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Exposição ao uso da lenha para cocção no Brasil e sua relação com os agravos à saúde da população

Exposição ao uso da lenha para cocção no Brasil e sua relação com os agravos à saúde da população

Autores:

Adriana Gioda,
Gisele Birman Tonietto,
Antonio Ponce de Leon

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.8 Rio de Janeiro ago. 2019 Epub 05-Ago-2019

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018248.23492017

Introdução

A poluição do ar em ambientes fechados é um importante fator de risco para morbidade e mortalidade e representa cerca de 4 % da carga global de doenças1. Em residências, a poluição está, principalmente, associada ao tipo de combustível (lenha, GLP, querosene, carvão e outros) usados na cocção e aquecimento, às condições do processo de combustão (tipo de fogão, presença ou ausência de chaminés, chaminés pouco eficientes ou mal construídas, vazamentos no sistema de escape de fogões a gás ou lareiras, etc) e a ventilação. Em geral, a queima destes combustíveis ocorre de forma incompleta gerando gases e partículas. Partículas finas e compostos como benzeno, formaldeído e benzopireno são altamente cancerígenos. Estes poluentes podem atingir níveis muito altos, maiores que os recomendados pelas agências reguladoras.

A Organização Mundial da Saúde (OMS)2 estima que há cerca de 2,8 bilhões de pessoas que dependem de combustíveis sólidos (lenha, esterco, resíduos de colheitas, carvão vegetal, carvão etc.) e fogões rústicos para cozinhar e aquecer; e 1,2 bilhão de pessoas que utilizam lâmpadas de querosene para iluminação. Esta exposição aos poluentes resultantes da queima de combustíveis sólidos tem sido a responsável pela morte de, pelo menos, 4,3 milhões de pessoas ao redor do mundo, anualmente2. A maioria destas mortes são prematuras e decorrentes de doenças cardíacas, acidente vascular cerebral, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e câncer de pulmão. Além das mortes, um número significativo de doenças respiratórias agudas ocorre, principalmente, em crianças e mulheres devido a maior exposição. As doenças relacionadas com a poluição do ar em ambientes domésticos ocupam o 5º lugar no ranking mundial.

No Brasil, ainda são escassos os estudos relativos às emissões de gases e partículas relacionados com o uso da lenha, fogões e formas de cozimento, dificultando o entendimento dos efeitos causados à saúde da população. O uso da lenha no país acontece de forma variável devido às diferenças climáticas, socioeconômicas e culturais. Na região sul, o frio e a tradição induzem ao uso da lenha; já no norte e nordeste, o menor poder aquisitivo da população resulta também no uso mais frequente de combustíveis sólidos. Além do cunho científico, o uso da lenha deve ser visto como um problema de saúde pública e ambiental. Programas de conscientização, educação e preservação ambiental deveriam ser implementados pelos órgãos governamentais para uma melhor qualidade de vida, minimizando gastos públicos com o sistema de saúde.

Com base no exposto, o objetivo deste trabalho foi realizar uma avaliação da situação atual referente ao uso da lenha no país utilizando dados das agências governamentais visando estimar a população exposta. O aumento de massa crítica gerada a partir de investigações científicas, avaliação de dados, levantamentos de ações e iniciativas internacionais, entendimento de abordagens politicas governamentais e não governamentais internacionais, devem balizar e servir de subsidio para políticas públicas sérias, que se preocupem em mitigar os danos causados pelo uso de lenha como combustível sólido. O investimento em linhas de pesquisa abordando o uso e estimativa de risco é primordial para tal.

Métodos

Neste estudo foram utilizados dados de duas agências governamentais: a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

O Balanço Energético Nacional (BEN)3 é um relatório que apresenta dados acerca da contabilização da oferta, transformação e consumo final de produtos energéticos no Brasil, sendo disponibilizado pela EPE, anualmente, a partir de julho. Com relação a lenha, seu uso é dividido por setores: residencial, industrial, agricultura e transformação. De acordo com o BEN: “A produção de lenha e carvão vegetal é determinada a partir dos dados de consumo, não levando em conta a variação de estoques. Os dados de consumo setorial de lenha, à exceção das indústrias de papel e celulose, cimento e pelotização e de não-ferrosos, das quais são obtidas informações de consumo real, são calculados por interpolações e extrapolações dos dados do projeto Matriz Energética de 1970, dos censos do IBGE e mediante correlações com o consumo setorial dos outros energéticos, como é o caso do GLP no setor residencial”.

