do tempo38. Em Salvador, BA, também foi verificado que não existiu uma tendência de aumento da prevalência de fluorose, no período entre 2001 e 200439.
Em acréscimo, há de se pontuar as dificuldades que existem para o diagnóstico de fluorose dentária: é difícil calibrar adequadamente muitos pesquisadores, os índices existentes são subjetivos40, o diagnóstico diferencial pode ser confuso (por exemplo, com as hipoplasias de esmalte), e há também a questão do viés, quando o examinador “quer encontrar” o problema, havendo por isso relatos de muitos casos falso-positivos38. Questões técnicas importantes também interferem nos resultados, especialmente nas formas mais brandas de fluorose dentária: a acuidade visual do examinador, as condições de iluminação e hidratação do dente, a presença de biofilme dental bacteriano e o ângulo de observação41. Assim, é preciso ter cautela ao se comparar valores de prevalência de fluorose dentária entre diferentes estudos.
Finalmente, pode-se concluir que as crianças avaliadas, na faixa etária crítica para o desenvolvimento de fluorose dentária e residentes em uma região de clima semiárido, não estão expostas a uma dose excessiva de fluoreto, considerando o limite estabelecido entre 0,05 e 0,07 mg F/kg/ dia. Entretanto, diante dos resultados referentes à dose proveniente do dentifrício, é importante destacar a necessidade de se promover ações educativas sobre a correta utilização do mesmo, objetivando o máximo de benefício no controle de cárie dentária, minimizando os riscos de fluorose dentária: utilizar um dentifrício com concentração convencional de F (entre 1000 e 1500 μg/g) e em pequena quantidade (0,1 a 0,3g)29,32.