Dentre as várias pesquisas domiciliares por amostragem realizadas pelo IBGE, pelo menos três incluem perguntas sobre o consumo de carvão e lenha na cocção: i) Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)4; ii) Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF)5; e iii) Pesquisa Nacional de Saúde (PNS)6.

A PNAD4 começou a ser executada em 1967 e era realizada, anualmente, até 2010, com exceção dos anos de Censo. Em 2011, foi implantada, em caráter experimental, a PNAD Contínua, que a partir de 2012 passou a ser aplicada em todo o território nacional7. Esta pesquisa se destina a investigar diversas características socioeconômicas da população. Atualmente, a pesquisa é realizada em todas as regiões do Brasil, incluindo as áreas rurais de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá, que eram excluídas até 2004. Na década de 90, a PNAD possuía em seus questionários o tópico “Domicílios particulares permanentes, por tipo de combustível utilizado no fogão”. A partir de 2000, o tópico foi reeditado como “O fogão deste domicílio utiliza predominantemente”. Porém, as alternativas de respostas permaneceram as mesmas: 1) Gás de botijão (gás liquefeito de petróleo, GLP), 2) Gás canalizado (gás natural), 3) Lenha, 4) Carvão, 5) Energia elétrica, 6) Outro combustível.

A POF5 tem como objetivo obter informações sobre o orçamento familiar, ou seja, quanto as famílias ganham e a destinação de seu dinheiro. Esta pesquisa é por amostragem e atende as áreas rurais e urbanas e todas as classes sociais, e também aborda o tipo de combustível usado no fogão. Um dos tópicos do questionário aborda: “O(s) fogão(ões) deste domicílio utiliza(m) como combustível: 1) Gás botijão/encanado; 2) Lenha; 3) Carvão; 4) Energia elétrica; 5) Outro combustível; 6) Não tem”.

Por sua vez a PNS6, realizada pela primeira vez em 2013, possui um questionário mais rico e específico sobre a experiência da população em relação à exposição a fatores de risco conhecidos, a utilização de serviços de saúde, a presença de doenças crônicas, entre outras questões de saúde. A PNS é desenhada conjuntamente pelo IBGE, instituições acadêmicas e agências governamentais de saúde. A periodicidade da PNS é de 5 anos.

Resultados e discussão

Estatística das Agências Governamentais

A EPE divide o uso da lenha por setores: residencial, industrial, agricultura e transformação. De acordo com o último BEN3, a lenha representou 6,3% do consumo total de energia em todos os setores. Este percentual corresponde ao consumo de aproximadamente 7,5 x 107 toneladas, sendo que em torno de 2,0 x 107 toneladas foram utilizadas apenas com fins residenciais3. Este consumo tem se mantido estável nos últimos cinco anos, variando de 6,2 a 6,7 %. Toda a produção é consumida internamente e não há importação deste produto3. Atualmente, as três principais fontes de energia residencial usadas, com diferentes finalidades, são a eletricidade (46,0 %), seguida pelo GLP (26,5 %) e a lenha (24,4 %) (Figura 1)3. As demais fontes representaram pouco na matriz energética residencial: carvão vegetal (1,7 %), gás natural (1,4 %), querosene e gás canalizado (0,0 %).

Figura 1 Consumo de energia no setor residencial com diversas finalidades de acordo com o BEN, EPE. 

O uso da lenha tem sofrido um declínio considerável nas últimas décadas, principalmente, no setor residencial (Figura 1). Esta redução está relacionada com a migração da população para as cidades, onde há disponibilidade de outras formas de energia e dificuldade de obtenção de lenha. Além disso, os subsídios dados ao GLP, desde o início da sua produção, bem como, os programas assistenciais do governo resultaram no aumento do uso do GLP e eletricidade, em detrimento do uso de lenha. Outro fator importante é a distribuição do GLP que atinge, praticamente, todos os domicílios do país, mesmo os localizados em áreas remotas, onde, muitas vezes, a eletricidade não está disponível.

Entre os programas assistenciais do governo, que influenciaram no uso do GLP em substituição a lenha, está o “Auxílio-Gás” (Decreto 4102, de 24 de janeiro de 2002). Este programa transferia subsídios para famílias de baixa renda para a compra do GLP residencial. Em 2004, o mesmo foi substituído pelo “Bolsa Família” (Lei 10836, de 9 de janeiro de 2004). A inclusão do “Auxílio-Gás” no “Bolsa Família” não está sendo muito efetiva para reduzir o consumo de lenha, uma vez que as famílias carentes recebem o benefício e o gastam na compra de alimentos ou outros gêneros que consideram mais necessários. Como observado em outros países em desenvolvimento, quanto menor o poder aquisitivo maior o uso de biomassa. No Brasil é notório que o aumento no preço do GLP, reduz seu consumo e aumenta o consumo de lenha, sendo mais evidente nas regiões mais pobres do país (Norte e Nordeste)8,9.

De uma forma mais específica, a PNAD4, realizada pelo IBGE, obtém informações sobre o principal combustível usado na cocção. Considerando apenas os dados válidos, e excluindo os dados faltantes e não aplicáveis, os resultados da PNAD, apontam que os combustíveis mais usados em residências para cocção são o gás de botijão (GLP) (93%) e a lenha (3,2%) (Figura 2). A PNS registrou um índice maior de domicílios que usam lenha como forma predominante de cocção no Brasil (4,46%)6. Os estados que mais consomem lenha são o Rio Grande do Sul (10,38 %), Bahia (9,67 %), Minas Gerais (8,97%), Santa Catarina (8,96%), Piauí (8,64%), Ceará (7,77%), Paraíba (7,32 %), Pará (6,42%), Paraná (5,96%) e Tocantins (5,69%).

Figura 2 Tipo de combustível utilizado no fogão em domicílios no Brasil de acordo com a PNAD, IBGE. Não há dados para 2000 e 2010 por serem anos de Censo Demográfico. 

Embora a energia elétrica atinja quase 100% dos domicílios, ela representa menos de 0,01% do total usado para cocção. Assim como observado na pesquisa realizada pela EPE, o querosene e o gás canalizado não são praticamente usados com fins residenciais. O uso de querosene para cocção é muito comum em países da África e da Ásia. Pelo fato do gás natural estar disponível apenas em grandes centros, não aparece como uma alternativa significativa para o país como um todo.

O relatório da última POF (2008-2009)5, também realizada pelo IBGE, aponta o GLP como o principal combustível utilizado em fogões em áreas urbanas (92%), enquanto que corresponde a 39% nas áreas rurais (Figura 3). Por outro lado, a lenha tem maior importância na área rural (11%) do que na urbana (0,6%), como esperado devido à facilidade de acesso e ao tipo de fogão usado.

Figura 3 Combustíveis utilizados para cocção de acordo com a POF, IBGE (2008-2009). 

Estimativas mundiais apontam que a taxa média de uso de combustíveis sólidos para cocção representa 41% da energia total utilizada mundialmente (Figura 4)10. Os países industrializados (de alta renda) usam menos de 5%, enquanto que as regiões mais pobres, ex. África Subsaariana, sudeste da Ásia e Região do Pacífico Ocidental, a percentagem pode chegar a 95%. Embora, a proporção de famílias que emprega combustíveis sólidos, como combustível primário, para cozinhar diminuiu em todas as regiões entre 1980 e 2010, o número de pessoas expostas à poluição doméstica permaneceu estável, com aproximadamente 2,8 bilhões2,10.

Figura 4 Estimativas do uso de combustíveis sólidos para fins domésticos no mundo. 

Estimativa da população exposta

Com base nos dados do IBGE e da EPE é possível estimar a população exposta aos poluentes provenientes da queima de lenha. De acordo com o IBGE4,6, de 3,2 a 4,5% dos domicílios brasileiros fazem uso predominantemente de lenha. Considerando que o total de domicílios no Brasil é de 61,4 milhões11, aproximadamente de 2 a 2,7 milhões de residências usam este combustível para cocção. A exposição pode atingir 9 milhões de indivíduos, se for considerado uma média de 3,3 pessoas por família11. Mesmo elevado, este número pode ser bastante conservador, uma vez que a pergunta apresentada no questionário do IBGE não possibilita uma segunda opção, que poderia ser a lenha, em domicílios que usam o GLP como predominante. A estimativa feita pela EPE3 pode corresponder mais verdadeiramente à situação do uso deste combustível no país com fins residenciais. Considerando que o consumo residencial em 2015 foi de 2 x 1010 kg e que uma pessoa consome entre 600 a 780 kg por ano12, a população exposta seria de 25 a 33 milhões de indivíduos. Ou seja, uma parte significativa da população ainda utiliza lenha para cocção. Brito12 também estimou que, pelo menos, 30 milhões de habitantes são dependentes da lenha como fonte energética domiciliar no Brasil.

Estudos realizados em diferentes regiões, embora não sejam representativos do país, mostram um consumo bem variável deste combustível, com percentagens maiores que as apresentadas tanto pelo IBGE quanto pela EPE. De acordo com o próprio Ministério do Meio Ambiente (MMA)13, é estimado que 85% das famílias das zonas rurais no Nordeste utilizam a lenha. Os estudos in loco em regiões rurais mostraram que as percentagens do uso predominante de lenha variaram de 17 a 87%9,14-19. Na região urbana também foi constatado um alto índice de uso (38,2%)20. Além disso, uma percentagem significativamente alta usa ambos lenha e GLP (60-90 %)18,19. Portanto, a exposição pode atingir uma população bem maior, agravando o problema de saúde pública.

Embora o fogão a lenha seja o mais usado, os próprios usuários se incomodam com a presença da fumaça e particulados. Além disso, consideram perigosos para as crianças, não gostam do excesso de calor e do enegrecimento das panelas e paredes20. Importante ressaltar que a lenha catada, que é principalmente usada, engloba restos de caixas e madeiras tratadas e/ou pintadas que durante o processo de queima elimina muitos outros poluentes mais tóxicos.

Efeitos da poluição causada pela queima de lenha na saúde

Estudos sobre os danos causados pela queima de biomassa são muito escassos no Brasil. Embora, na literatura cientifica mundial sejam reportados diversos estudos de casos cujos resultados mostram agravos na saúde em populações expostas. As poucas pesquisas encontradas no país apontam um aumento da prevalência de sintomas respiratórios, sibilância, função pulmonar comprometida e a prevalência de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) em indivíduos expostos à queima de biomassa21-29. Efeitos sinérgicos entre a exposição à biomassa e o tabagismo em termos de perda da função pulmonar também foram observados22. Além disso, foi observado uma maior prevalência de sintomas respiratórios na população exposta a queima de biomassa em comparação com indivíduos que utilizaram GLP, sendo a tosse e a coriza os sintomas mais prevalentes tanto em adultos quanto em indivíduos mais jovens22. A prevalência de sibilância recorrente em crianças menores de 13 anos mostrou associação estatisticamente significativa com uso de fogão a lenha, representando um risco 2,5 vezes maior do que para quem não usava23. A bronquite crônica foi mais comum em indivíduos que relataram alta exposição ocupacional à poeira e a altos níveis de poluição interior, devido ao uso de lenha24. No entanto, após controlar os fatores de confusão a diferença não foi tão significativa. Novos equipamentos de alta resolução tem auxiliado a identificar alterações causadas por diferentes tipos de exposições. Um exemplo é o uso da Tomografia Computadorizada de Alta Resolução (TCAR) para a identificação e caracterização de alterações de tórax em mulheres não fumantes com doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) causada por exposição à fumaça da combustão de lenha. Os resultados apontaram que a este tipo de exposição provoca alterações predominantemente brônquicas, que podem ser detectadas por TCAR, mesmo nos casos de DPOC leve28.

As comunidades indígenas têm sido foco de pesquisa no país, pois estes grupos fazem uso constante de lenha em fogões rudimentares30,31. Em um estudo realizado com crianças indígenas Guarani menores de 5 anos de idade pertencentes a 83 comunidades no Brasil (SP, RS, RJ, SC e PR) foram avaliadas as causas associadas à internação hospitalar por infecção aguda do trato respiratório inferior (ALRTI)30. Os fatores de risco que permaneceram significativamente associados à hospitalização por ALRTI na regressão logística condicional multivariada hierárquica foram: baixa renda mensal per capita, grande número de pessoas no domicílio, exposição a poluentes provenientes da queima de lenha utilizada para cozinhar, baixa idade materna e baixo peso ao nascer30.

O aumento de diferentes tipos de câncer também tem sido associado ao uso de lenha em ambientes fechados. No Brasil, alguns estudos foram realizados avaliando a incidência de câncer do trato aerodigestivo superior, do esôfago e de cavidade oral (língua, gengiva e outras partes específicas da boca) relacionados com a exposição a queima de lenha32-34. Um estudo realizado utilizando pacientes com câncer do trato aerodigestivo superior avaliou a influência do uso do fogão a lenha no desenvolvimento da doença. Na análise não ajustada, os pacientes que usavam fogões a lenha para cozinhar ou aquecer tinham 2,7 vezes (IC 95%: 2,2-3,3) maior risco de desenvolver cânceres em comparação com os não-usuários. Devido à sua alta prevalência, o uso de fogões a lenha pode estar associado a até 30 % de todos os cânceres que ocorrem nas regiões estudadas33. Em outro estudo foi analisado os fatores de risco para câncer de esôfago em região de baixa incidência do Brasil (Goiânia, GO). Nesta região, os fatores de risco mais significativos foram à exposição ao fogão a lenha, tabagismo e viver em zona rural34. Para quantificar a importância dos fatores de risco para o câncer de cavidade oral (língua, gengiva e outras partes específicas da boca) foi realizado um estudo epidemiológico em três áreas metropolitanas: São Paulo, Curitiba e Goiânia32. O estudo mostrou uma forte associação entre a incidência de câncer na boca com o uso de um fogão a lenha para cozinhar e aquecer. Estes resultados mostram que o uso de fogão lenha é um importante fator de risco no desenvolvimento de câncer e outras doenças.

Emissões geradas pela queima de combustíveis usados na cocção

Estudos no país comparando as emissões causadas por GLP e lenha também são escassos. Um destes estudos avaliou os efeitos de fogões a lenha na qualidade do ar de interiores em comunidades rurais (Almirante Tamandaré e Araucária) no Paraná, durante o inverno35. As concentrações de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HPA), dióxido de nitrogênio (NO2) e partículas totais em suspensão (PTS) foram medidas em casas com fogões a lenha e em casas com fogões a GLP. Nas cozinhas com fogões a lenha os níveis de HPA e PTS foram muito mais elevados. Em contraste, as concentrações de NO2 na cozinha, bem como a exposição pessoal, foram ligeiramente mais elevadas em casas com fogões a GLP35. Essas diferenças foram muito pouco afetadas pelo tabagismo, poluição do ar exterior ou outras emissões de produtos de combustão interna35. Estudos realizados na Ásia e na África apontam altas concentrações de PTS dependendo do tipo de fogão: fogão a lenha de pedra (3764 µg m-3), fogão a lenha eficiente (1942 µg m-3), fogão tradicional a carvão vegetal (823 µg m-3), fogão eficiente a carvão vegetal (316 µg m-3)36,37.

Um outro estudo avaliou os níveis de material particulado fino (PM2.5) gerados durante a combustão do GLP e lenha22. Os resultados mostraram que a concentração média de PM2.5 durante o período de cocção nas residências que usavam GLP foi bem menor (3,0 ± 3,6 µg m-3) que nas residências que queimavam lenha na parte externa (151 ± 115 µg m-3) ou interna (230 ± 157 µg m-3)22. Pesquisas realizadas em outros países também apontam que os níveis de PM2.5 emitidos pelo GLP (26 - 101 µg m-3) são menores que os da lenha (223-630 µg m-3)38,39.

A substituição de fogões rústicos por fogões mais eficientes para populações carentes tem sido proposta pela iniciativa privada e por organizações não governamentais (ex., Instituto Perene, Caatinga e Agendha). O termo “fogão melhorado ou eficiente” tem sido aplicado de forma variável para descrever modelos de fogão otimizados para eficiência de combustível ou projetados para minimizar as emissões. O objetivo destas iniciativas é minimizar os impactos da poluição interna na saúde humana e também reduzir as taxas de desmatamentos. Um estudo de caso foi realizado no Ceará em uma comunidade (Vila de Km60/Limoeiro do Norte) de renda média que utilizava fogões eficientes40. Nestas residências foram medidas as concentrações de CO e PM2.5. Os resultados mostraram que as concentrações de CO nunca excederam 20 mg m-3 durante ou após a operação do fogão. Por outro lado, a concentração de PM2.5 aumentou mais de 5 vezes durante a operação do fogão, variando de 35 μg m-3 para valores superiores a 200 μg m-3. Níveis tão altos quando 3000 µg m-3 foram registrados. Importante notar que os fogões estavam localizados do lado externo da casa e, mesmo assim, na cozinha foram medidas altas concentrações de PM2.5.

Na zona rural do Ceará, mesmo com o uso de fogões melhorados, cerca de 20% das famílias reclamaram do desconforto provocado pela fumaça e aumento da temperatura interior9. Além disso, 47% das famílias revelaram ter problemas de saúde e 40% apresentaram doenças ou sintomas de asma e/ou alergias. No entanto, a concentração máxima de CO2 (922 ppm) não ultrapassou os limites da ANVISA, ao contrário da temperatura (média de 28ºC) e umidade relativa (média de 28%)9.

Um outro estudo realizado em uma comunidade quilombola em Horizonte, CE, também avaliou as emissões geradas por fogões eficientes41. As concentrações de PM10 foram tão altas quanto 1400 µg m-3, ultrapassando muito os limites estabelecidos pela OMS. Estes estudos mostram que mesmo as soluções melhoradas podem causar elevados níveis de exposição a substâncias potencialmente tóxicas durante a sua operação.

Os níveis de partículas registrados nos estudos realizados no Brasil emitidos durante o processo de combustão da lenha estão muito acima dos estipulados pela OMS. Estes resultados fortalecem a hipótese de que os fogões a lenha são fatores de risco para vários tipos de doenças.

Nova pesquisa revelou que um aumento anual nas concentrações de PM2.5 em 10 µg m-3 reduz a expectativa de vida de 9 a 11 anos42. Nos EUA, a análise custo-benefício da redução da poluição do ar é calculada com base no número de vidas salvas, com cada vida atualmente estimada em US$ 7,4 milhões42. Estes números foram determinados para a poluição externa, mas também se aplicam para a poluição interna, já que a OMS, considera os mesmos efeitos tóxicos para poluentes externos e internos. Com isso, pode-se afirmar que os custos tanto de morbidade quanto mortalidade devido ao uso da lenha são muito elevados. Portanto, esforços para reduzir esta exposição devem ser tomados pelas autoridades competentes.

Conclusão

A lenha continua tendo uma grande importância na matriz energética nacional, muito embora, tenha ocorrido uma redução significativa do seu consumo desde a década de 70 até os dias atuais, de 85 % para 25 % no setor residencial. O uso da lenha ainda é desconhecido no país, pois uma grande parte é catada e não faz parte das estatísticas. Além disso, os números apresentados pelo IBGE e EPE não se baseiam em medidas in loco e, sim, em estimativas, que podem resultar em uma larga margem de erro. O IBGE estima entre 3,2 e 4,5% da população usam exclusivamente lenha para cocção, resultando em até 9 milhões de pessoas expostas. Por outro lado, a EPE calcula que 24,4% da energia residencial são provenientes da lenha, expondo mais de 30 milhões aos poluentes da queima. Os estudos in loco em algumas regiões rurais mostram que o uso predominante de lenha para cocção pode variar de 17 a 90%. Já em regiões urbanas pode chegar a 38%. Ou seja, os dados disponíveis são bastante variáveis.

O uso da lenha está associado a fatores culturais e socioeconômicos. O preço do GLP e a proximidade de florestas têm sido fatores decisivos para o uso da lenha pelas classes mais pobres.

As pesquisas sugerem um agravamento de problemas de saúde devido à exposição à queima de biomassa. A redução do uso da lenha e a substituição por combustíveis mais limpos, como vem sendo feito em outros países, devem ser incentivadas, tanto por questões ambientais, quanto de saúde pública. Para solucionar os problemas acarretados pelo uso da lenha, políticas públicas devem ser implementadas, mas antes de mais nada, um estudo mais específico deve ser realizado no país.

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